Terça-feira, 28 De Dezembro,2010

O Feitiço de Xangai

Duas cidades: Barcelona e Xangai. Dois narradores: Daniel e Nandu Forcat. Um romance de idealistas derrotados e um outro romance dentro do primeiro, guiado pela fantasia e pelo fascínio exótico de uma cidade distante. O realismo cinzento da Barcelona do pós-guerra e o delírio luminoso da Xangai pré-comunista. Uma cidade-símbolo da derrota dos anti-franquistas e uma cidade imaginada onde se pode apagar a memória para começar de novo.

 

Em O Feitiço de Xangai, Juan Marsé, galardoado com o Prémio Cervantes em 2008, condensou o bildungsroman, o romance de formação, com o adolescente Daniel a descobrir o amor, a morte e a verdade, e o romance de aventuras, recheado de peripécias inverosímeis em paisagens longínquas. É um romance feito das memórias de um adolescente e da imaginação de um adulto, em que as personagens adultas, vencidas na guerra e na vida, revelam a verdadeira natureza nos tempos em que já não se exigem actos heróicos, mas tão somente decência. Habituados ao sacrifício, programados para viver na clandestinidade, em estado de heroísmo, os maquis falham na transição para uma vida normal e caem na traição, na mentira e no crime. O último resistente, o quixotesco capitão Blay, acaba como actor de uma comédia humana, perdido no mundo da “derrota e da loucura”. A sua causa – a poluição que, segundo ele, ameaça a saúde dos cidadãos de Barcelona – é uma espécie de metadona para o idealismo quando se descobre “a futilidade dos velhos ideais” (p. 83), “coisas que hoje em dia já começam a não interessar a ninguém e em breve serão esquecidas.” (p. 94)

 

Marsé percorre os territórios da sua infância, físicos (a Barcelona omnipresente na sua obra; o facto de Daniel, tal como o próprio Marsé, ser aprendiz de ourives) e narrativos (o cinema, os romances de cowboys vendidos pelos irmãos Chacón) para nos levar, enfeitiçados, para um lugar distante. Pergunta uma das personagens “E porque não em Pequim, ou em Bagdad, ou na Conchinchina [sic]?” De facto, o local, desde que remoto e de ressonâncias exóticas, é indiferente. Neste romance, Xangai é apenas uma metáfora do nosso desejo de encantamento enquanto leitores, tão ingénuos quanto Susana e Daniel, os ouvintes da história que Forcat conta para se salvar (lição de “As Mil e Uma Noites”). No tempo que dura a história, o mundo real fica suspenso. O feitiço de Xangai é, simplesmente, o feitiço da literatura.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:41
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Quinta-feira, 23 De Dezembro,2010

A Questão Camus

No seu ensaio Os Cadernos de Camus (1963), Susan Sontag afirma que “a sua [de Camus] obra, vista unicamente como realização literária, não [é] suficientemente grande para suportar o peso da admiração que os leitores lhe querem tributar” e que o juízo que se faz de Camus “é simultaneamente pessoal, moral e literário”. Sontag reconhece que Camus foi amado como poucos escritores e que a sua morte foi sentida como uma perda pessoal por todo o mundo literário. Enquanto que, para Sontag, Kafka inspirava piedade e temor, Joyce, admiração, Proust e Gide, respeito, Camus era o único que inspirava amor. Que espécie de amor é este? Quais as qualidades de Camus que o fizeram tão amado pelos leitores ainda que Sontag considere que a sua obra se encontra num patamar inferior ao de outros escritores do século XX? A explicação mais óbvia será a personalidade de Camus, o último dos justos, as suas participações cívicas, as suas opiniões políticas, até a sua imagem atraente, cinematográfica. Mas este é um julgamento que projecta na obra as virtudes pessoais do autor e que acaba inevitavelmente na sobrevalorização. Considerando que nem todo o amor que lhe tributaram teria origem nas qualidades pessoais de Camus, é na obra que teremos de encontrar as virtudes morais e literárias que atearam sentimentos que normalmente reservamos para os que nos são próximos. Para Sontag, a causa desse amor é somente moral (no sentido literário) e pouco se deve aos méritos exclusivamente literários. Logo no início do ensaio, coloca Camus no campo dos “maridos” literários, em oposição ao dos amantes. Camus seria amado por oferecer qualidades expectáveis no “marido” e particularmente valorizadas num tempo em que a maior parte dos escritores quer ser o “amante”. É o primeiro dos presentes envenenados de Sontag, porque, recorrendo a uma metáfora burguesa, arruma Camus na prateleira da convenção. E não é inocente que a metáfora jogue com as qualidades pessoais, e com os preconceitos de “marido” e de “amante”. Subtilmente, continuamos no plano das qualidades pessoais, ainda que utilizadas como metáfora para as qualidades literárias. O segundo presente envenenado de Sontag é quando se refere à beleza moral da obra de Camus. É mais um presente envenenado porque Sontag não diz que se trata de uma obra bela e, ao mesmo tempo, moral, mas que a única beleza que lá se encontra é de fundo moral, logo, uma beleza inferior. Para Sontag, a beleza da solução moral proposta (se assim se pode dizer) por Camus está desligada da forma como o escritor expressa a solução, é esteticamente neutra, é uma emanação de bom senso literário, correspondente à ideia mansa de “marido”. No fundo, Sontag considera que Camus falha a excelência literária mas atinge uma espécie de santidade profana que encontrou eco nos leitores mais necessitados de coordenadas espirituais e morais do que de rasgos estéticos (como os do nouveau roman, tão apreciado por Sontag) . Daí que, hoje em dia, seja comum a opinião segundo a qual Camus é um escritor para adolescentes, para leitores à procura de orientação. O consolo moral que os seus livros proporcionam também não é bem visto por uma época em que apenas o consolo estético é admissível. Esta postura é sintetizada por Sontag da seguinte forma: “Partindo das premissas de um niilismo popular, conduz o leitor – unicamente graças ao poder da tranquilidade da sua voz e do seu tom – a conclusões humanistas e humanitárias que de nenhum modo estavam implícitas nas premissas. Este salto ilógico por cima do abismo do niilismo é o dom pelo qual os leitores estão gratos a Camus.” (p. 81) Camus seria, então, mais do que um escritor, um flautista de Hamelin que leva os ratos (os ratos, claro) para fora da cidade, um encantador que no seu tom monocórdico e hipnótico, mas pobre do ponto de vista artístico, seduz as massas. Como no caso do flautista, pouco interessam os seus dotes de intérprete, mas o carácter funcional da música. A frase citada é outro dos presentes envenenados de Sontag. Os adjectivos “popular” e “ilógico”, a forma como passa do “humanismo” para o “humanitarismo”, a tranquilidade da voz e, por fim, a gratidão do leitor para com o escritor: Sontag, de modo gracioso, encosta Camus às cordas de uma espécie de literatura de auto-ajuda sofisticada. A violência vem depois: “Não há em Camus nem arte nem pensamento de altíssima qualidade.” É então que fala da beleza moral. No entanto, para aceitarmos a ideia de uma beleza moral independente da sua expressão estética, teríamos de aceitar a beleza de qualquer obra moral e a fealdade de qualquer livro imoral. O que acontece é que as qualidades estéticas valorizadas por Sontag não se encontram na obra de Camus, e não se podem encontrar nas obras dos “maridos”.

 

O estilo de Camus (a tranquilidade da sua voz) não é apenas o veículo de uma proposição moral, é também uma afirmação estética. A música celineana (e Céline é um óptimo anti-Camus), o calão, a pontuação epiléptica, as imprecações, é apenas estilo? Como não ver no tumulto linguístico de Céline o pessimismo antropológico, a descrença no homem, a doença do homem, a podridão, a corrupção, a mesquinhez, a falta de esperança? O estilo só serve para transportar a (ou a falta de) moral? Ou é a moral que pede o estilo? Uma coisa é certa: é injusto ver o propósito estético nos gritos e nos urros de Céline e negá-lo na voz serena e nítida de Camus, apenas porque esta nos fala de uma esperança no homem. Falando de uma arte que é pura forma, podemos perguntar-nos como Lukács, citado por George Steiner, se haverá um único compasso de Mozart que exprima um mal intrínseco e, se não há, em que é que tal diminui a grandeza artística de Mozart. A tranquilidade, a serenidade, a limpidez da prosa de Camus não são uma emanação das virtudes humanas do autor, da mesma forma que a escrita de Céline não é uma ejaculação arbitrária de ódio. São as ferramentas dos respectivos processos artísticos: um que se estriba no rigor e na secura do verbo, outro que os estilhaça.

 

A questão que Sontag nunca coloca de forma aberta, mas que percorre todo o ensaio, é a de saber se ainda é desejável, necessária ou aceitável uma literatura moral; uma literatura, como a de Camus, que proponha o problema moral aos seus leitores. É verdade que, com o tempo, aquilo que é moral corre o risco de ser lido como moralista, a padecer do que Sontag chama de sentenciosidade ou inoportunidade. Porque uma moral é sempre uma resposta ao mundo, um guia nas trevas, um manual de conforto e isto choca com a ideia de uma literatura que nos interroga, que nos provoca, que nos inquieta. Este conforto que a obra de Camus proporciona é precisamente o que incomoda Sontag que vê aí a convenção, o prosaísmo e todas as qualidades burguesas do “marido”: estabilidade, inteligibilidade, generosidade e decência. Esquece-se de que não há no estilo Camus qualquer excesso proselitista, qualquer vocação sermónica. Não há uma vontade de melhorar o leitor, e isso faz toda a diferença porque é o que separa o romance moral do romance moralista. Há um rigoroso controlo da ênfase e da sintaxe. A temperança, a mediocritas, o nunca elevar a voz acima do exigido para se fazer ouvir, o não confundir estridência com razão, o não substituir a convicção pela retórica são opções estéticas onde a firmeza moral se alicerça. Como não admirar a concisão estética, a beleza moral desta frase: “il y a dans les hommes plus de choses à admirer que de choses à mepriser”? Esta frase não pode ser julgada de um ponto de vista meramente literário. A literatura não chega, a arte é insuficiente para tudo o que esta frase nos diz. Não haverá beleza no Sermão do Monte e nos diálogos platónicos? Não são as parábolas de Cristo cristalizações literárias de uma moral? Não é o oferecer a outra face um dos maiores desafios morais na violência filosófica e literária da sua imagem? O que seria então da Antígona, da Odisseia, do Dom Quixote, da Divina Comédia, se apenas as discutíssemos como obras de arte e não como visões do mundo, expressões de uma moral? A resposta à pergunta que abre este parágrafo é que continua a ser necessária uma literatura moral; é dos moralistas que não precisamos. O poder de um livro como A Estrada, de Cormac McCarthy, vem da sua natureza moral. A questão que coloca é próxima do universo da obra de Camus: é possível um comportamento moral num mundo sem Deus e sem esperança? Sontag considera que os imperativos morais propostos por Camus – amor, moderação – eram demasiado genéricos, abstractos e retóricos para os dilemas históricos e metafísicos que enfrentavam. De um ponto de vista filosófico talvez seja assim, mas de um ponto de vista humano, religioso e dramático, não. O amor pode não resolver todos os dilemas, mas é, tal como a solidariedade, um caminho, uma estrada.

 

No seu dicionário filosófico, Fernando Savater confessa o receio de, ao reler Camus, o achar atrasado, ou brando, ou sacristanesco, logo ele, que “foi tão amado.” De seguida, conforta-nos: “Camus não tem uma única ruga. Mais nosso que nunca: mais equânime, mais valente, mais tonificante e lúcido que nunca.” E acrescenta: “Face aos excessos por vezes impiedosos da liberdade que projecta e desfaz, defendeu os valores cálidos da vida que conserva e consola”. A crítica de Sontag dirige-se a este conservadorismo, que politicamente lhe valeu inimizades, e que artisticamente (e que é o que Sontag trata) se manifestava na sua voz também ela cálida, humana, como se do outro lado não estivesse um profeta nem um demagogo, antes o nosso semelhante. Sobre a Peste escreve Savater: “Este grande livro deixa igualmente insatisfeitos os puros estetas e os intransigentes do moralismo, os sublimes da perfeição sem compromissos e os mais preocupados em punir do que em fazer justiça; decepciona sintomaticamente aqueles que exigem a utopia de qualquer absoluto, mas é o mais limpo manifesto de “aqueles a quem basta o homem, e o seu pobre e terrível amor”” (p. 59).

 

Camus sofreu, e continua a sofrer, o facto de ter sido muito lido e muito amado. Outros, como Joyce, Proust, Woolf, Faulkner e, em menor grau, porque mais lidos, Kafka e Borges, beneficiaram do facto de serem menos lidos mas continuamente admirados à distância que separa o crente do altar, que separa o leitor do mistério que não lhe é acessível: quantos dos que não hesitam em falar da genialidade de Joyce, Proust e Woolf leram Ulisses, Em Busca do Tempo Perdido ou As Ondas? A legibilidade de Camus foi o seu grande pecado. Era demasiado acessível para que não fosse treslido, apoucado, menosprezado. Mas os seus livros estão aí, resistem a esse ataque que desdenha da beleza e da moral (e também da beleza moral) simples das suas palavras e das suas ideias. Literariamente, se isolarmos a estética, se isolarmos a literatura da atmosfera moral que respira, temos de reconhecer que outros escritores quebraram regras, foram muito mais longe do que Camus. Mas nenhum outro se aproximou mais do coração do homem, do seu centro moral. Cabe-nos a nós, seus leitores e admiradores, adolescentes de alma, perpetuar a sua voz, demonstrar que continua a fazer sentido, que continuamos a reconhecê-la como nossa, que permanece válida e importante não só na nossa relação com os livros mas na nossa relação com o mundo, na nossa relação com os outros, porque, a partir do momento em que a ouvimos pela primeira vez, inscreve-se no mundo, no mundo onde todos nós somos estrangeiros.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:55
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A Mulher do Próximo

Muita felicidade, bênçãos abundantes, desprezo pelo acaso: eis os ingredientes da tragédia. Quando se abate sobre infelizes e pobres a tragédia é apenas reiteração. É quando castiga os belos, os poderosos e os ricos que a tragédia é verdadeiramente tragédia. Ainda assim, a ira dos deuses não depende da arrogância humana, embora esta possa facilitar a ocorrência de acontecimentos nefastos ou redobrar o castigo. O homem afortunado desafia os deuses por ser o que é. Afronta-os, quando à sua condição junta a insolência e a insensatez. Não vê os seus limites, a fragilidade da sua condição, tudo lhe parece possível, como a um bêbado a conduzir um carro a alta velocidade. As histórias seguintes são tragédias, verídicas ou ficcionais, de dois reis e de um homem rico. Dois homens que, por força de um excesso de felicidade, expõem as respectivas mulheres e outro que, ao contemplar a mulher do próximo, não hesita em fazer o que lhe é ditado pelos seus apetites. Hubris em diferentes formas.

 

Logo no início das suas Histórias, Heródoto relata o caso de Candaules, rei de Sardes, e do estranho pedido que fez a um dos seus guardas, Giges, aquele em quem mais confiava. Era vontade do rei que Giges visse a nudez da rainha, sob o pretexto de tirar todas as dúvidas quanto à sua beleza, “since men’s ears are less credulous than their eyes”, ou seja, vê para creres. Giges diz-lhe que não se atreveria a corresponder a um tal pedido, até porque acredita que a rainha é, sem dúvida, “the fairest of all womankind”. Candaules diz-lhe que não se preocupe, que não o está a pôr à prova e que ele nada tem a temer da rainha, porque há-de arranjar forma de ele ver sem ser visto. O bom Giges lá acede ao pedido do rei e acaba por contemplar a nudez da soberana. O problema é que a rainha apercebe-se da presença do guarda e embora sem se manifestar percebe o que acabou de se passar. O caso é grave porque, como afirma Heródoto, “among the lydians, and indeed among the barbarians generally, it is reckoned a deep disgrace, even to a man, to be seen naked.” No dia seguinte, a rainha convoca Giges sem que este suspeite do seu grau de conhecimento. A proposta é simples: “Mata Candaules e torna-te meu senhor ou morre aqui, neste momento.” A violação dos costumes determina a punição do autor material ou do autor moral do crime. Um dos dois terá de morrer. Giges hesita, pede clemência, mas é obrigado a escolher, e escolhe viver. A rainha faz questão que Giges mate o rei no local onde ele a expôs à contemplação do subordinado. Assim acontece. Candaules é morto, Giges toma posse da mulher e da coroa.

 

Dentro da grande matrioska que é Dom Quixote, A Novela do Curioso Impertinente talvez seja a boneca com mais vida própria. Em Florença, Anselmo e Lotario são conhecidos, “por excelencia y antonomasia”, como “os dois amigos”. Não há amizade mais forte, mais bela, mais viril. Anselmo, o rico, descende de boas famílias e possui bastas riquezas materiais; não lhe faltam, pois, os bens de natureza e os bens de fortuna. Como se tanta bem-aventurança não fosse suficiente para atrair a tragédia, ainda casa com a bela, pura e recatada Camila. Tudo é perfeito na vida de Anselmo, menos a sua inquietação. Embora não duvide das qualidades da mulher, Anselmo está obcecado em pô-la à prova. Afinal, que valor tem a virtude se não é ameaçada pelas tentações? Confiado no amigo, Anselmo pede a Lotario que seduza Camila com jóias, poemas e promessas. Lotario, prudente e sensato, aconselha-o a pôr de parte um tal plano que, se tudo correr bem, nenhuma glória lhe poderá acrescentar, e que, no caso de suceder o contrário do que Anselmo deseja, seria a ruína da honra de todos. Lotario desfila um cortejo de razões, com boa retórica e sã misoginia: Camila é comparada a um diamante e a um jardim, um objecto que deve ser cuidado e resguardado pelo dono. Sabendo da natureza imperfeita da mulher, da sua tendência ancestral para incorrer em falta, é dever do homem manter afastadas da senda da virtude eventuais pedras de tropeço que, pequenas que sejam, são sempre aumentadas pelo fraco espírito feminino. Porém, vendo que o amigo está decidido a avançar com o plano, Lotario acede aos seus desejos. Sem tentar qualquer aproximação, confirma a honestidade de Camila. Caso arrumado. Mas Anselmo desconfia e, por fim, descobre que o amigo o tem enganado e que não está a cumprir o prometido. Arranja maneira de os deixar a sós durante vários dias. O silêncio entre Lotario e Camila mantém-se, mas é nos olhares, mais do que nas palavras, que medra a cobiça e o inevitável acontece: “Rindiose Camila, Camila se rindió…” Demoremo-nos um pouco nesta maravilhosa frase, que fala de uma rendição, que é desfalecimento na repetição, que é sugestão nas reticências, que é bélica e amorosa, bíblica e sentimental…Não é Lotario que conquista, é Camila que se rende, que se entrega como quem desmaia de amor. É uma das mais belas frases de todo o livro que não tem escassez de frases belas. A conclusão da novela há-de ser trágica, mas interessa menos do que o princípio da história, a curiosidade impertinente de Anselmo, a hubris que desperta a fúria dos deuses.

 

Erros que despertam a fúria divina são a essência da relação de Deus com o povo de Israel. Por muito que estivessem avisados, os israelitas facilmente se esqueciam que aquilo ou funcionava com Deus ou não funcionava. Chamavam a si os louros que eram de Deus, adoravam outras divindades, esqueciam-se dos sacrifícios, etc. Resultado: lá vinha uma tribo ou uma calamidade que lhes fazia descobrir uma renovada humildade e um temor genuíno, embora quase sempre temporário. O rei David foi um dos que andou nessa montanha-russa que leva um homem das boas graças às más desgraças em menos de nada. Uma das acções que menos agradaram a Deus, e atenção que falamos num especialista na matéria, foi o episódio de Urias e da mulher deste, Batseba, “mulher mui formosa à vista”. Por negligência do marido, dolo feminino ou atrevimento real (para não falarmos do acaso, porque, enfim, David passeava tranquilamente no terraço), David veio a cobiçar Batseba, cuja nudez contemplou inadvertidamente. Com as facilidades que nestas circunstâncias se concedem aos reis, David fez com que Batseba fosse trazida aos seus aposentos, tomou-a e, pouco tempo depois, teve de ouvir “grávida estou”. O mal estava feito e tinha de ser remediado. Outro remédio não encontrou David que não despachar o pobre Urias para a frente de uma batalha, a fim de que a morte resolvesse os apuros em que o desejo o deixara. Urias morreu, David fez de Batseba sua mulher e tudo isto “pareceu mal aos olhos do Senhor”. O homem que na juventude derrotara um gigante vê o filho do seu pecado morrer. Outras desgraças o esperavam.

 

 

Estas histórias têm mais em comum do que o sentimento trágico. Vejamos:

 

A nudez

 

A nudez sempre foi um assunto sério, desde os tempos do Éden. Heródoto escreveu sobre os costumes dos povos bárbaros para os quais a nudez era o último reduto da intimidade. Contemplar a nudez alheia era quase uma violação. O Antigo Testamento também é abundante em recomendações sobre os perigos de se olhar a nudez alheia. Lotario, empurrado por Anselmo, demora o olhar na mulher do amigo e as virtudes teóricas de Camila tornam-se dolorosamente visíveis. Não é só a nudez que se vê, é também o tempo que os olhos se demoram no objecto, por muito vestido que esteja. A contemplação é o princípio da adoração casta mas também da cobiça pecaminosa.

 

 

A mulher

 

As mulheres destas histórias são pouco mais do que objectos. É verdade que a rainha de Sardes toma as rédeas do assunto para reparar a humilhação, mas não é menos verdade que diz a Giges “Slay Candaules, and thereby become my lord”, que é como quem diz, “faz-te homem e faz-te meu senhor”. Ao contrário dos outros dois, Urias não ofereceu a mulher em sacrifício, mas é a beleza de Batseba e a concupiscência de David que lhe selam o destino: a morte. Morte que sobrevém a Candaules e Anselmo porque, fascinados pela beleza e qualidades das mulheres, montam a armadilha que os há-de arruinar. Judaico-cristãs, Batseba e Camila são duas belas jarras ornamentais, descendentes da Mãe Eva, facilmente quebráveis.

 

O homem

 

Há uma leveza, uma falta de gravitas, no comportamento de David, Candaules e Lotario. Nada de mediocritas. Comportam-se como crianças caprichosas, entediados na sua fortuna e desejosos de testar os limites da sorte, que acreditam protegê-los de todos os disparates. No meio, sempre uma mulher: a mulher que Candaules quer que seja vista por outro tal como ele a vê, a mulher cuja virtude Anselmo quer testar, a mulher cuja nudez se oferece ao desejo omnipotente do Rei David. Candaules é assassinado, mas a mão de Giges apenas conclui o movimento que a insensatez daquele iniciou. Anselmo morre de desgosto ao saber que Lotario fugiu com Camila; mas quem pode culpar senão ele próprio? David há-de sofrer as consequências de um adultério e de um homicídio. Anos mais tarde há-de chorar amargamente a morte do filho: “Meu filho, Absalão, meu filho, Absalão! Quem me dera que eu morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho!”

 

As tragédias, e estas também, são os deuses em fúria castigando a desobediência, a impertinência e a insensatez humanas. Nenhum Deus gosta de ser posto à prova, desafiado. Nem os deuses antigos, nem o Deus único dos israelitas. A tragédia é queda dos favores divinos. Repete, à escala de cada um dos protagonistas, a queda original, daí que só suceda a quem tem de onde cair. Quem esteve sempre no chão nunca é trágico, é patético, no sentido em que nos comove sem que possa servir de exemplo. Atraído pela mulher, o homem cai do trono, real ou imaginário, onde está sentado. Já era assim, no princípio dos tempos, na solidão de um jardim, na nudez inocente de Adão e Eva, nossos pais.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:54
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Os inquilinos do sétimo círculo

A literatura não se cansa de nos oferecer suicídios. Na vida real, conhecemos as histórias de alguns. Amigos, parentes, conhecidos que tomaram um último cálice de veneno, que se atiraram de um terceiro andar ou de uma ponte, que ficaram no meio da linha à espera do comboio, que deram o tiro de misericórdia. Um desgosto, uma doença terminal, uma vida incurável: nada parece ser suficiente para justificar o acto e, contudo, nenhum gesto parece tão racional, lógico, quando imaginamos os sofrimentos indizíveis que o motivaram. Não somos capazes de julgar um acto que não sabemos se é heróico ou trágico, cobarde ou corajoso, desesperado ou cruelmente lúcido. Talvez tenha um pouco de todas essas características.

 

Em 2003, Tad Friend publicou um artigo na New Yorker sobre os suicidas da Golden Gate, em São Francisco. Entrevistou um homem que sobreviveu ao salto e estas foram as suas palavras: “I instantly realized that everything in my life that I’d thought was unfixable was totally fixable – except for having just jumped.” Os suicidas bem sucedidos inspiram-nos desdém pelo egoísmo revelado, admiração pela determinação necessária para executar o gesto e uma estranha compaixão que resulta de não termos acesso ao derradeiro assomo daquela consciência. Queria apenas chamar a atenção? Será que se arrependeu? E no caso de não se ter arrependido, que valores podem justificar o atentado contra o bem supremo? O suicídio não tem sentido? Ou é o único clarão de sentido numa vida absurda? Confrontados com estas questões, somos levados a repetir o célebre incipit de O Mito de Sísifo, de Albert Camus: “Il n’y a qu’un problème philosophique vraiment sérieux: c’est le suicide.”

 

E, no entanto, os suicídios não são todos iguais. Na literatura, muitas vezes a finalidade do suicídio é oposta. O suicídio de Judas Iscariotes é ignominioso, uma morte adequada ao seu papel de traidor. Se Judas morresse às mãos de um dos discípulos ou, anos mais tarde, de morte natural, à traição faltaria o derradeiro opróbrio, a mancha final e eterna. Os evangelistas não brincaram em serviço e Judas tem direito a dois suicídios: Mateus escreve que Judas se enforcou e Marcos, nos Actos dos Apóstolos, afirma que Judas “adquiriu um campo com o salário de seu crime. Depois tombando para frente arrebentou ao meio e todas as vísceras se derramaram.” Muito diferente é o suicídio de Antígona, na tragédia homónima. Condenada por Creonte a viver emparedada, Antígona tira a própria vida quando o tio se preparava para revogar a pena. Ainda hoje, Antígona é um símbolo da luta do indivíduo contra a Razão de Estado e o seu suicídio um grito contra a tirania. Quando a desgraça se abate sobre Creonte (a mulher Eurídice e o filho Hémon também se suicidam) o seu castigo não é a morte mas “ter de continuar a viver” (Maria Helena da Rocha Pereira, Antígona, Ed. Gulbenkian, 1992) o que coloca em perspectiva a afirmação de que a vida é o bem supremo.

No livro Atentar contra Si, o escritor Jean Améry (que se suicidou dois anos após a publicação do livro) analisa dois “suicídios” muito diferentes (desde logo porque um é ficção e não se concretiza e outro é real) para questionar aquela afirmação: o do segundo-tenente Gustl, personagem de um conto do austríaco Arthur Schnitzler, e o de uma empregada doméstica cuja história ocupou as primeiras páginas dos jornais durante a juventude de Jean Améry. A empregada atirou-se de uma janela alegadamente por não ver correspondida a sua paixão por um galã da rádio. Gustl pensa em suicidar-se por não se julgar à altura do “uniforme imperial”, depois de ter sido humilhado numa briga com um padeiro. Em ambos os casos, Améry detecta nas “personagens” a consideração de valores que se sobrepõem à própria vida. No caso de Gustl, o código de honra do exército, o significado do uniforme que enverga. No caso da empregada, “a voz maviosa do artista”, as promessas de felicidade que não se podem cumprir. O primeiro é um quase-suicídio político, relativo à polis, anti-antigoniano (a razão do corpo colectivo impera sobre o indivíduo). O segundo é pessoal, íntimo e sentimental, claramente wertheriano. No entanto, Werther (A Paixão do Jovem Werther, Goethe) é não apenas um suicida mas também, na definição de Améry, um suicidário, alguém que corteja a ideia da morte voluntária e que é capaz de produzir pensamento sobre o tema (Améry, ele próprio, é o exemplo do suicidário que, por fim, se suicida). Eis a síntese da teoria wertheriana: “A natureza humana [...] tem os seus limites: pode suportar a alegria, o sofrimento, a dor até certo ponto, arruína-se, porém, mal ele seja ultrapassado. Assim, a questão não é ser-se fraco ou forte, mas conseguir suportar a medida do seu sofrimento, seja moral ou físico. E acho tão estranho chamar covarde a quem põe fim à própria vida como a quem morre de febre maligna.” Werther, incapaz de lidar com a frustração amorosa e social, não morre de febre maligna. O seu suicídio, baseado na teoria que expôs, é o reconhecimento de que, em determinadas circunstâncias, a vida não é o bem supremo. Uma ideia que tem sido aproveitada pela literatura, das tragédias gregas ao romance do século XIX.

 

No seu romance mais recente, The Humbling, Philip Roth elenca alguns suicidas em peças teatrais (Hedda Gabler, Jocasta, Ofélia, Fedra) para concluir que “what was remarkable was the frequency with which suicide enters into drama, as though it were a formula fundamental to drama, not necessarily supported by the action as dictated by the workings of the genre itself.” A estrutura dramática pede o suicídio. A literatura socorre-se da morte voluntária para punir os prevaricadores, para castigar os sobreviventes e para exacerbar o clímax. Neste sentido, Madame Bovary é uma descendente de Judas (as trinta moedas de prata que Judas recebeu certamente chegariam para pagar a dívida de três mil francos que é a gota de água que empurra Ema para a morte) e parente afastada da empregada doméstica de Améry. O seu suicídio é um castigo que não mancha as mãos de outros e resulta de ilusões amorosas de natureza muito distinta da paixão do jovem Werther. Os sentimentos nobres de Werther contrastam com a sensualidade pequeno-burguesa e um tanto reles de Ema, embora as personagens partilhem fraquezas de carácter. Enquanto Goethe “mata” Werther de uma forma limpa e digna, Flaubert “constrói” a agonia de Ema (que ele dizia ter sentido fisicamente) como um resumo da sordidez moral da personagem. Mas a grande diferença reside aqui: Werther escreve, Ema lê. Madame Bovary não é uma suicidária. O suicídio é apenas a resposta desesperada à situação em que caiu. A antítese do suicídio de Jeremiah de Saint-Amour, uma das mais fascinantes do vasto panteão de personagens inesquecíveis concebidas por Gabriel Garcia Marquez. “Nunca hei-de ser velho”, confidencia de Saint-Amour à amante. Refugiado antilhano, inválido da guerra, fotógrafo de crianças e xadrezista, Saint-Amour prepara o suicídio com método. O acto não nasce do desespero. É um projecto acalentado durante anos, planeado ao pormenor e executado sem falhas. Encerra-se em casa, fecha portas e janelas e vaporiza cianeto de ouro numa tina. Na porta deixa um aviso: “Entre sem tocar e avise a polícia”. Deixa uma carta de onze páginas ao seu melhor amigo, o Doutor Juvenal Urbino. A caligrafia é “esmerada”. O suicídio de de Saint-Amour, uma personagem secundária, ocorre logo nas primeiras páginas de Amor nos Tempos de Cólera. Por estes motivos, não pode ser lido como um “truque” dramático exigido pelas convenções do género romanesco. É apenas a afirmação serena mas resoluta, expurgada de todo o desespero, de que até na literatura a vida não é o bem supremo.

 

No Inferno de Dante, os suicidas habitam o sétimo círculo. Pier della Vigna é o primeiro encontrado por Dante no seu percurso. Della Vigna era secretário de Frederico II. Conhecedores da influência que exercia sobre o imperador, os nobres conspiraram contra Della Vigna, que acabou acusado de traição. No contexto da obra de Dante, este episódio equivale a uma absolvição de Della Vigna, vítima de uma acusação injusta. Para o tema do suicídio, mostra-nos que há coisas sem as quais não vale a pena viver. Um uniforme, a voz de um cantor, a honra, o respeito pelos nossos mortos, a juventude, a confiança daqueles que servimos e amamos, tudo o que nos pode parecer fútil ou desnecessário quando comparado com o bem que é a vida, é essencial para que alguns homens e mulheres insistam em viver. A vida e os livros estão aí para nos ensinar esta lição.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:52
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O Medo

Em “A Volta ao Dia em 80 Mundos”, Julio Cortázar narra um episódio ocorrido num autocarro parisiense (tentem não se distrair com a aliteração) e dá-lhe o nome de “Encontro com o Mal”. Nos autocarros parisienses e, presumo, na maior parte dos transportes colectivos do mundo ocidental, podemos esperar os acontecimentos mais insólitos. Eu já fui testemunha de uma boa dezena de tais acontecimentos e acredito não ser mais azarado ou mais atento do que a maioria dos cidadãos que, por questões económicas ou de deficiente ordenamento do território, é obrigada a frequentar diariamente os veículos dos TST. Se, com o nosso exagero meridional, podemos classificar algumas dessas experiências como “infernais” ou, como dirão os que ao exagero juntam a erudição, “dantescas”, não será, porém, razoável que esperemos um encontro com o Mal. Seria uma experiência que nem o preço dos bilhetes poderia justificar. O Mal, visto por Cortázar, é um homem de “sobretudo e chapéu pretos”. Deixo para quem sabe: “A certa altura, tive consciência do medo que se tinha vindo a instalar naquele corredor, no qual jamais alguém teria pensado que um dia sentiria medo. Não sei descrever uma coisa destas [os escritores como Cortázar têm a tendência a desvalorizar as suas capacidades para, de seguida, nos impressionarem com os seus recursos]; era uma aura, uma irradiação de mal, uma presença abominável.” Prossegue o argentino: “Dizer que era o Mal não é dizer nada; conhecemos as suas caras sorridentes e os seus múltiplos jogos amáveis [não é o Diabo capaz de se transformar em anjo de luz?]. O insuportável (e isso sentia-o o revisor na sua simplicidade, sentíamo-lo todos a partir dos nossos diversos horizontes) era a ausência de qualquer símbolo revelador.” O que Cortázar quer dizer é que o Mal é um vazio de sentido e que o medo alimenta-se desse vazio.

 

Guy de Maupassant descreveu, talvez melhor do que ninguém, esse sentimento que não deve ser confundido com outras emoções limítrofes: “Um homem enérgico nunca tem medo perante um perigo iminente. Sente-se emocionado, agitado, ansioso; mas o medo é outra coisa.” Estas palavras foram escritas por Maupassant num conto que se chama, sem surpresas, O Medo. E o que é o medo? O medo “acontece em certas circunstâncias anormais, sob certas influências misteriosas, face a ameaças vagas. O verdadeiro medo é como uma reminiscência dos terrores fantásticos de outrora.” Se Maupassant tivesse ficado por aqui nós teríamos medo, porque esta é uma descrição um tanto vaga. Mas, logo a seguir e através do relato de uma personagem, ilustra o sentimento. O homem em questão foi confrontado com o medo em duas situações bastante distintas: a primeira, no deserto, em plena luz do dia. A segunda, numa noite fria de Dezembro, num bosque do nordeste de França. A primeira diz-nos que o medo não é necessariamente, e ao contrário do que o cinema de terror nos fez crer, um animal noctívago. A segunda é uma representação mais tradicional - centro-europeia e grimmesca – do medo. Um bosque, uma casa no meio do bosque, a noite, condições atmosféricas desfavoráveis – aquilo com que se assustam as crianças. Para o estudo do medo, e até para seguirmos a lógica iniciada com Cortázar, a primeira situação é muito mais produtiva. Em plena luz do dia e no deserto (Maupassant diz que o medo é filho do Norte e que “o sol dissipa-o como uma névoa”), o medo é mais puro porque se funda no absoluto vazio de referências que normalmente nos permitem pressenti-lo. O deserto não tem esquinas nem sombras. O medo que aí se possa sentir paira mais acima. Cobre toda a extensão de areia, mas não se manifesta claramente. É a tal ameaça vaga e indecifrável. No conto, os árabes que acompanham o homem dizem: “A morte está sobre nós”. Em todo o lado e em lado nenhum, como o Deus único dos israelitas – uma invenção do deserto.

 

Quando Hitchcock quis desafiar as convenções do suspense, criou uma das cenas mais fascinantes de toda a sua obra e da história do cinema. Colocou um homem no meio do nada, num espaço aberto, em plena luz do dia, à espera de qualquer coisa. Nunca o medo foi tão abstracto. A cena, como o leitor cinéfilo já terá deduzido, pertence a North by Northwest e é a matriz de outros filmes, como Duel, de Steven Spielberg, em que o Mal não se esconde à noite atrás de uma porta fechada. Se o tempo nos permitir, ainda voltaremos a Hitchcock. Para já, aproveitemos a boleia do camião de Spielberg para avançar. Nós ficamos sem saber quem conduz o camião que persegue aquele pobre homem pelas estradas secundárias da América. O Mal não tem rosto (no que se parece com o Deus de Moisés), nem uma causa que o explique. Para todos os efeitos, o camião é guiado por ninguém e o homem perseguido, ocupado em manter-se inteiro, não pode perder tempo a pensar nas motivações do inimigo (no fundo, é a história de Nobody a perseguir o Everyman).

 

Este assustador vazio de sentido pode ser encontrado amiúde na literatura fantástica. E nada melhor do que animais em fúria para acentuar o irracional. Consideremos alguns exemplos. Os Cavalos de Abdera, de Leopoldo Lugones, O Terror, novela de Arthur Machen e o conto Os Pássaros, de Daphne du Maurier, são três relatos sobre o tema dos ataques inexplicáveis de animais contra humanos. As narrativas das obras de Machen e de du Maurier decorrem em períodos de guerra, pelo que ambas podem ser lidas como alegorias em que os animais simbolizam a ameaça exterior. Nos dois casos, o estilo é realista. O conto de Lugones é muito diferente. É um conto mitológico, temperado com um humor ausente nos outros dois. Lugones fala da célebre raça de cavalos de Abdera, os quais eram tão acarinhados pelos seus donos que alguns destes até tinham o hábito de os admitir à mesa. Tamanha deferência resulta em tragédia porque os animais, entusiasmados com o estatuto que lhes é concedido, resolvem atacar a cidade, destruindo as casas e matando os habitantes. Não é dada qualquer explicação para o comportamento dos animais, embora possamos arriscar uma interpretação; Lugones alerta para os efeitos perversos de uma educação laxista ou, o que também não é descabido, desenha uma metáfora sobre as relações de poder na sociedade: os “cavalos” devem ser tratados como cavalos ou corremos o risco de um dia os encontrarmos na cama com as nossas donzelas. Em O Terror, os ataques são levados a cabo por aves, cavalos e – suspenda-se a descrença – pirilampos. No conto de du Maurier, os responsáveis são os do título, uma Luftwaffe do Mal, passe o pleonasmo. O filme de Hitchcock (com argumento de Evan Hunter) é muito melhor enquanto ensaio sobre o Mal porque é expurgado do subtexto da guerra. Em nenhum momento somos convidados a ver o filme como uma alegoria da guerra. No filme, o escatológico (it’s the end of the world) é bíblico, metafísico, enquanto que, no conto, é uma representação literária de ameaças reais. Em qualquer destes casos, o medo radica na ausência de qualquer explicação plausível para a irrupção do Mal. Um homicida maníaco ou os alemães (O Terror) e a vaga de frio (Os Pássaros) oferecem “pelo menos, a tranquilidade de uma explicação, e qualquer explicação, ainda que pobre, é melhor do que um mistério terrível e intolerável”, para citar uma passagem do livro de Machen.

 

O mistério terrível e intolerável do ruído de tambores no meio do deserto e da fúria de animais enlouquecidos ou assustadoramente conscientes; o mistério terrível e intolerável de um homem numa estrada deserta e de um homem de sobretudo e chapéu pretos num autocarro em Paris. Esse mistério a que fomos chamando de Mal tem outro nome familiar e longínquo. É a morte, a que está sobre nós.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:51
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O Cairo Novo

Cairo. Anos 30. Numa sociedade em transição para a modernidade, os estudantes universitários Mamoun Radwan e Ali Taha representam dois modelos sociais antagónicos. O primeiro, inspirado no Islão. O segundo, baseado no socialismo. No entanto, O Cairo Novo é um romance sobre a terceira via do niilista Mahgoub Abdel Dayim, que rejeita todas as convenções, meros obstáculos que o impedem de aceder ao que lhe interessa: “o prazer e o poder, obtidos pelas vias e pelos meios mais simples, sem obedecer a uma moral, uma religião ou uma virtude” (p. 29). Enquanto Mamoun e Ali Taha viajam com mapa, Mahgoub navega à vista, ridicularizando as crenças e os pensamentos alheios como se fossem um lastro que dificulta as manobras na direcção do mais conveniente, mesmo que não seja o mais correcto. Quando a doença do pai o deixa sem recursos, o ressentimento de Mahgoub aumenta. Um ressentimento contra a família, as raízes humildes e os amigos. Um rancor contra o mundo. A solução para se salvar da miséria implica abdicar da honra. Para não ter de se confrontar com a consciência, refugia-se na maleabilidade do seu relativismo moral: “Só acreditava em si próprio. Existia, é certo, o agradável e o doloroso, o útil e o nocivo, mas o bem e o mal? Vãs quimeras!” (p. 197).

 

Naguib Mahfouz (1911-2006), o único escritor de língua árabe a receber o Nobel, coloca o seu protagonista perante um dilema dostoiveskiano. São várias as semelhanças entre Mahgoub e Raskolnikov, o anti-herói de Crime e Castigo. As escolhas que fazem para enfrentar os problemas têm a mesma substância amoral. Ambos acreditam que estão para além do bem e do mal e que não podem ser julgados pelos códigos que repudiaram. São dois super-homens que, no fim, acabam derrotados por falta de músculo para suportar as teorias que propugnam. A consciência e a necessidade de um amor genuíno regressam com uma “força tirânica”, contra a qual nada podem as “almas arrogantes” e as “filosofias cínicas.”

 

A estrutura de O Cairo Novo é de um classicismo irrepreensível, desde a apresentação das personagens ao desenrolar da narrativa através de quadros (os pedidos de ajuda de Mahgoub, a visita às pirâmides, a festa de caridade, o passeio de iate). O ritmo é ditado pelos andamentos - crise, reviravolta, bonança e tragédia – que têm os olhos postos no final, na conclusão moralizante que não deixa espaço para a redenção. O crime de Mahgoub só tem direito a castigo.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:46
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A Beleza e o Inferno

Há uma linha que une a maior parte dos artigos incluídos neste livro: Roberto Saviano. Não é o facto de terem sido escritos por Saviano, mas o facto de serem sobre Saviano. Depois de ter publicado Gomorra, uma descrição exaustiva do modus operandi da Camorra, Saviano ficou com a cabeça a prémio. A partir daquele momento, passou a (sobre)viver sob protecção policial. O próprio definiu a sua existência pós-Gomorra como uma não-vida. Nessas condições, que testemunho nos pode dar um jornalista-escritor que não seja sobre essa experiência? Quando nos relata o seu encontro com Lionel Messi, pensamos nas medidas de segurança necessárias para viabilizar esse encontro. Quando Saviano escreve sobre o dia em que conheceu Salman Rushdie ou sobre o jantar com Joe Pistone (o agente do FBI que se infiltrou na Máfia e cuja história foi adaptada ao cinema em Donnie Brasco), o assunto implícito é Roberto Saviano. Para um jornalista, é uma maldição talvez ainda mais nefasta do que a própria morte. No discurso que proferiu na Academia Sueca, Saviano falou do exemplo de Anna Politovskaia, a jornalista russa assassinada em 2006, e dedica-lhe um artigo (Quem Escreve, Morre, p. 249). De acordo com o ex-marido de Anna, a jornalista temia mais as campanhas de difamação que pretendiam desacreditá-la do que a morte. Felizmente, a Camorra não conseguiu calar Saviano. Mas ao condená-lo a uma vida fora do mundo, a um inferno muito particular, de certa forma neutralizou-o. Saviano, e não o que ele tem para dizer, passou a ser a verdadeira notícia. Salman Rushdie continuou a escrever romances. Mas o que pode fazer um jornalista, ainda que pratique jornalismo literário, como Saviano? Alguns dos artigos aqui reunidos sugerem soluções: notas de heroísmo individual e de sacrifício (o pianista Michel Petrucciani, os jornalistas Giancarlo Siani e Enzo Biagi), um excelente ensaio sobre a obra de Isaac Baashevis Singer, reflexões sobre o ofício narrativo de factos históricos (Apocalipse Vietname, Este Dia Será Vosso Para Sempre).

 

Desde que é um homem a prazo, o grande desafio de Saviano é não deixar que o mensageiro seja mais importante que a mensagem. Em A Beleza e o Inferno esse desafio não é ultrapassado porque o olhar do leitor é constantemente desviado para a estátua de liberdade e de coragem em que Saviano se transformou. Uma estátua que evoca valores fundamentais, mas que ainda assim é opaca, como todas as estátuas.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:44
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Terça-feira, 07 De Dezembro,2010

Escritos Pornográficos

“Nos meus cadernos escolares / Na minha carteira e nas árvores / Na areia e na neve / Escrevo o teu nome”. Começa assim Liberdade, o famoso poema de Paul Éluard, parodiado por Boris Vian num poema homónimo incluído nestes Escritos Pornográficos: “Vim na noite / Conspurcar tudo isso / Vim pelo teu nome / Para o escrever / Com esperma.” É um aviso ao leitor de espírito menos casto que veja no título uma simples promessa de viagra literário. A rebeldia e o humor do multifacetado Vian manifestam-se nesse e noutros poemas em que sugere uma utilização não-culinária do pepino, celebra as herdeiras de Safo como objectos do desejo masculino, expõe as palpitações lúbricas que se ocultam debaixo das batinas eclesiásticas e estuda a anatomia feminina como ameaça à integridade do membro viril.

 

Embora o interesse de Vian pela literatura erótica fosse superficial, como comprovado pela magreza do volume que reúne a sua produção literária dentro do género, isso não o impediu de reflectir sobre o tema. Utilidade de uma Literatura Pornográfica, conferência proferida pelo autor em 1948 e que abre este livro, é uma tentativa de definição da literatura erótica. O ensaio não é muito profundo, embora seja interessante observar como Vian arruma Sade na filosofia (e não na literatura) erótica e Henry Miller na literatura médica. A curiosa conclusão, que “não há literatura erótica senão no espírito do erotómano” (p. 42), obrigaria cada leitor ao extenuante exercício de contar as erecções provocadas por um livro antes de o poder classificar como erótico.

 

O conjunto de textos, publicado em 1980, vinte anos após a morte do escritor, encerra com uma variação do mito de Drácula, rebaptizado na versão de Vian com o pouco subtil nome de Drencule. É o texto mais explícito da recolha, um delírio onírico de hermafroditismo vampiresco e com descrições de práticas muito populares em Sodoma, pelo que se aconselha a arrumação do livro em local inacessível a crianças e a pessoas com problemas cardíacos.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:49
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Vício Intrínseco

Vício Intrínseco não contribui muito para instalar Thomas Pynchon no trono de Grande Escritor Americano, mas uma coisa é o nome de Pynchon, a intrincada mitologia que o rodeia, e outra coisa é este romance policial, psicadélico, divertido e paranóico. Policial porque a) tem como protagonista o detective privado Larry “Doc” Sportello, um detective para acabar de vez com os Sam Spades e Philip Marlowes, um detective que nunca se zanga e que raramente se apercebe do que se está a passar até ao momento em que a realidade lhe cai em cima e ele é obrigado a reagir; b) começa com um homicídio e um rapto; c) tem polícias pouco ortodoxos; d) tem fêmeas fatais. Psicadélico porque há nele uma profusão de cores que dá a sensação de termos caído numa alucinação technicolor depois de uma má trip de ácidos. Psicadélico porque há muita droga, embora Sportello não curta ácidos e esteja mais interessado em experimentar todo e qualquer tipo de erva disponível. Divertido porque assim é o universo de Pynchon: anagramas, artefactos pop (a bola autografada por Wilt Chamberlain, a caneca de Wyatt Earp), cruzamento de referências bíblicas com desenhos animados, bandas inventadas de surf rock e mesas ouija, filmes antigos e programas obscuros de televisão, polícias que coleccionam arame farpado e memorabilia do Velho Oeste, música, música e música, dos Beach Boys aos Archies, de Roy Orbison até Tom Jobim. Estas referências não estão no livro apenas para situar a acção temporalmente, à maneira da Revista dos Dois Mundos ou dos livros de Walter Scott num romance do século XIX; elas são a própria essência de Pynchon, um enciclopedismo das margens da cultura dominante, um quadro de pop art cheio de detritos da sociedade de consumo. Tem piada, mas o abuso da autofagia pós-moderna também cansa. Paranóico porque, de tantas vezes repetida, paranóia é a palavra-chave do livro. Abundam as organizações clandestinas e subversivas, fachadas que ocultam fachadas, “a máfia atrás da Máfia” (p. 272).

 

A América deste livro é a América da paranóia e das conspirações, de Salem e do Macartismo ao surgimento das figuras negras que marcam o fim simbólico do Verão do amor e da idade da inocência hippie: Charles Manson e Richard Nixon, duas ausências omnipresentes na atmosfera do romance. Misturados todos os ingredientes pelo virtuosismo pop de Pynchon, Vício Intrínseco resulta num requiem psicadélico e paranóico para o “pequeno parêntesis de luz” (p. 279) que foram os anos sessenta.  

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:48
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Uma Biografia dos Diabos

Ler a História Política do Diabo como um trabalho historiográfico pode ser demasiado exigente para o leitor incréu. Publicado em 1726, quando Daniel Defoe, autor de Robinson Crusoé, abandonara a ficção, o livro também não é uma sátira, não obstante o humor e a crítica social e religiosa que se encontram em algumas passagens. Para ser filosofia tem tudo, só lhe falta a filosofia a sério. Então, o que é este livro? O objectivo de Defoe seria o de provar que a crença na existência do Diabo não era uma questão de fé e que não implicava uma adesão a uma ideia folclórica da figura, que o próprio rejeitava. O Diabo não andava por aí a deixar um rasto de enxofre e a esconder o pé de bode, mas andava por aí a exercer o seu domínio sobre o mundo e a levar a cabo a sua vingança contra a humanidade. O livro teria a utilidade de mostrar aos leitores “aquilo que ele é e aquilo que ele não é” e “onde ele está e onde ele não está”, partindo da premissa que “aqueles que não conhecem o mal, não conhecem o bem”. A primeira parte da obra é, pois, dedicada a uma releitura dos sucessos do Diabo tal como os encontramos relatados no Antigo Testamento. Desde a tentativa falhada de putsch celestial aos acontecimentos no Jardim do Éden, da forma como Caim matou o irmão à desgraça pós-diluviana de Noé, da destruição de Sodoma e Gomorra ao sofrimento infligido a Job, Defoe analisa, interpreta, fabula (pp. 117-124), verseja (pp. 44-46; 73-75), traça o perfil criminoso de Satã e, en passant, arrasa John Milton e o seu Paraíso Perdido. Neste último ponto, História Política do Diabo pode ser lido como uma obra-prima de humor involuntário. Milton é acusado de ter escrito um bom devaneio poético “porém não baseado nas Escrituras ou na filosofia” (p. 85). Um dos seus pecados teria sido o de confundir anjos e santos, colocando estes últimos em acção antes da criação do Homem. Não é o mesmo que discutir o sexo dos anjos mas anda suficientemente perto para que classifiquemos a questão como bizantina e, a não ser que tenhamos a caridade de a ler como sátira, inequivocamente estulta. Quando não está a refazer o percurso do Diabo ou a espancar Milton, Defoe levanta questões filosóficas importantes, como a da natureza e origem do Mal (“como puderam as sementes do crime florescer na natureza angelical?” p. 72), embora nunca providencie respostas. O que lhe interessa é identificar as características do Diabo (como a incapacidade deste para prever o futuro, algo que Defoe repete quase a cada página) e as estratégias por ele utilizadas para atacar a humanidade. Esta primeira parte, na qual o autor revela um amplo conhecimento do Antigo Testamento, serve de longo intróito à segunda parte em que Defoe procura demonstrar, com vários e polémicos exemplos, que o Diabo continuava a agir, embora o fizesse de uma forma dissimulada, in tenebris. Defoe larga o osso de Milton e lança-se, mais coisa, menos coisa, às canelas do resto da humanidade: governantes, a Europa católica, muçulmanos e até mesmo aqueles protestantes que tinham afrouxado a adoração e o rigor no culto, mas também o homem comum, os bêbados e os caluniadores, as videntes e os astrólogos, todos seriam agentes, mais ou menos conscientes, ao serviço do verdadeiro monarca universal. Ao contrário do que acontecera nos tempos antigos, as tarefas do Diabo eram agora desempenhadas em out-sourcing, o que muito contribuía para a sua eficácia.

 

Os maus livros de História têm uma grande virtude: dizem-nos sempre mais sobre quem os escreveu e a época em que foram escritos do que sobre o eventual objecto de estudo. História Política do Diabo diz-nos muito sobre a mentalidade e os debates de uma época em que o Iluminismo começava a impor a sua luz às trevas do fanatismo e da superstição. Para Defoe, quer as superstições, quer o racionalismo, serviam os propósitos diabólicos. As primeiras transmitindo uma imagem errada do Diabo, o segundo negando a sua existência. Para os contrariar, criou uma prodigiosa arma de arremesso que ataca, de um só golpe, superstição e razão. Que a fonte historiográfica seja a Bíblia e que a análise dos factos seja condicionada pelo preconceito do autor, desacreditam o carácter pseudo-científico da obra, mas não lhe diminuem a importância enquanto documento histórico. Não é por Plínio descrever dragões que a sua História Natural é um documento menos relevante. O mesmo se pode dizer da obra de Defoe. Um clássico, sem dúvida, ainda que por razões não previstas pelo autor.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:47
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