No aeroporto

No nº 104 da Ler:

 

À excepção das pessoas que nele trabalham ou em caso de catástrofes ocasionais como greves de pilotos e erupções de vulcões islandeses, ninguém passa muito tempo num aeroporto. Os terminais são projectados como locais de passagem, gigantescas salas de espera onde não existe nada que provoque o desejo de permanecer. Por este motivo, a experiência, presumivelmente bem paga, a que o escritor Alain de Botton se sujeitou é um movimento contrário a toda a lógica da concepção e funcionamento de um aeroporto. A empresa que gere o terminal de Heathrow convidou o autor de Como Proust Pode Mudar a Sua Vida a tornar-se no primeiro escritor-residente daquele espaço. A missão de De Botton seria a de, durante uma semana, observar os passageiros a partir de uma secretária estrategicamente colocada na zona de partidas. O resultado é este livro a meio caminho entre a monografia antropológica de ambições literárias e a publicidade disfarçada de mecenato.

 

Se permanecermos o tempo suficiente num local muito frequentado, onde seres humanos entram e saem constantemente, se lhes observarmos os comportamentos, os gestos, se lhes ouvirmos algumas palavras, a nossa tendência, enquanto membros de uma espécie de narradores, é a de pegar nesses elementos esparsos e juntá-los num todo que faça sentido, num esforço a que alguns espíritos ingénuos chamam de “uma boa história.” O caos aparente de pessoas que surgem no nosso campo de visão para, de seguida, desaparecerem para sempre, não nos satisfaz. Queremos compreendê-las, queremos que elas durem, queremos resgatá-las ao esquecimento e a forma mais simples que temos para o fazer é inventar-lhes uma história, escrever sobre elas, contar a alguém o que vimos e o que imaginamos. A missão que Alain de Botton aceitou foi, como tal, um exercício puro, ainda que generosamente patrocinado, de literatura: observação e registo, cristalização verbal de momentos frequentes – um reencontro, uma despedida – em acontecimentos que sobrevivem ao instante em que ocorreram e em que os intervenientes são desapossados do exclusivo das emoções. O leitor transforma-se no pai que revê o filho, a leitora revive os sentimentos da rapariga que se despede do namorado com beijos e lágrimas. De Botton soube resistir à tentação de criar narrativas – não era para isso que estava a ser pago. O seu olhar é o do fotógrafo que capta a força do instante mas que deixa que o leitor complete a narrativa através da imaginação.

 

Não-lugar

 

Há cerca de dez anos, tive a felicidade de ocupar algum do meu tempo livre como segurança. Calhavam-me, quase sempre, os indesejados turnos da noite. Certa vez, incumbiram-me de zelar pela segurança de uma estação de serviço de uma auto-estrada pouco movimentada. Durante toda a noite, pararam uns três clientes. Abasteceram, compraram cigarros, chocolates, água, e partiram. Fiquei eu e a funcionária da bomba de gasolina. Creio que o antropólogo Marc Augé nunca terá trabalhado como vigilante em estações de serviço, mas o seu conceito de não-lugar serve-lhes na perfeição. Fisicamente, um não-lugar assemelha-se a um cenário de filme. As luzes fluorescentes e as cores das embalagens, os óleos de motor a um canto e as garrafas de refrigerante nos frigoríficos, os expositores perto da caixa com pastilhas e rebuçados, as arcas cheias de gelados, as máquinas automáticas de café dão ao não-lugar que é uma bomba de gasolina uma atmosfera de falso, como se a qualquer momento um grupo de operários pudesse entrar e alterar o cenário por completo ou transplantá-lo para qualquer sítio longínquo sem que se notasse a diferença. Aquele espaço podia ser em qualquer lugar que não perderia nenhuma das suas características essenciais, é imune aos efeitos da localidade. É a mesma lógica de hipermercados, salas de cinema multiplex, restaurantes de fast-food, que assentam na lógica de um cliente nómada e não de um cliente sedentário e procuram oferecer o conforto do que é familiar. Apesar do esforço sincero das cabeças que os conceberam, em vez de familiaridade esses espaços normalmente provocam uma sensação de desorientação, de desequilíbrio e de confusão. Como são todos iguais, quando entramos num é como se entrássemos em lugar nenhum, aspirados para o interior de um buraco negro. Basta que imaginemos uma cidade em que todas as ruas fossem iguais: estaríamos sempre perdidos. Se passássemos uma grande parte do nosso tempo nesses templos do vazio (e há quem passe) os sintomas seriam intoleráveis. Enlouqueceríamos. O segredo está no facto de não terem sido pensados e construídos para que as pessoas neles se demorem. São pontos de passagem, não de convívio. O que distingue o não-lugar não é tanto o espaço, mas o tempo. A vida noutros séculos era programada em função de um tempo lento, de pessoas que se deslocavam pouco e devagar. Como tal, os lugares convidavam à pausa, à demora, à comunhão (praça, igreja, café). Hoje, a vida organiza-se em função do movimento, de um tempo rápido, de deslocações constantes. Se lhes chamamos não-lugares estamos a admitir que a velocidade que adquirimos nos transformou em não-pessoas, porque apenas não-pessoas podem habitar não-lugares. Não haverá espectáculo mais revelador desta dimensão cinética da nossa sociedade do que o de grupos de passageiros retidos em aeroportos. O desespero não é apenas o que resulta da espera, é o que advém da sensação de não se estar em lado nenhum, em trânsito num limbo de vozes de altifalante e écrans luminosos a assinalar chegadas, partidas e atrasos. Se pensarmos nos filmes de terror, vemos que os passageiros retidos num aeroporto se assemelham notavelmente a zombies (esqueçam a parte do sangue e das mutilações). Se pensarmos em filmes de viagens no tempo, o passageiro retido no aeroporto encontra-se naquele estado em que o protagonista fica preso no portal, incapaz de regressar ao presente. Na verdade, nos aeroportos, a existência das pessoas encontra-se em suspensão temporária. Daí que não haja lugar mais não-lugar do que um aeroporto.

 

No Aeroporto

 

Esta grandiosa concepção teórica foi o ponto de partida da minha visita ao aeroporto. Para que o passageiro distraído não pense que está prestes a entrar numa central de camionagem, é informado que “o aeroporto de Lisboa está mais aeroporto”. Em inglês, para não criar no turista dispensáveis dúvidas ontológicas, a frase passa para um pragmático “the Lisbon airport keeps getting better”. À entrada, protegida dos vândalos por um vidro, há uma escultura que se insere na corrente a que os críticos de arte designam por “foleira”: uma enorme bola, talvez um planeta, onde se incrustam estrelas e um space shuttle. Esclareço que não beneficiei das condições privilegiadas de Alain de Botton (que até tinha senhas de refeição). Entrei como um observador clandestino sem nada, para além de um caderno e de uma caneta, que me distinguisse do vulgar passageiro que cruza o aeroporto da Portela. E não precisei de muito tempo para tirar algumas conclusões: a zona de chegadas do aeroporto destrói mitos. Muitos dos nossos preconceitos sobre a frieza dos nórdicos cairiam por terra se víssemos uma adolescente alemã saltar mediterranicamente para os braços de um casal de meia-idade. Desconheço se este excesso de sentimentalismo será sintoma da decadência do povo germânico, mas agrada-me que os naturais de um país que produziu os Kraftwerk e o Bayern de Munique dos anos 70 sejam capazes de semelhantes demonstrações de humanidade. Uns minutos depois outra rapariga salta para o colo de um rapaz com uma elasticidade felina que faz lembrar festejos de golos e ginástica rítmica. Há outras recepções menos calorosas, ou porque a idade e forma física dos participantes não admite movimentos bruscos ou porque talvez o tempo de separação não tenha sido demasiado longo. O comedimento das emoções também pode significar uma manifestação de classe. Há quem queira mostrar que o hábito de viajar é corriqueiro e, para essas pessoas, celebrar chegadas ou chorar partidas assemelha-se a uma embaraçosa confissão de provincianismo.

 

O aeroporto despeja pessoas a um ritmo constante. Quando atravessam as portas é impossível não sentirem uma pontinha de vaidade, mesmo que os olhares ansiosos que as seguem pertençam a agentes de viagem à espera do senhor Tamura ou da senhora Rasmussen. Reparei que entre esta classe de esperadores profissionais, cuja função consiste em passar o dia a exibir uma folha a4 com o nome de alguém que nunca viram, existe uma cumplicidade que se reflecte em códigos humorísticos inacessíveis aos restantes mortais, como no caso de piadas sobre o melhor local para esperar islandeses. E lá se vão sucedendo os tipos humanos: um casal de lésbicas finlandesas, um indíviduo com todas as condições indumentárias para gerir um bar de alterne com moderado sucesso, um cantautor de patilhas anacrónicas, um homem dos seus cinquenta anos bronzeado que reencontra a mulher pálida enquanto reza para não ter apanhado nenhuma doença venérea durante uma suposta viagem de negócios, outro casal que se reencontra sem demasiado espalhafato mas cujo marido cumpre o protocolo com um bouquet burocrático de flores e, porque me estava a incomodar a falta de um lateral-esquerdo nesta colecção, o Álvaro Magalhães, mais magro ao vivo do que na televisão.

 

O aeroporto não nos fala apenas sobre as pequenas histórias das pessoas que o visitam. É também um espelho fiável do nosso admirável mundo novo, um laboratório dos temores contemporâneos. A aviação civil, mais do que qualquer outra área do mundo moderno, sentiu os efeitos do 11 de Setembro. Regras de segurança apertadas, longas filas de espera, revistas minuciosas de todos os passageiros, reacção musculada à mínima suspeita (normal quando até se inventam sapatos-bomba). Na zona do check-in, um painel informa os passageiros dos artigos que não são permitidos nos voos: venenos, explosivos, ácidos, facas, líquidos inflamáveis. Não sei se antigamente as pessoas, à excepção das que planeavam golpes de estado em países africanos, entravam nos aviões com este tipo de objectos. A verdade é que a proibição me parece razoável, mesmo que a exibição dos objectos proibidos numa vitrina se esforce por torná-la ridícula. Lado a lado, temos frascos de laca, isqueiros, um rolo da massa e um objecto que me pareceu simplesmente uma bomba.

 

 

No seu livro, Alain de Botton descreve uma “sala multifés”, um espaço pluriconfessional, adequadamente neutro e que permite aos crentes das mais variadas religiões um momento de recolhimento espiritual antes da viagem. Não encontrei nenhum espaço idêntico no aeroporto da Portela. Os únicos sinais de religiosidade encontravam-se expostos nas montras de algumas lojas: Nossas Senhoras de cores variáveis (do prateado ao verde-fluorescente) como se tivessem sido pensadas pelos mesmos designers suecos que trabalham para o Ikea. A indústria dos souvenirs é muito conservadora. Para além da mãe de Cristo, a aposta continua nos galos de Barcelos (também estes com cores apelativas), nas molduras de cortiça e em canecas que resumem Portugal a três palavras: peace, love e beach, que brevemente deverão ser substituídas por outras três, um pouco menos simpáticas: international, monetary e fund.

 

Ainda dentro da temática religiosa, de Botton relata o encontro com dois padres que prestam serviços de aconselhamento espiritual no aeroporto. Um deles, o reverendo Sturdy, estava identificado como “Padre do Aeroporto”, o que não deve ser tão mau como certas paróquias do interior. O meu encontro aeroportuário com a religião foi com duas evangelizadoras não oficiais, a Dona Maria da Conceição e uma amiga, ambas Testemunhas de Jeová. Quando as encontrei, estavam a distribuir brochuras e a tentar, sem muito sucesso, expor as suas teorias sobre o fim do mundo. Maria da Conceição admitiu que costuma pregar a palavra de Deus no aeroporto, mas queixou-se da cada vez menor receptividade das pessoas: “Já têm a religião delas. Dizem-me que são católicas e que não querem outras religiões.” Percebi que o negócio espiritual não é muito diferente dos seguros, da televisão por cabo e do casamento. Mesmo quando não estamos muito satisfeitos, não nos queremos dar ao trabalho de mudar. Perante a minha simpatia natural e um segundo de distração, Maria da Conceição (tive o cuidado de não lhe chamar a atenção para a ironia do seu catolicíssimo nome) aproveita para me utilizar como cobaia das suas técnicas de evangelização. Cita de memória Isaías 43:10 e lança-se inesperadamente numa descrição minuciosa da história do dilúvio, salientando que as pessoas também não queriam ouvir o que Noé tinha para dizer. A narração é tão exaltada e pormenorizada que temo estar perante a última testemunha ocular da catástrofe bíblica. Terminada a prelecção, despedimo-nos com um sincero e recíproco desejo de felicidades apenas ensombrado pelo aviso de que o fim está próximo.

 

O interior do aeroporto é agradável, de uma dimensão humana que não intimida e que não inspira reverência aeronáutica. Isso também explica a animação de um pitoresco grupo de surfistas: cabelos amarelo-torrado, sacos rip curl e quicksilver, um rapaz que grita por uma Constança que não aparece. O que mais impressiona não é a juventude dos jovens, mas a perpétua adolescência de alguns quarentões que por ali circulam com fitas, cabelos grisalhos e encrespados, os dentes mais brancos pelo contraste com a pele curtida por horas de sol e sal. Têm o ar pacífico e boa onda dos hippies, embora não partilhem com estes a tendência para a meditação alienada ao som de Frank Zappa. Subitamente a frase “destrói as ondas e não as praias” parece-me uma verdade teológica e universal. Poucos segundo depois, os surfistas afastam-se e apercebo-me que a frase não passa de uma inocuidade de ambições viris, consciência ecológica e má publicidade. Logo a seguir, um sujeito com todo o ar de quem nunca destruiu ondas ou que saiba sequer nadar atravessa o meu campo de visão. Veste um pólo amarelo e, numa gritante atrocidade estética, uma gravata azul. É provável que esteja a acabar um doutoramento em física na Universidade de Lovaina.

 

Na maior livraria do aeroporto de Heathrow, Alain de Botton encontrou livros de Milan Kundera e Raymond Carver. Talvez eu não tenha procurado o suficiente, mas na livraria do aeroporto da Portela só me lembro de ver Nora Roberts, Katherine Neville e uma prateleira exclusivamente dedicada a Stephen King. Mas nenhum tipo de literatura me marcou mais do que a primeira página do Daily Mirror: “Giggs Tried to Seduce Lover’s Mother”, um título que arruinou anos de crença no fair play britânico. Outro tablóide inglês garantia que Giggs é viciado em sexo e atribuiu-lhe a mais elevada distinção da Ordem dos Viciados em Sexo, apelidando-o de novo Tiger Woods. No meio desta torrente de escândalos, e visivelmente incomodados com as más companhias, estavam dois exemplares da revista Ler.

 

Na zona de chegadas, eram vários os passageiros que regressavam a Portugal apoiados em muletas. As férias em climas tropicais inspiram nas pessoas uma confiança exagerada nas suas capacidades físicas e em músculos atrofiados por anos de escritório e facebook. Pergunto-me: por que é que as pessoas viajam? Podemos identificar dois grandes grupos: os profissionais e os turistas. Alain de Botton fala do significado que, no passado, as viagens tinham como ponto de partida para uma mudança interior, de que são exemplo as peregrinações. Também se socorre da observação de uma família britânica de partida para umas “férias de sonho” na Grécia para referir a futilidade de alguns dos nossos projectos de viagem. Esperamos que o facto de ir para um lugar qualquer, sobretudo se for um local com sol, praia e pequeno-almoço, resulte numa espécie de truque de magia em que, subitamente, todos os nossos problemas desaparecem e tudo à nossa volta é felicidade, bem-estar e pessoas bronzeadas. Que isto é uma esperança fútil, podemos constatá-lo naqueles questionários inofensivos através dos quais se procura obter declarações de celebridades sem violentar o seu direito à banalidade. Quase todas adoram viajar, que é o mesmo que dizer escapar. Da literatura de puro entretenimento diz-se que é escapista. Com a democratização das viagens aéreas, o escapismo mudou-se para a vida real. As pessoas, na verdade, já não viajam; escapam, escapadinham. Colorimos a nossa existência sedentária com pinceladas fugazes de nomadismo temporário. O verdadeiro nomadismo só é vivido pelos profissionais, como a personagem de George Clooney no filme (e livro) Nas Nuvens, que Alain de Botton descreve assim: “À noite, o aeroporto transforma-se num lar de espíritos nómadas, tipos que não se conseguem comprometer com nenhum país em particular, que fogem da tradição, que suspeitam da comunidade enraizada e que, portanto, só se sentem verdadeiramente confortáveis nas zonas intermédias do mundo moderno, paisagens golpeadas por depósitos de armazenamento de combustível, parques de negócios e hotéis de aeroporto.” Em última análise, as viagens aéreas criaram uma nova categoria de seres humanos, que deve estranhar que alguém adopte a postura de simples observador num aeroporto. Estar no aeroporto para observar e registar, sem origem ou destino, sem esperar ninguém nem ter ninguém à nossa espera é, porém, uma metáfora feliz da condição de espectadores da vida. À nossa volta circulam pessoas com destinos, esperanças, sonhos, saudades, nostalgia e anseios. A nós, que os observamos, impedidos de participar nesse fluxo contínuo de sentimentos, resta-nos a imaginação e as palavras.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 10:29
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