Terça-feira, 28 De Setembro,2010

Pontos no i

Deus escreve direito por linhas tortas, insondáveis são os seus juízos e tal, mas a haver mão guiada por intervenção do Além para manhosamente vingar o autor de Aparição, essa mão foi a de J. Rentes de Carvalho. Alimentar um ódio, mesmo que de estimação, durante dezenas de anos, sofrer as idiossincrasias detestáveis de alguém que não suportamos, enfim, cultivar uma aversão a ponto de a expressar com “desmesurada fúria”, lamento dizê-lo, é coisa que cobra os seus juros. Quando odiamos com tamanha intensidade aproximamo-nos, consciente ou inconscientemente, do objecto desse ódio. Rentes de Carvalho não diz que se estava nas tintas para Vergílio Ferreira ou que nunca prestou atenção ao que ele escrevia, diz que era uma das suas bêtes noires. Diz que o leu por obrigação de ofício, mas leu-o, e suspeito que a leitura daquela má, empolada e nevoenta prosa tenha sido, por vezes, fonte daquele género de prazer que só o que nos exaspera profundamente é capaz de proporcionar.

 

Concedo que não é no estilo de um e de outro que a comparação faz sentido. Dizer que a prosa de Vergílio Ferreira é empolada e nevoenta é uma caracterização exacta, o contrário do estilo luminoso e límpido de Rentes de Carvalho. Alguns diálogos de Aparição são tão rigidamente filosóficos, tão falsos, que, lidos hoje, não só nos parecem datados como patéticos. Os diálogos de A Amante Holandesa, pelo contrário, nunca tropeçam na voz do escritor. O tom professoral de Vergílio Ferreira, que faz com que algumas personagens não sejam mais do que meros títeres animados por ideias filosóficas que lhes pré-existem, contrasta com a voz humana e simples de Rentes de Carvalho. Resumindo e exemplificando: em Vergílio Ferreira, o telúrico é uma ideia, em Rentes de Carvalho, uma realidade. E no entanto, o que os aproxima é aquilo que os afasta, como dois parentes desavindos, o que é visível nos pontos de contacto entre Aparição e A Amante Holandesa. Os narradores e protagonistas são professores que, pelas suas acções, omissões e sugestões, desencadeiam uma série de eventos que culminam em tragédia. Ambos são elementos estranhos num meio rural, provinciano e que lhes é hostil. Ambos são vítimas da voracidade dos autóctones. No entanto, o mais importante é que ambos propõem ao leitor o problema moral (para utilizar uma expressão de Susan Sontag em relação a Camus) e a questão da responsabilidade individual. Há outras curiosidades (o homem enforcado, a morte dos cães) que o escritor poderá desvaloriar como meras coincidências mas que cabe ao crítico evidenciar. Como é óbvio, não procedi a uma comparação exaustiva entre as duas obras, mas não tenho qualquer dúvida que essa comparação seria digna de uma tese, ainda para mais numa altura em que há por aí tantas teses indignas.

 

Era esse o sentido da comparação, temática e não estilística (embora isso não seja claro na minha crítica) entre Rentes de Carvalho e Vergílio Ferreira. E se, no que escrevi,  Rentes de Carvalho viu a mãozinha de um espírito vingativo (mas certamente pouco interessado em publicitar a vingança, ou teria escolhido para intermediário um crítico do Expresso ou do Público) eu agora vejo no romance que escreveu uma resposta longínqua à obra e ao estilo de Vergílio Ferreira, aproximando-os mais do que seria o desejo do autor.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:31
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A Vida Verdadeira

No centro de A Vida Verdadeira, romance de estreia de Vasco Luís Curado (n. 1971), está uma quinta cercada por um muro. Vergílio, o narrador, é o derradeiro guardião desse espaço ameaçado pela expansão urbanística. A visita dos agentes imobiliários empurra-o para uma sucessão de recordações, da infância à idade adulta, em que reflecte sobre a sua separação da vida verdadeira, de tudo o que acontece para lá dos muros e das palavras. Não sendo o que se designa de romance de ideias podemos dizer que A Vida Verdadeira é um romance em que as ideias delimitam a narrativa. A ideia mais forte, a âncora do narrador, é a do indivíduo enquanto portador temporário do testemunho da família, enquanto elo transitório de uma cadeia que o transcende. Nos atavismos e na preservação da memória, Vergílio prolonga o todo que é a família. A educação da criança enquanto disputa entre duas forças antagónicas, a domus e a polis, é a outra ideia-base do livro. A escola (símbolo do mundo dos homens) procura resgatar a criança das garras da protecção doméstica, ou seja, quer dar à criança referências do mundo exterior, enquanto que a mãe quer mantê-la num estado uterino. A escola é um útero masculino, berço de cidadãos. No caso do protagonista, é a força materna que leva a melhor. Demasiado protegido, ele está separado do mundo pela grade verbal erguida pela mãe. As palavras são mais importantes do que as coisas; não lhe servem para desvendar o mundo, mas para o manter a uma distância segura. Vergílio fica à beira-vida como em criança ficava à beira-mar, porque a mãe queria “transformar o mar num tanque infantil que não oferecesse perigos” (p. 26). A viagem que planeia com a irmã, e que não chegam a realizar, é o símbolo máximo do desfasamento entre o mundo enquanto verbo e a realidade empírica.

 

A Vida Verdadeira tem fragilidades como o recurso frequente a advérbios de modo, algumas expressões anti-literárias e inestéticas e histórias laterais que, não sendo más, não são embutidas de forma graciosa no conjunto. Mas com este romance, Vasco Luís Curado conquistou, pelo menos, o direito a uma segunda oportunidade para corrigir estas falhas menores.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:01
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O Fio da Navalha

O panteão dos escritores tem várias portas de entrada. W. Somerset Maugham (1874-1965) não utilizou a mesma de contemporâneos como Proust ou Joyce. Enquanto estes traçavam os caminhos que a narrativa haveria de percorrer nas décadas seguintes, Maugham repisava trilhos desbravados décadas antes.

 

O Fio da Navalha (1944), a sua última grande obra, exala todo o perfume da impertinência aristocrática do romancista. Maugham cortejava o cliché sem remorsos (é contar os narizes aquilinos ou atentar nesta pérola: “a nossa imaginação zarpa nas asas douradas do sonho”) e com a segurança de quem tem coisas mais importantes a dizer e não está disposto a despender energias com problemas que há muito foram solucionados (não era Borges que se gabava de utilizar as metáforas mais usadas, estrelas/olhos, morte/sono, exactamente por serem eternas?). Cultivava o aforismo, uma flor de civilização e de espírito, com um afinco comparável ao de Oscar Wilde, mas era através das personagens e do ouvido apurado para o diálogo que o génio de Maugham se expressava na totalidade. Larry, Isabel e Elliott são criações tão completas que temos de admirar os dotes demiúrgicos do seu autor. Um poder aplicado também à descrição do mundo em que viviam, as altas sociedades americana e europeia das décadas de 20 e 30. Os vícios de uma Europa decadentista, o materialismo optimista da América, a sordidez do bas-fond parisiense, o requinte da nobreza na Riviera: Maugham domina os cenários com a desconcertante naturalidade do homem mundano e culto. Por isso, a digressão pelo misticismo hindu soa a nota forçada. Aquela que deveria ser a parte mais espiritual do livro é muito mais superficial do que a descrição da vida fútil do dandy Elliott Templeton. Não há no romance momento mais humano e mais patético do que o sofrimento de um moribundo Elliott por não ter sido convidado para uma festa. À conta daquele faux pas hindu de Maugham, Edward Said poderia ter acrescentado mais um capítulo ao seu Orientalismo.

 

O leitor pode, no entanto, seguir a recomendação de Maugham, saltar o penoso capítulo místico e deleitar-se com o resto do livro, o resultado do entendimento perfeito que o autor tinha do seu ofício e que surge lapidar quando diz que “a arte é triunfante quando consegue usar a convenção como instrumento para seu próprio proveito.”

publicado por Bruno Vieira Amaral às 10:59
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Segunda-feira, 27 De Setembro,2010

Clarice Lispector - Uma Vida

“Hermética” é talvez um dos adjectivos mais colados à obra da escritora brasileira Clarice Lispector (1920-1977). João Gaspar Simões terá sido dos primeiros, mas certamente não o último, a referir-se-lhe nestes termos e lançava o repto: “Haja quem lhe encontre a chave” (p. 259). Benjamin Moser encontrou essa e outras chaves que abrem a obra de uma mulher da qual o tradutor Gregory Rabassa disse que “se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf” (p. 349). Clarice Lispector – Uma Vida desmonta as mitologias erguidas à volta de Clarice, o monstro sagrado, para nos mostrar uma mulher dividida entre as exigências de uma vocação artística precoce e o desejo de uma vida familiar pacata. Um conflito real (Clarice queria uma “vida-vida”, “um bloco separado da literatura” p. 158) que transpôs para os seus romances e personagens. Clarice queixava-se de que a aura de mito afastava as pessoas, ainda que o mito se alimentasse muito da sua personalidade esquiva e do mistério intrínseco à obra.

 

O sentimento de estranheza que Clarice despertava enquanto mulher (o rosto de ícone eslavo, o sotaque) e escritora (à margem de uma literatura “materialista”, afirmação do carácter nacional), tem raízes na sua história de vida, recriada por Moser com imenso talento e rigor histórico. Filha de judeus oriundos da Podólia (no que é hoje a Ucrânia), Clarice chegou ao Brasil ainda criança, mas permaneceu sempre uma estrangeira, no sentido em que “era uma estrangeira na terra” (p. 3). O ponto mais original da análise literária de Moser é a leitura da obra de Clarice à luz da condição judaica. Para além das marcas psicológicas, a experiência do exílio foi traduzida de forma indirecta por Clarice nos seus livros, que prolongam a tradição judaica de estabelecer uma relação com o divino através da escrita.

 

Equilibrada entre a contextualização histórica e política e uma interpretação apaixonada da obra de Clarice (Moser considera A Paixão Segundo G.H. um dos grandes romances do século XX), esta biografia consegue a dupla proeza de ser uma obra autónoma de grande valor e de cativar o leitor para o universo lispectoriano. De chave na mão.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:33
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A Cor do Hibisco

“As coisas começaram a desmoronar-se em casa quando o meu irmão, o Jaja, não foi comungar (…)” O começo de A Cor do Hibisco remete-nos implicitamente para um dos romances seminais da literatura africana, Quando Tudo se Desmorona, de Chinua Achebe. No seu romance de estreia, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora do aclamado Meio Sol Amarelo, reclama a sua parte da herança e prolonga a fusão entre a literatura ocidental e as raízes africanas ou, adaptando, inglês correcto com sotaque e imaginário ibo.

 

A convivência entre as duas culturas nem sempre resultou na amálgama sólida de que é feita a literatura de Achebe e de Adichie. Neste romance, é a figura do pai de Kambili, a narradora adolescente, que representa a impermeabilidade dos dois mundos. Educado numa missão católica, o pai é “um puro produto do colonialismo”, alguém que obliterou a sua identidade africana e que exige o mesmo dos filhos, mesmo que tenha de recorrer a constantes abusos físicos e psicológicos. No entanto, este homem de uma severidade extrema é capaz dos gestos mais altruístas em benefício de estranhos e é proprietário de um jornal que denuncia corajosamente a corrupção do governo. Kambili tem dificuldade em conciliar as duas imagens do pai: o herói público e o monstro privado, que castiga os filhos com água a ferver, que espanca a mulher e que despreza o próprio pai. A ideia de pecado ensombra toda a existência de Kambili que só tem um vislumbre de uma outra vida quando vai visitar a tia. A casa de Ifeoma é um santuário de liberdade e de riso. A tia mostra-lhe que o avô não é um pecador pagão que mereça as chamas do Inferno e os olhos de Kambili abrem-se para esse novo mundo que existe para lá da disciplina paterna.

 

Para romance de estreia, A Cor do Hibisco revela uma autora surpreendentemente madura. O ponto de vista da narradora é coerente e temas que são lançados num determinado momento são recuperados mais à frente (as aparições em Aokpe, a visita ao monte Odim), criando um efeito de perfeição circular. A maturidade também se expressa nas personagens, agulhas de um sismógrafo que capta a turbulência social. A derrocada familiar é consequência dos abalos políticos. A forma como Adichie entrelaça os dois planos, sem excesso de melodrama e sem proselitismo político, é o grande trunfo do livro e um feito admirável para um primeiro romance.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:56
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Elza, a garota: a história da jovem comunista que o partido matou

O brasileiro Sérgio Rodrigues cruza investigação jornalística e ficção partindo de um caso verídico: o assassínio, nos anos 30, da amante do secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro por decisão da cúpula partidária. O sensacionalismo fica todo no subtítulo, “a história da jovem comunista que o Partido matou”. A história de Elza e as circunstâncias macabras da sua morte são o chamariz que nos atrai para os territórios mais complexos da verdade histórica, da construção dos mitos e de como os homens se servem da memória para expiarem os seus pecados. Não é por acaso que a citação que abre o livro é retirada de Expiação, de Ian McEwan.

 

A narrativa desenvolve-se em dois planos: o ficcional e o da pesquisa histórica sobre a morte de Elza, levada a cabo pelo autor. Neste plano, Sérgio Rodrigues procura responder a uma questão simples: quem era aquela menina de dezasseis anos? Traidora para os comunistas, mártir para a propaganda anti-comunista, a verdadeira Elza perdeu-se no confronto entre as suas versões míticas e contraditórias. A conclusão de Sérgio Rodrigues é que Elza, ingénua e analfabeta, foi uma vítima acidental do turbilhão político que se seguiu à insurreição falhada dos comunistas, em 1935. No segmento ficcional, Molina, um jornalista em decadência, é contratado por um velho comunista para lhe escrever as memórias. Durante semanas, Molina grava os relatos de Xerxes. Enredado na teia fascinante urdida pelo velho, o jornalista deixa “de levar em conta os sinais de que nem tudo era o que parecia ser.” No final, Molina percebe que as memórias de Xerxes não estão ao serviço da História, mas da história pessoal daquele homem. Memória e representação são meros instrumentos de um processo íntimo de expiação.

 

O livro renega com igual intensidade o preto-e-branco ideológico do século XX e o relativismo “viscoso” que transforma tudo “em matéria pastosa de comédia.” A verdade está algures no meio dos mitos e de documentos falsificados, de doppelgängers e de nomes de código e encontrá-la é quase tão difícil como reparar os erros através de uma narrativa. Mas, como nos lembra a citação de McEwan, “a tentativa era tudo.”

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:55
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Corespondência 1959-1978

Ler a correspondência entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena pode ser um exercício de voyeurismo retrospectivo. Em vez de intimidades íntimas temos o país que era, e em alguns aspectos continua a ser, Portugal, de vergonhas destapadas e exibidas sob uma luz inclemente e fria, sobretudo quando é Sena a apontar o foco. Empurrado para o exílio por uma intelectualidade que o desprezava e que ele desprezava com tanto ou mais vigor, incapaz de se submeter à ditadura da mediocridade da “lítero-cambada”, Sena trovejava de ressentimento e de amargura. Em Sophia, que nunca saiu do país a não ser em turismo, a mesma intolerância à baixeza de alguns personagens, ávidos por “criar em nome do anti-fascismo um novo fascismo”, é expressa com a moderação magoada de quem teve de sofrer aquele Portugal na lenta agonia do quotidiano e que é ilustrada nesta passagem sobre os amigos que a desiludiram: “Eles não têm a menor noção do que seja lealdade nem seriedade. Felizmente consigo dominar-me e nem me zangar com eles. Creio que são dignos de dó. Talvez sejam casos onde a miséria material acaba por provocar a miséria moral.”

 

A distância de Portugal não atenuou em Sena o sentimento de injustiça, até porque no Brasil encontrou muitos dos defeitos de que tinha fugido com a agravante de ter de lidar com a desconfiança dos portugueses “exilados”, para quem era demasiado brasileiro, e dos brasileiros, que o viam como um “agente temível de portugalidade.” À injustiça, Sena respondeu, muito pouco portuguêsmente, com obra. Os seus lamentos não eram estéreis; foram o combustível de ensaios, poesia, romance e traduções. Obras para deixar as orelhas da Pátria a arder, obras como as póstumas Dedicácias, em que os inimigos são nomeados e brindados com o sarcasmo virulento de Sena, autor cujo reconhecimento tem sido lento mas notório. Caso diferente foi o de Sophia, entronizada em vida e que preservou a sua poesia num templo impoluto, refúgio grego das tormentas cívicas.

 

Provas de uma amizade funda em que as emoções não turvavam a integridade intelectual, nem a independência crítica, estas são cartas de dois gigantes de um país “que se empequeneceu irremediavelmente”.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:54
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Peregrinação de Enmanuel Jhesus

Timor-Leste, como qualquer outro país, é uma ficção. Peregrinação de Enmanuel Jhesus, o novo romance do jornalista Pedro Rosa Mendes, é uma ficção literária sobre a ficção de um território. Pelas vozes de várias personagens, são evocados 500 anos de História, da indigência do luso-colonialismo à ocupação indonésia, da guerra civil ao messianismo tardio que culminou com a independência de um país inviável. Um desfecho adequado à narrativa da vitimização timorense (“[...] a língua eucaristica e narrativa de vitimização são os dois tesouros nacionais no génesis do Estado Lorosa’e.”). Alor, a personagem central, desempenha a função sacrificial, o Moisés criado pelo inimigo e que não verá a terra prometida. Aquele desfecho também serviu de epílogo à narrativa do Portugal colonial. Se este é um livro sobre Timor é também um livro sobre Portugal, que viu naquela ilha a última oportunidade de redenção de uma descolonização desastrosa. Dois actores marginais da História contemporânea a confluírem para um final apoteótico de culpa, sangue e libertação política e moral. Nesta história, Timor não foi o único “pequeno povo condenado à pequena ambição da vitória moral”.

 

Embora possam ser detectadas semelhanças com Baía dos Tigres, híbrido de difícil classificação, Peregrinação de Enmanuel Jhesus é um objecto de contornos literários mais definidos, sem prejuízo da diversidade de registos. Algo que, a par da amplitude do relato, justifica a polifonia do romance: da cartografia aos sistemas de linhagem, da história militar e religiosa à diplomacia das grandes potências, das artes marciais à arquitectura, o leque de temas é tão vasto que a hipótese de um único narrador aproximaria perigosamente o livro do género jornalístico, uma espécie de mega-reportagem didáctica. A flexibilidade da estrutura – os autos de uma missão de inquérito conduzida por um bispo norueguês – é o sustentáculo da harmonia do coro. O realismo e a erudição de Dalboerkerk (a voz principal) entrelaçam-se com naturalidade no lirismo quimérico de Wallacea (a única voz feminina). O resultado é um romance magistral, a milhas do que se convencionou chamar literatura portuguesa.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:53
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Uma Gata, um Homem e duas Mulheres

A dissecação de casamentos é uma das especialidades da obra de Junichiro Tanizaki (1886-1965), um dos grandes nomes da literatura japonesa do século XX, a par de Yasunari Kawabata e de Yukio Mishima. A novela Uma Gata, Um Homem e Duas Mulheres é mais uma autópsia de um organismo vivo e anestesiado pela indiferença, a exemplo do que sucedia em Alguns Preferem Urtigas (romance publicado em 2009 pela Teorema). Entre a tradição e a modernidade, entre os atavismos e a ocidentalização, o verdadeiro drama das personagens de Tanizaki é a ausência de emoções, um certo enfado pelo outro que, se nunca é explicitamente manifestado, também não é camuflado ao ponto de ser invisível. Em vez de grandes explosões de cólera e de violentos acessos de raiva, Tanizaki prefere a descrição das punhaladas silenciosas, das pequenas recriminações e dos ardis subterrâneos. O casamento segundo Tanizaki é, pois, um banquete de que só os passivo-agressivos podem desfrutar na plenitude. E quanto menos emoções envolvidas, mais suportável se torna. Por isso, o casal de Alguns Preferem Urtigas não tem coragem de avançar para a separação. Por isso, Shozo, o protagonista desta novela, não se importa de ser humilhado desde que consiga aquilo que quer e que, neste caso, é estar perto de Lily, a gata que ele ama mais do que a mãe e as mulheres. A imagem pública de Shozo é a de um homem fraco, sem vontade, “lorpa”, mas isso não o incomoda. Não é uma daquelas personagens burguesas e suburbanas sufocadas pelas aparências; pelo contrário, as aparências funcionam como um escudo protector que lhe permite dedicar-se sem reservas ao único ser ao qual está ligado por uma emoção genuína e concentrar-se nos seus prazeres fúteis, “jogar um pouco de bilhar, entreter-se com bonsais envasados e namoriscar as empregadas dos cafés baratos.”

 

As aparências estão também no centro dos dois contos, O Pequeno Reino e O Professor Rado, que completam o livro. Juntamente com a novela que lhe dá o título, são exercícios miniaturais da arte superior de Tanizaki: a produção de superfícies de tal forma polidas que o leitor é induzido a ver o seu próprio reflexo no destino das personagens.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:52
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Santa Maria do Circo

Após uma zanga entre os proprietários, os irmãos Alejo e Ernesto, o Circo Mantecón divide-se em dois. Don Ernesto parte com os artistas talentosos, enquanto Don Alejo fica com a tenda e o resto da trupe, incluindo a mulher barbuda e o anão. O livro acompanha a chegada deste último grupo a uma cidade-fantasma, nos confins do México. Os colonizadores baptizam o lugar com o nome de Santa Maria do Circo e esforçam-se por se adaptar a uma vida sedentária, completamente diferente daquela que conhecem. Habituados a viver em função da itinerância e do público, a paragem involuntária confronta-os com a decadência física ou com a falta de talento, com o estigma de um defeito ou com um amor não correspondido. A única solução que encontram para ordenar a realidade é inventar um espectáculo sem espectadores e sem números, e em que cada um assume um determinado papel social: o homem-bala é promovido a militar e o Hércules da companhia é relegado para a função de prostituta. O circo morre e nasce o reality show.

 

À excepção das efabulações genealógicas do anão Natanael, Santa Maria do Circo é um romance muito distante do realismo mágico e aproximá-lo desse universo é uma manobra que só se pode compreender no autofágico mercado anglo-saxónico. Publicado em 1998, este livro do mexicano David Toscana é uma alegoria da existência humana enquanto palco para toda a sorte de inadaptados. Tão premente como a procura de água é a necessidade de combater o absurdo dando um nome ao lugar e definindo uma nova ordem social. Como se a sobrevivência se jogasse mais no plano simbólico – o papel que tem de se representar – do que no plano material – aquilo que cada um tem de fazer. Figuras unidimensionais dentro dos limites do circo (“Se não fosse a minha estatura, ninguém diria que sou anão.”), os artistas não concebem a vida de outra forma. Por isso, fora do circo e longe dos espectadores, aqueles homens e aquelas mulheres – uma estranha família de Noé que simboliza a humanidade – precisam ainda assim de novas máscaras e de rituais no lugar dos sentimentos.

 

Se o romance tem o travo agridoce da desolação mitigada pelo humor, o final capta-o na perfeição: a assimetria de um anão e de um gigante lado a lado, enquanto o circo abandona a cidade.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:51
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