Domingo, 18 De Setembro,2011

Flores Azuis

Flores Azuis pode ter ganho a Copa de Literatura Brasileira, mas a exibição não convence. O romance de Carola Saavedra começa com a carta de uma mulher ao ex-amante cheia de tua-boca-na-minha-boca e será-que-te-lembras?-não-não-te-lembras. O leitor impaciente pode sentir-se tentado a deixar a personagem entregue ao seu onanismo epistolar. Seguem-se mais oito cartas intercaladas pela história do homem que, acidentalmente, as recebe. Na ressaca de um divórcio, Marcos, o novo inquilino do apartamento onde vivia o amante da mulher que escreve as cartas, não resiste à tentação de as ler. E naquelas palavras encontra uma promessa de mulher totalmente diferente das que conhece: a ex-mulher, a actual namorada e até a própria filha de três anos, que é menos uma criança do que uma incubadora de defeitos femininos. As personagens femininas são um autêntico auto-golo. A namorada e a ex-mulher são como a frente e o verso de uma figura de cartão, sem outra função que não seja a de levar Marcos a concluir que “o mundo das mulheres é um mundo fechado[...], um mundo à parte” (p. 69). “Mulheres-vampiro”, belas e exigentes, são meros acessórios narrativos sem qualquer espessura dramática. E quando as personagens são frágeis, a fé do leitor vira-se para a prosa, embora a de Carola Saavedra não chegue para salvar o livro da mediania. Há uma intensidade lírica, sobretudo no formato epistolar, feita de reiterações e dupla adjectivação (“mas você aí, alheio, mudo” p. 6; “o teu rosto tenso, apreensivo” p. 7; “Eu fiquei ali, imóvel, muda” p. 39; “teu jeito dócil, indefeso” p. 59), que corteja o género de impressionismo vago que desconhece o conceito de mot juste. A prosa poética é sempre uma linha magra entre o sublime e o sentimentalismo pueril. Noutros momentos, acontece aquilo que os brasileiros chamam pisar na bola. “As crianças deveriam vir com um manual de instruções” (p. 15) e “todas as mulheres eram assim, exigiam atenção, segurança e uma expectativa que ele não sabia qual era” (p. 101) soam a banal psicologia de revista de domingo.

 

A melhor jogada do livro é a ideia wittgensteiniana segundo a qual os limites de uma relação são os limites da linguagem que a descreve. Ao revisitarem o momento da separação, as cartas prolongam a relação, como se esta não pudesse terminar enquanto as palavras a reinventassem. A., a autora das cartas, quer salvar através das palavras aquilo que foi destruído pelas palavras, pelos mal-entendidos. Como as cartas são um trabalho de reconstituição da relação, dispensam o destinatário, bastam-se a elas próprias (“sou apenas eu, eu tudo, o desejo, a escrita, a leitura” p. 21). O amor, o ódio, a violência, o sexo, um punho que entra no corpo da mulher, não acontecem no momento em que acontecem. Acontecem depois, inteiros e nítidos, nas palavras. Terá sido o suficiente para levar a Copa para casa, mas, tal como o Brasil dos dois trincos, o conjunto não encanta.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 23:00
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Quartos Imperiais

O Psicopata Americano é um romance de horror pornográfico”. Quando Alberto Manguel fez esta descrição do mais célebre romance de Bret Easton Ellis (n. 1964) não estava a pensar em elogios, mas resumiu as poucas qualidades do livro. Quartos Imperiais, sequela (também no sentido clínico do termo) do romance de estreia de Ellis, Menos que Zero, tem pouco horror e pouca pornografia. E é pena porque são os únicos géneros que o autor domina com razoável competência. Quando sai daquilo que é o equivalente literário dos filmes de torture porn (literatura a que chamaríamos snuff), o estilo de Ellis é tão pobre que só pode ser identificado pela obsessão com as marcas e por descrições que condenariam qualquer outro ser humano a escrever panfletos de imobiliárias para o resto da vida (“Decorado em estilo minimal, suaves cremes e cinzentos com chão de madeira e iluminação indirecta, tem apenas 400 metros quadrados[...]”, p. 19). Estes defeitos seriam desculpáveis se, em compensação, as personagens, os diálogos e a intriga fossem superlativos. É o mínimo que se pode exigir a um escritor que afirma não se preocupar com a Literatura.

 

O regresso às personagens do primeiro romance empresta às páginas iniciais um tom de revivalismo metaliterário. Regressam Clay, que continua a ser o narrador, a ex-namorada Blair, o traficante Rip Millar e o prostituto Julian Wells: a geração de 80 transportada para o século XXI. Clay é agora um argumentista de relativo sucesso que se envolve com uma rapariga que tem o sonho de ser actriz, mas nenhum do talento necessário para tal. Esta é a ponta de um novelo que, atabalhoadamente, acaba por envolver todas as figuras do passado de Clay. Ellis tinha matéria para uma elegia crepuscular por um tempo que passou, mas é melhor a nomear esse sentimento de perda do que a demonstrá-lo: “Tristeza: está por toda a parte.” (p. 22). À excepção dos sinais de decadência física e dessa tristeza por demonstrar, as personagens mantêm os mesmos hábitos de há 25 anos: festas, sexo, drogas e bebida. A única diferença é que o fazem enquanto recebem mensagens de telemóvel, trocam e-mails e tomam viagra. O leitor pode perguntar-se se a introdução de complexidade em vidas que são, na essência, superficiais não será uma intromissão abusiva do romancista. Acontece que essa é precisamente a função do escritor: escavar sob a superfície. Acontece também que os romances de Ellis são tão superficiais e vazios como as personagens que os habitam. Há sexo mas não há verdadeiro desejo, como se as personagens fossem autómatos com genitália; há violência gráfica, mas é sempre gratuita e desprovida de qualquer contexo emocional. É uma violência brutal e desumanizada, como na cena em que Clay abusa sexualmente de dois jovens.

 

A tradução portuguesa também não ajuda o autor: “tristeza aditiva” (p. 39) ou “era como se ela estivesse a tentar fazer sentido de mim” (p. 166) servem como exemplos. O melhor que se pode dizer é que, pelo menos, não se estragam dois trabalhos.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 22:57
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Sexta-feira, 09 De Setembro,2011

Union Atlantic

Celebrado como “o primeiro grande romance do novo século”, Union Atlantic padece da obsessão em não falhar nenhum dos grandes temas da América contemporânea: 11 de Setembro, guerra do Iraque, terrorismo e crise financeira. Se a história não terminasse em 2002 teríamos a eleição de Obama, a reforma da saúde e a morte de Bin Laden. Mas não é por tocar em todas as bandeirinhas sem perder o equilíbrio narrativo, como um esquiador habilidoso num slalom gigante, que Adam Haslett capta o zeitgeist. Algumas das soluções são mesmo forçadas, como a escolha da festa do 4 de Julho para momento central do romance e que termina, previsivelmente, num pequeno apocalipse. A esta metáfora, desajeitada de tão óbvia, juntam-se pecadilhos como o excesso de minúcia sobre o funcionamento dos mercados e do sistema bancário que tem o duplo defeito de não surpreender os especialistas e de aborrecer os leigos. A dada altura, o romance parece-se com uma das personagens, capaz de reter imensa informação histórica, mas com grandes dificuldades “em organizar a sua própria vida.”

 

Também a construção das personagens obedece a um simbolismo esquemático que pode ser dividido em três blocos: a velha guarda, representada pelos irmãos Charlotte e Henry Graves, os tubarões hedonistas da finança (Doug Fanning, Jeffrey Holland e Paul McTeague) e a juventude anestesiada por doses excessivas de relativismo e de erva (Nate). No entanto, o instinto de Adam Haslett leva-o a acertar no diagnóstico final, como um médico incapaz de analisar exames mas competente a detectar doenças através de uma simples observação do paciente. E o mal do nosso tempo é a implosão da “arquitectura invisível da confiança” em que assenta o nosso modo de vida. A confiança que é a pedra fundamental no sistema bancário, nas instituições políticas e nas relações pessoais e familiares. O mundo de Charlotte e de Henry, o mundo estabelecido sobre regras sólidas e valores perenes, está ameaçado pela cultura de ostentação e desperdício personificada por Doug Fanning. Entre estas duas margens, a geração de Nate flutua sem destino.

 

Apesar do hiper-realismo e da excelente construção narrativa, Union Atlantic sofre da ânsia de querer explicar uma época, como se o verdadeiro destinatário do romance não fosse o leitor de hoje, mas um hipotético leitor do futuro mais interessado em História do que em romances.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:23
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Ondina

“Parecia-lhe estranho estar a viver, ela própria, um daqueles contos de fadas que até então só ouvira contar.” Este curioso enxerto de meta-ficção, quase no final da narrativa, esclarece qualquer dúvida sobre a natureza da obra de La Motte-Fouqué, publicada em 1811. Conto sobrenatural e trágico, Ondina conjuga vários elementos dos contos populares e da mitologia centro-europeia. A casa isolada, a floresta misteriosa, a criança trazida pelas águas e a chegada de um estranho em busca de abrigo juntam-se a assombrações, sortilégios, premonições, sonhos e pressentimentos para criar um ambiente onírico e ameaçador. A mitologia pagã, centrada na Natureza, sobrepõe-se à tradição humanista do Cristianismo, sendo disso exemplo a figura do padre Heilmann e o seu reconhecimento do poder de Ondina. Da mesma forma, enquanto tragédia, Ondina alicerça-se mais no confronto entre os desejos humanos e as leis da Natureza do que no conflito entre a vontade humana e as leis divinas, comum na tragédia grega. A própria relação de Ondina – um espírito das águas que, a fim de obter uma alma, procura unir-se a um ser humano – com o cavaleiro Huldbrand cria as proibições que estão na origem da tragédia. Para evitar que a mulher seja levada definitivamente para o reino das águas, Huldbrand está proibido de manifestar descontentamento para ela sempre que estiverem perto de um curso de água. Como é característico dos contos de fadas, a verbalização do interdito serve para sublinhar a inevitabilidade da transgressão, conferindo-lhe a sua dimensão trágica. No conto de La Motte-Fouqué, porém, o castigo é severo e ninguém vive feliz para sempre. O final apaziguador aproxima a narrativa dos mitos cosmogónicos e reconcilia a pobre Ondina com o elemento ao qual nunca deixou de pertencer.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:22
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