Segunda-feira, 31 De Janeiro,2011

Dr. Vargas e Mr. Llosa?

Em ensaio dedicado a Mario Vargas Llosa, “O Fotógrafo Cego” [No Bosque do Espelho, Dom Quixote, 2009], o escritor Alberto Manguel atribui à “individualidade política” do peruano “o espantoso fracasso do seu romance de 1993, Lituma nos Andes.” Manguel considera-o um romance racista que fracassa “porque o seu racismo impede Vargas Llosa de escrever bem – isto é, impede-o de dar aos seus personagens, mesmo àqueles que abomina, uma alma [...].” Lituma nos Andes, sem dúvida um romance menor, seria um ajuste de contas literário pela derrota de Vargas Llosa nas eleições presidenciais peruanas de 1990, que o escritor perdeu para Alberto Fujimori. Na opinião de Manguel, há dois Vargas Llosa: um é o autor de romances “ambiciosos, sábios, arrogantes, espansivos”, o outro é “o seu incompetente leitor”, o Vargas Llosa político que transbordou para a literatura naquele romance falhado. Esta separação é, por várias razões, desadequada e injusta. Na análise de Manguel, Vargas Llosa é um Dr. Jekyll literário que à noite se transforma num Mr. Hyde reaccionário. Esta é uma visão superficial. Os romances do escritor peruano têm uma dimensão política - embora estejam muito longe de se esgotar aí - que não convida a destrinças maniqueístas. A justificação certeira da Academia Sueca para a atribuição do Nobel a Vargas Llosa (“pela sua cartografia das estruturas de poder e pelas suas imagens incisivas da resistência, revolta e derrota do indivíduo.”) capta a polpa política de uma obra que é também um dos cumes da literatura mundial do século XX. A política é tratada de forma mais directa em Conversa n’A Catedral, A Guerra do Fim do Mundo ou A Festa do Chibo, mas estes romances partilham com A Cidade e os Cães, O Elogio da Madrasta, Os Cadernos de Dom Rigoberto, A Tia Júlia e o Escrevedor e O Paraíso na Outra Esquina o tema da utopia da liberdade individual e da luta solitária do indivíduo contra as estruturas que o anulam. Os protagonistas enfrentam obstáculos que os afastam da bolsa de liberdade onde as únicas regras válidas são as suas e os únicos fins são o prazer e a realização pessoal. Este individualismo nunca é patológico ou misantrópico. É a defesa natural de quem procura manter o espaço privado a salvo de interferências externas. O herói típico de Vargas Llosa não foge do mundo, mas precisa de um refúgio que o ajude a manter a sanidade necessária para se relacionar com esse mundo. Isto é política num sentido amplo e faz do exercício de determinar onde acaba o Vargas Llosa “bom” e onde começa o Vargas Llosa “mau” uma inutilidade que só pode ser explicada pela discordância (legítima) de Manguel em relação a posições políticas, stricto sensu, de Vargas Llosa.

 

Roger Casement, o centro de O Sonho do Celta, é mais um naquela linhagem de heróis llosianos. Casement, figura histórica da luta irlandesa pela independência, foi condenado à morte por traição e executado em 1916. Anos antes, enquanto representante da Coroa britânica, denunciara as atrocidades cometidas no Congo, então sob domínio belga, e nas explorações de borracha na selva amazónica peruana. Dedicou-se depois à causa da emancipação irlandesa e, durante a I Guerra Mundial, procurou o apoio da Alemanha para combater os ingleses. No meio de inúmeras peripécias, Casement, que regressava à Irlanda para tentar impedir os seus correligionários de avançarem para uma empresa suicida, foi preso e condenado à forca. Simultaneamente, foi levada a cabo uma campanha de difamação baseada nos diários de Casement. Homossexual, nos seus diários descrevia telegraficamente muitos dos seus encontros sexuais, reais ou imaginados. As contradições de Casement foram a sua glória e a sua ruína. Dos crimes colonialistas que testemunhou em África e na Amazónia inferiu a necessidade de libertação da Irlanda do jugo britânico. Donde a transformação: da defesa dos valores universais e dos direitos humanos passou para um patriotismo fervoroso, quase fanático, embora distante da via messiânica e sacrificial preconizada por outros líderes. Ao mesmo tempo, Casement criou uma redoma não contaminada por esta dimensão política, por estas noções de dever, através da ficção sensual dos seus diários, os seus paraísos privados. E com isto inscreve-se na tradição dos heróis llosianos: obrigados a fazer cedências no mundo real, estes heróis constroem mundos interiores, oásis de liberdade individual. Os diários de Casement são o equivalente dos cadernos de Dom Rigoberto e das loucas ficções de A Tia Júlia e o Escrevedor.

 

É lícito vermos em Roger Casement não só uma criação típica do seu autor, mas também um argumento em defesa deste. Quem foi, afinal, Roger Casement? Um humanista ou um patriota fanático? Um corajoso defensor de causas nobres ou, como o acusaram os seus inimigos, um pervertido? Ou tudo isto ao mesmo tempo? Talvez seja esta a visão mais justa e válida do próprio Vargas Llosa que, quer enquanto romancista, quer na sua aventura política, sempre teve o mérito de nunca se ter escondido. Críticas como as que Alberto Manguel lhe dirige são o preço a pagar por essa exposição, por essa coragem de enfrentar o mundo fora do trono do seu estatuto literário. Como muitas das suas personagens, ao sair da literatura para entrar no combate político, Vargas Llosa prescindiu do ideal, da cátedra moral dos livros, para negociar no purgatório do possível. Os dois são o mesmo; não se anulam, engrandecem-se. E mesmo quando avaliada sob o ângulo estreito da política ou em função de um romance menos conseguido, a qualidade literária e a dimensão humana e universal da obra são inquestionáveis. Qualidade que é reforçada com este O Sonho do Celta. Não tem, é certo, o arrojo estrutural de Conversa n’A Catedral, ou a exuberância verbal e de imaginação de A Tia Júlia e o Escrevedor. O tom é mais neutro, factual, jornalístico, mas o domínio dos tempos narrativos continua perfeito, embora exibido de forma menos radical. O Sonho do Celta é um romance de uma segurança só possível num escritor que já nada tem a provar e em absoluto acordo com a sua condição de clássico contemporâneo.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:03
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Um Homem Singular

Comecemos pelo título, Um Homem Singular (A Single Man, no original). O homem é George, um professor de 58 anos a recuperar da morte do companheiro. É, portanto, um homem só, depois de anos de uma vida partilhada com outra pessoa. É um homem solteiro, a meio caminho entre as recordações dolorosas e as oportunidades do presente. É, por fim, um homem singular a redescobrir a individualidade e aquilo que o torna único entre tanta gente: a gente que o rodeia nas filas de trânsito, no supermercado, na universidade. Como sobressair no meio de vizinhos e alunos? Como encontrar o verdadeiro eu quando todos os dias é preciso desempenhar papéis tão diferentes como o do professor, o amigo ou o conhecido que cumpre sem emoção o dever de visitar alguém no hospital? Quem é George, agora que a pessoa mais importante da sua vida desapareceu? Quem é George, agora que a rotina e as certezas se desfizeram, abrindo um abismo à sua frente? Para os vizinhos, George é esquisito. Para os alunos, é muito traiçoeiro. Ele próprio sente-se um estranho. Mas George é também a ficha que o identifica no parque de estacionamento, é a marioneta que diz “Bom Dia” de forma categórica, um “Bom Dia” mais religioso do que mecânico e que é, em si, a reafirmação de uma fé, a expressão do optimismo espiritual da América. E, no entanto, George é outra coisa que está para além da impessoalidade das relações e dos gestos rituais. Dentro do grande aquário, George é um peixe diferente, o único que tem consciência dos limites do aquário. É, por isso, significativo que o momento culminante do romance seja um mergulho nocturno no oceano, na companhia de um aluno. O momento em que a relação deixa de ser simbólica e passa a ser real; o momento em que George é George, em que “lava o pensamento, as palavras, a disposição, o desejo, todo o seu íntimo, vidas inteiras; regressa de novo, cada vez mais limpo, mais livre, mais novo.” (p. 139)

 

Publicado em 1964, o romance de Christopher Isherwood (1904-1986) é uma celebração do “aqui e agora”, mesmo quando se sabe que o presente só dura um instante. A exaltação da beleza física – símbolo do efémero – é o motivo recorrente que prepara o caminho para a grande comunhão aquática. Um Homem Singular é uma recusa elegante da nostalgia, um manifesto sóbrio contra os efeitos alienantes do sofrimento. Um livro sábio e belo, uma composição de um júbilo triste.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:01
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Segunda-feira, 24 De Janeiro,2011

Pan

Para efeitos de análise literária, as simpatias nazis de Knut Hamsun, prémio Nobel em 1920, só têm interesse na medida em que podemos detectar correspondências estéticas entre este romance, Pan, e a corrente do Blut und Boden (o sangue e a terra), promovida a estética oficial do Nazismo. A apologia dos valores da vida rural e da harmonia com a natureza fazem parte da história do Tenente Thomas Glahn, contada pelo próprios nos seus diários, onde recorda um Verão passado numa casa isolada no bosque e a paixão violenta pela jovem Edwarda. Na companhia do seu cão, Esopo, Glahn caça para comer e passa os dias a contemplar a natureza e a meditar. A harmonia com o meio é total: “Tudo parece ligar-se ao meu próprio ser” (p. 26) e “A minha única amiga era a floresta e a sua grande solidão.” (p. 33). Glahn beija as folhas que encontra no chão e prostra-se em orações panteístas em que agradece pela “noite solitária, pelas montanhas”. A natureza reflecte as emoções humanas (a pedra com “uma expressão triste e desesperada”) e os homens assimilam as características da natureza (os sentimentos são como o Verão, belos, “mas duram apenas um instante”). O clima de comunhão é quebrado pela intromissão de sentimentos voláteis e dos comportamentos infantis das personagens. A mudança é tão brusca que o efeito chega a ser cómico. Atormentado pela paixão, Glahn atira um sapato de Edwarda para o mar, dá um tiro no próprio pé e cospe no ouvido de um rival. O sossego que encontra no bosque, dissipa-se quando é obrigado a conviver com outras pessoas, “cada vez mais incompreensíveis.” (p. 66).

 

A estrutura do romance (os diários e o epílogo com um narrador diferente), mas também o tema e o final trágico, evoca A Paixão do Jovem Werther, de Goethe. À excepção do dispensável epílogo, é dominado pelo intenso subjectivismo do narrador, expresso nos delírios da sua imaginação, na súbita introdução de personagens que surgem como aparições e nas sinestesias pedidas de empréstimo ao Simbolismo (“arrepios dourados” ou “memória luxuriante de um vermelho rosado”). Essa visão parcial dos acontecimentos estimula no leitor uma maior empatia pela atmosfera pagã e pelas descrições bucólicas do que pela características psicológicas das personagens. Entre a inconstância dos seres humanos e a firmeza serena de uma pedra, o romance de Hamsun inclina-se para o afecto mineral.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 16:43
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Domingo, 16 De Janeiro,2011

Os Comboios vão para o Purgatório

“ – Deviam ser uns três mil”, murmura José Arcadio Segundo em Cem Anos de Solidão, depois de escapar de um comboio cheio de cadáveres. “Foram mais de três mil os mortos na escola de Santa Maria”, diz uma das personagens de Os Comboios vão para o Purgatório, do chileno Hernán Rivera Letelier.


Morte, anjos e fantasmas cruzam as páginas deste romance, cuja acção decorre num comboio que atravessa o Atacama, “o deserto mais triste do mundo”, em direcção ao purgatório. Os passageiros estão vivos mas envoltos numa aura sobrenatural, num limbo de esperanças ténues e de recordações amargas: “o facto de viajar, sobretudo de comboio, levava homens e mulheres a entrarem num estado de crepúsculo” (p. 19) ou “extenuados e sujos, com cara de mortos que acabaram de sair da vala comum” (p. 139). Estamos, portanto, nos terrenos áridos de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, mas na prosa de Rivera Letelier sopra um vento da grandiloquência de García Márquez. Uberlinda Linares, a paixão do acordeonista Lorenzo Anabalón, é uma mulher de qualidades demiúrgicas que lembra Pilar Ternera, personagem de Cem Anos de Solidão. A mulher cujo “riso louco enchia o mundo de pássaros” (p. 172) tem a mesma alegria vital de Pilar Ternera, “cujo riso explosivo espantava as pombas”. Ao longo do livro, a adjectivação tem o mesmo fôlego cosmogónico e escatológico, de natureza bíblica: “lascívia de animal edénico” (p. 12), “um assombro original” (p. 43), o “incêndio bíblico de um monumental pôr-do-sol” (p. 38).


Um dos pontos fracos do romance é o abuso no recurso a fantasmas, num esforço para acentuar a carga espectral da história. Em poucas páginas, há um corrupio de fantasmas e derivados: “presença fantasma”, “luz fantasmagórica das fogueiras”, globos de brilho fantasmal”, “o fulgor das luzes reflecte-se espectral”, “destroços de povoação fantasma”, etc. O mesmo sucede com os anjos que são de areia, criaturas celestiais, perversos, obstipados, famélicos, decrépitos, festivos, perdidos e até Uberlinda é uma espécie de animal angélico.
Embora o comboio de Rivera Letelier percorra os trilhos do realismo mágico (a transmissão oral de lendas e superstições), não se limita a repetir uma fórmula. Há uma autenticidade na sua escrita, uma crença quase ingénua na força da história, que o eleva acima da cópia preguiçosa e repetitiva. Nos mesmos carris, podem fazer-se viagens muito diferentes.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:06
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A Ilha do Tesouro

Os clássicos chegam até nós muito antes de os lermos. São nossos mesmo antes de virarmos a primeira página. São livros que lemos “com prévio fervor e misteriosa lealdade”, para utilizar a definição de Jorge Luis Borges. A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, é um desses livros. Por isso, quando o lemos, o sentimento não é de descoberta, mas de reencontro. O reencontro com algo que nos pertence desde sempre: Long John Silver, o pirata arquetípico da perna de pau e de papagaio ao ombro, o mapa do tesouro com o X que marca o local, a coragem adolescente de Jim Hawkins.

 

Seja qual for a classificação – romance de aventuras, de formação ou para jovens – o mais interessante é observar os meios que Stevenson usou para exacerbar a imaginação dos seus leitores. As hipérboles que tornam tudo excessivo, como convém ao romance de aventuras: “o pirata mais sanguinário” (p. 53), “dava a impressão de ser o melhor homem deste mundo” (p. 85), “era o homem mais generoso que havia no mundo” (p. 119), “jamais houve gente tão feliz” (p. 257); o repertório de emoções fortes, como injecções de adrenalina em cada página: “infundia um terror de morte” (p. 38), “o coração batia-me desordenadamente” (p. 39), “um ruído que me pôs o coração na boca” (p. 41), “ainda me não recompusera do pavor horrível” (p. 95), “comecei a sentir-me horrivelmente assustado” (p. 189), “sentia-me extraordinariamente entusiasmado” (p. 189), “prossegui, já em estado de grande exaltação” (p. 214); a promessa de acontecimentos extraordinários: “Tinha o espírito cheio de sonhos de aventuras no mar e em ilhas exóticas”, contudo “naquele sonhar acordado não aconteciam aventuras mais extraordinárias do que as que íamos viver” (p. 61); o conflito entre valores como a coragem, a honra e o dever, representados pelo grupo do narrador, e a ganância, a crueldade e a imoderação (alcoólica e financeira) dos piratas. Entre estes dois blocos antagónicos, desenhados a preto e branco, ressalta o colorido e moralmente ambíguo Long John Silver, com as suas constantes alterações de humor, de planos e de lealdades. Um vilão que não conseguimos odiar e de quem queremos gostar mais do que a sua personalidade desconcertante nos aconselha; por fim, o tesouro que simboliza o regresso ao prazer de uma leitura inocente e mágica. O tesouro que Robert Louis Stevenson trouxe de uma ilha longínqua para o deixar, eternamente, ao alcance das nossas mãos.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:05
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Quinta-feira, 06 De Janeiro,2011

A Literatura Nazi nas Américas

Ao Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges, falta esse magnífico animal chileno, o Roberto Bolaño (1953-2003). Escritor compulsivo, o Bolaño é um híbrido de cabeça borgesiana e de corpo realista, visceral, não raras vezes escatológico. É omnívoro, embora a sua dieta não inclua o realismo mágico, cuja simples visão lhe provoca reacções nervosas extremas. Acusado de ser um writer’s writer (animal meta-literário e erudito, contem-se as personagens dos seus livros que são escritores ou literatos), tempera essa tendência com um excesso de realismo que, por sua vez, descamba num ambiente ainda mais onírico e irreal (ver A Parte dos Crimes, em 2666). O Bolaño pega na herança de Borges e leva-a para campos de batalha e desertos cheios de cadáveres. Tão depressa cita William Beckford como logo a seguir nos serve descrições sangrentas de torturas; salta de Melville para um grafismo sexual que pede meças aos especialistas do género; inventa escritores centro-europeus e sádicos latino-americanos; domina as bibliotecas sagradas e as ruas sórdidas; da árvore da ciência só comeu metade do fruto: o que lhe deu o conhecimento do mal.

 

Em forma de enciclopédia de escritores imaginários e de bibliografias inventadas, A Literatura Nazi nas Américas (1996) é um produto da cabeça borgesiana de Bolaño e peça central do puzzle que é a sua obra. Entre personagens extravagantes, como o poeta argentino que também é líder da claque do Boca ou o pensador brasileiro especialista em refutações prolixas de grandes nomes da filosofia, aparecem pela primeira vez outras que hão-de ser repescadas no futuro: Ramírez Hoffman é o modelo para Carlos Wieder de Estrela Distante e a história do general romeno Eugenio Entrescu é narrada pormenorizadamente em 2666. Os grandes temas – o Mal, a loucura, a solidão do escritor perante uma eternidade que desdenha dos seus esforços – são anunciados. O ofício da literatura, capaz de proporcionar a glória, é também a via tortuosa para o esquecimento. Os escritores imaginados por Bolaño suicidam-se, enlouquecem, desistem, abrem frutarias ou restaurantes, os textos inéditos são atirados para o lixo - é longo o inventário de derrotas e desenganos. O que pode um escritor contra o tempo se entre uma biografia imaginária e a vida de um autor que já ninguém lê não existe uma diferença substancial? Só há uma saída: escrever, escrever, escrever. É essa a lição de A Literatura Nazi nas Américas. É esse o exemplo do animal Bolaño.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:29
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De ângulo aberto

Em Silêncio [1966], romance de Shusaku Endo (1923-1966), um missionário português vagueia por montes japoneses e, mesmo morto de fome e de cansaço, observa que “[h]á aqui árvores que o Senhor plantou em todos os países, mas também as há que só aqui se vêem” (p. 108). O leitor que se aventure pela floresta da literatura japonesa também não resistirá ao impulso taxonómico de classificar o que lê, distinguindo entre o que reconhece como próximo e o que o atrai pela estranheza. Não é raro que o leitor seja seduzido pelo canto de sereia do exótico. Aqueles que o procuram querem apenas reforçar a imagem preconcebida de uma realidade longínqua e pouco nítida. A literatura exótica oferece essa imagem cristalizada. É uma literatura definida de fora, criada em função das necessidades e limitações do leitor. No caso do Japão, o leitor nem sequer precisa de recorrer a autores japoneses, basta procurar escritores que explorem uma imagem “sobre-orientalizada”, exótica e simplista do “país do sol nascente”. Neles encontrará os lugares-comuns do seu contentamento: um país de valores milenares inalteráveis, com muitos samurais e gueixas, mumificado e enfiado em trezentas páginas precisamente para conforto e prazer do leitor-turista. A descrição de turistas americanos feita por Yasunary Kawabata (1899-1972), em A Beleza e a Tristeza [1966], adequa-se a esse género de leitores: “Dois casais americanos de meia-idade voltaram da carruagem restaurante e, assim que viram o monte Fuji para lá de Numazu, pararam ansiosos junto das janelas a tirar fotografias. Na altura em que o Fuji se tornou completamente visível, até aos campos no seu sopé, pareceram cansados e de fotografar e viraram-lhe as costas.” (p. 10). O leitor-turista procura e encanta-se com o superficial, mas depressa se aborrece.

 

Apesar da insularidade geográfica e cultural do Japão, a história da recepção de influências exteriores, nomeadamente ocidentais, não é apenas longa, é também um dos temas dominantes da literatura japonesa. Desde meados do século XIX, quando a literatura japonesa se abriu ao exterior, o conflito entre tradição e modernidade, entre Oriente e Ocidente, aparece frequentemente, ora em primeiro plano, ora como pano de fundo. De maneiras distintas, é isso que acontece nestes três romances do século XX japonês: O Navio dos Homens [1929], de Takiji Kobayashi (1903-1933), Silêncio e A Beleza e a Tristeza, de Yasunari Kawabata (1899-1972). Os romances, mas também as vidas dos escritores, os seus princípios estéticos, políticos e religiosos, são testemunhos de um Japão plural. Como em qualquer outra comunidade, a assimilação do que vinha de fora nem sempre foi pacífica: houve aceitação e resistência, devoção e repressão, diferenças entre as atitudes do povo e das elites. O Navio dos Homens e Silêncio ilustram essas contradições porque têm no centro a recepção nipónica ao comunismo e ao cristianismo, duas das grandes exportações intelectuais do Ocidente. O livro de Kobayashi é um romance-protesto, imbuído do espírito revolucionário e justiceiro do realismo socialista. A acção decorre no espaço fechado de um barco de pesca em que os trabalhadores são cruelmente explorados por uma caricatura de patrão ao serviço dos interesses capitalistas, para quem “perder cinco ou seis homens não tem qualquer importância, mas seria uma pena perder os botes.” (p. 51). Kobayashi não poupa na crueza para dramatizar as condições desumanas: os trabalhadores são castigados com ferros em brasa, são devorados pelos piolhos e obrigados a comer peixe podre, “enquanto os ricalhaços da companhia enchem os bolsos!” (p. 70). Expostos a um processo sumário de doutrinação ideológica, os pescadores revoltam-se e fazem uma greve. O Navio dos Homens é quase tão educativo e ideológico quanto um número do Avante! Os trabalhadores descobrem inusitadas afinidades com os russos (“seres humanos iguais a eles.” p. 56) e que a Rússia é uma espécie de paraíso na terra. Mais do que estético, o realismo de Kobayashi é político. Quanto mais pestilentas e negras são as descrições das vidas dos trabalhadores, mais urgente se torna a revolução. A ideologia apaga os nomes próprios dos pescadores (o estudante, o velho, o gago) e transforma-os na imparável massa proletária a caminho de um futuro radioso e, por oposição à miséria realista, fantástico.

 

Silêncio é um relato sobre a conturbada tentativa de enxertar a árvore do cristianismo no terreno pantanoso do Japão (ver prefácio de William Johnston). Conta a história do padre Sebastião Rodrigues, que arrisca ir para o Japão numa época em que as perseguições aos cristãos tinham atingido o paroxismo da ferocidade, no século XVII. Desde o momento que chega ao Japão até à sua captura pelas autoridades, o percurso de Rodrigues é crístico: a traição, a noite solitária no Jardim do Getsêmani, a via-sacra, o interrogatório de um Pôncio Pilatos japonês em que também se discute a verdade e, como eco constante, as palavras de Cristo na cruz: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”

 

Rodrigues chega ao Japão embriagado de misticismo e de voluntarismo evangelizador, mas o choque com a realidade faz com que o seu espírito bata em retirada. Disposto a semear a verdade numa terra que lhe é hostil, é Rodrigues que, perante as adversidades, acaba por acolher a semente da dúvida. O seu saber livresco e a sua auto-consciência impedem-no de dar o salto de fé para o abismo beatífico do martírio. As virtudes teóricas de Rodrigues empalidecem perante a devoção genuína e destemida dos cristãos japoneses, perante aquele cristianismo rude, talvez deturpado, que os leva ao encontro da morte enquanto louvam o Deus que veio de fora.

 

A comparação com os trabalhadores de Kobayashi, também eles munidos de conhecimentos teóricos rudimentares, é inevitável: com meia-dúzia de panfletos e umas sucintas explicações do que é o comunismo, estão preparados para dar o salto de fé da revolta. Os operários entram no barco e dizem “Vamos até ao inferno!” (p. 11); a caminho do martírio os cristãos de Endo cantam: “Vamos a caminho / A caminho do Paraíso” (p. 100). Neste ponto faz sentido acrescentar factos biográficos dos escritores. Enquanto católico num país em que os católicos não chegavam a 1% da população, Endo carregava simbolicamente uma história de perseguições e de torturas. O seu pessimismo radica nessa herança histórica. Kobayashi, que era membro do Partido Comunista Japonês, escreveu na época em que o comunismo era a promessa de redenção da humanidade por uma via não-religiosa; tudo o que carregava era as ilusões benignas de uma ideologia. Ironicamente, foi o próprio Kobayashi que acabou como mártir. Em 1933, aos 30 anos, foi assassinado pela polícia secreta, após cinco horas de tortura.

 

Da via-sacra messiânica de Sebastião Rodrigues e da revolta potemkinesca dos pescadores japoneses passamos para os cenários mais domésticos e passionais de Yasunary Kawabata, o primeiro japonês a receber o Nobel. A Beleza e a Tristeza é a história de Oki, um escritor que, após muitos anos de separação, reencontra a mulher com quem teve um caso quando ela ainda era adolescente. Oki, casado e com dois filhos, ainda vive do sucesso de um romance baseado naquela relação. Okoto é agora uma pintora consagrada que vive com Keiko, uma discípula ciumenta e que planeia vingar-se de Oki pelo sofrimento que este causou à sua protectora. A tragédia que se adivinha não cavalga uma onda de acontecimentos estrepitosos. Vem, quase silenciosa, unida à serenidade cortante do estilo de Kawabata. A inexpressividade aparente das personagens, que na verdade fervem de angústias e de emoções contidas, resulta da técnica que Kawabata usa para dominar o desenvolvimento do drama psicológico. Entre cenários solenes que inspiram tranquilidade (os montes, os templos, os jardins de pedra) e sentimentos que se expressam de uma forma ritualizada, há uma sugestão de violência latente, a pulsar debaixo de uma camada severa de códigos sociais. O tema da ocidentalização, do conflito entre modernidade e tradição, surge diluído na teia trágica. Oki procura refúgio na tradição e nota a crescente influência do estilo de vida ocidental, por exemplo, nas comemorações do Ano Novo: “Em casa, em Kamakura, estaria tudo bastante ocidentalizado tal como aparecia nas fotografias a cores das revistas femininas.” (p. 30). Quando o filho decide estudar literatura moderna, Oki desencoraja-o e pede-lhe para se dedicar ao estudo de literatura japonesa medieval. Esse Japão sólido e distante é evocado ao longo de todo o livro através da arquitectura, da arte funerária, da poesia e da pintura e serve de contraponto à instabilidade das personagens, sobretudo de Keiko, a portadora dos ventos da tragédia.

 

São três romances artisticamente heterogéneos. O Navio dos Homens é pouco mais do que um artefacto arqueológico das boas intenções do realismo socialista. Silêncio é um romance que, partindo de um ponto de vista católico, aprofunda questões como a fé e o papel central do sofrimento no cristianismo, cuja ressonância ultrapassa os muros paroquiais, daí a justa comparação com Graham Greene. A Beleza e a Tristeza centra-se em relações íntimas, exploradas com uma delicadeza aguda, em que o conflito entre tradição e modernidade contribui para caracterizar as personagens, embora esteja longe de ser o tema central. Geneticamente japoneses (com gueixas, saquê, samurais e teatro kabuki), têm, no entanto, um apelo universal, tratam de questões humanas que extravasam limites alfandegários - amor, traição e vingança, fé e justiça, dúvida e revolta - e ao fazê-lo dão ao leitor a possibilidade de ver a experiência japonesa sob um ângulo mais aberto que destrói concepções apriorísticas baseadas em impressões superficiais. Com este movimento do particular para o universal, quebram as barreiras que separam o leitor de uma realidade que lhe é distante e aproximam-no do Outro. Outro que nos surpreende e comove não pelo que tem de turístico ou exótico, mas por aquilo que é comum à nossa humanidade partilhada.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:27
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