Sábado, 16 De Março,2013

A 29 de abril nas livrarias

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:14
link do post
Terça-feira, 05 De Março,2013

O furacão que nunca chega

E. M. Forster dizia que o único defeito que uma história pode ter é o de os leitores não quererem saber o que vai acontecer a seguir. Nos contos de Lydia Davis (1947) não interessa o que acontece a seguir porque isso implicaria que tivesse acontecido alguma coisa anteriormente. E nunca, ou quase nunca, acontece alguma coisa. As 600 páginas destes Contos Completos, que reúnem os quatro livros de contos publicados por Davis entre 1986 e 2007, estão repletas de desacontecimentos. As histórias nunca são interessantes, porque nada acontece, e é por nada acontecer que são importantes. Não há uma sucessão de ações logicamente encadeadas para permitir a fruição narrativa esperada: início, desenvolvimento, conclusão, movimentos de choque emocional, rupturas, mudanças, epifanias. O método de Davis consiste em enleantes e hipnóticas descrições de processos em que se resiste a todo o custo ao recurso aos artifícios narrativos convencionais. Não tanto para frustrar o leitor, para jogar com as suas expectativas e gorá-las, como para atingir o patamar flaubertiano de impessoalidade na escrita, o ideal estético e ascético de escrever sobre nada. Como as histórias não têm o esqueleto do enredo para as manter de pé, a autora fá-las flutuar através da linguagem.

 

Desta forma, Davis investiga os paradoxos do quotidiano, evade-se da sequência cronológica em que vivemos para a sequência aleatória, mas constante, do pensamento e, mais do que do pensamento, daquele ruído branco que nos preenche a cabeça quando não estamos a pensar, por exemplo, a maçaneta para a qual estou a olhar neste momento e que talvez precisasse de ser limpa, embora eu não tenha os produtos de limpeza adequados para a realização da tarefa e a ideia de limpar a maçaneta com uma toalhita me incomode (esta última frase é uma paródia ao estilo de Davis que pode prosseguir durante páginas e páginas neste registo átono e narcótico), e revira as coisas e as pessoas até estas adquirirem qualidades que lhes são alheias. Essas transformações podem ser surreais e alegóricas, como no caso de mulheres que se transformam em cedros (Os Cedros) ou de uma rapariga que se transforma em pedra (A Transformação), ou, o que é mais frequente e inovador, podem representar a fusão de duas categorias por intervenção da linguagem que exprime uma nova forma de ver.

 

Ver as coisas como pessoas e as pessoas como coisas é um dos processos mais comuns em Lydia Davis e o que mais contribuirá para o efeito de estranheza e distanciamento dos seus contos. O efeito pode ser conseguido com uma só frase: “Aqui os objectos mais impressionantes são a gente comum”; mas também pode ser atingido em três degraus, de forma mais sugestiva: “Toda a gente tem uma mãe algures. Há uma mãe connosco ao jantar. É uma mulher pequena com óculos de lentes tão grossas que parecem negras quando ela põe a cabeça de lado.” Por um lado, aquela é uma mãe e não “a” mãe, é uma entre muitas, uma peça de mobiliário. Por outro, é aquele ser humano frágil e concreto. Aquela mãe é todas as mães, faz o que se espera que as mães, enquanto objetos funcionais, façam, mas são precisamente essas características gerais que a humanizam: “Sofreram por nós, e a maior parte das vezes algures onde não as podíamos ver.” É um processo delicado. Não significa falta de empatia ou frieza emocional, como se vê noutro conto, As Bisavós, em que, paradoxalmente, a reificação confere às pessoas uma renovada e até comovente presença humana. O mesmo efeito humanizador de um olhar clínico e distanciado verifica-se em O Que Aprendes Sobre o Bebé. Da acumulação sem qualquer sentimentalismo de pormenores da atividade do bebé – os sons, os movimentos e os ritmos – emerge a presença vívida da criança.

 

Quando se diz que os contos de Davis são sobre nada o que se está é a registar a ausência da espinha dorsal do enredo. Os temas estão lá, desde o primeiro livro Acerto de Contas (1986): a solidão, o silêncio, o afastamento, as separações, a impossibilidade da felicidade partilhada, o tédio do quotidiano e as fantasias paliativas que nos ajudam a suportá-lo e que nos ajudam a redescobrir o lado reconfortante desse quotidiano, as dívidas emocionais que herdamos dos nossos pais e as que legamos aos nossos filhos, a maternidade e a criação literária, a “curiosa natureza das famílias”. O desejo de isolamento, normalmente na forma arquetípica da casa de campo, é recorrente (Projecto de Casa, Numa Casa Sitiada, Terapia, A Criada de Servir, Amor Seguro, St. Martin, Gente da Cidade). Como se apenas no confronto com a solidão as coisas adquirissem realidade e como se o contacto diário com as pessoas fizesse delas um pedaço de tecido muito usado (O Cunhado). Sucedem-se as conversas telefónicas que, no universo de Davis, são a única possibilidade de verdadeiro contacto. No conto Glenn Gould afirma que o pianista canadiano estava convencido que “podia conhecer melhor a essência de uma pessoa pelo telefone.” A distância que nos separa dos outros, que não nos permite compreendê-los, não é muito diferente da distância que nos separa de nós próprios:“É como se não fôssemos nós que fazemos o que fazemos, mas um ser que nós não reconhecemos.”

 

Entre aforismos (“para se suportar ouvir outra pessoa que fala da sua infância, é preciso estar-se apaixonado por ela”), paradoxos (“Custou-me tanto descobrir este lugar, que creio que não o encontrei”), questões filosóficas (querer determinar se os nossos sentimentos são ações, se pensar uma coisa equivale a fazê-la), vamos encontrando pistas para decifrar esta obra que, na brevidade de uns contos e nas circunvoluções de outros, pode ser exasperante. São dádivas do autor aos leitores: “Uma mulher escreveu uma história em que há um furacão, e, de costume, um furacão promete ser interessante. Mas nesta história o furacão ameaça a cidade sem chegar a atingi-la realmente. [...] quanto menos coisas há numa história, mais são as que têm de ocupar o seu centro.” Outro conto abre assim: “É-lhe difícil, muito difícil, escrever esta história, ou talvez ela devesse dizer que lhe é difícil escrevê-la bem. Mostrou-a a um amigo, e ele disse-lhe que devia torná-la mais interessante.” Estes momentos de reflexão teórica são as pistas que nos permitem ir avançando, sabendo que nada irá acontecer e sabendo que o não acontecer nada não significa que nada exista. Tal como o furacão existe sem nunca atingir a cidade, os contos de Davis são granadas em cima de uma cómoda que não precisam de explodir para que lhes reconheçamos o seu potencial destruidor e a sua essência de engenho explosivo. Se explodissem seriam destroços; assim, intactas e ameaçadoras, são granadas e, ao mesmo tempo, a explosão que não acontece.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:46
link do post

Um orçamento devidamente contextualizado

Publicado na revista Ler

 

O relatório do orçamento do Estado para 2013 é um daqueles documentos fundamentais que qualquer português culto e moderadamente sensual deveria ler. Os restantes podem continuar entretidos a comer salsichas e atum enquanto engordam os números do desemprego. Estas páginas – expressão imorredoira do génio de Vítor Gaspar – são o paralelo 39 entre dois modos de vida, entre o Portugal alavancado pela poderosa engrenagem comunitária e o Portugal possível onde o bife de vaca é artigo de luxo. É o fim da utopia da classe média e o regresso ao Portugal dos remediados, um país sem remédio. E estas páginas são também um exercício de literatura tecnocrática. Por momentos podemos imaginar um dos membros do Oulipo a escrever um documento espartilhado por este constrangimento: ser o mais desinteressante possível cumprindo os critérios mínimos de legibilidade. O resultado não andaria muito longe deste relatório.

 

A primeira coisa que sobressai nesta obra notável é a tónica no esforço. Desde logo, o esforço dos trabalhadores do Ministério das Finanças que, segundo o ministro, é “desinteressado” e sem o qual não teria sido possível apresentar a proposta de orçamento a tempo e horas. Ou seja, para cumprir prazos o Ministério das Finanças tem de se valer do esforço desinteressado dos seus trabalhadores o que, traduzido para português, deve significar horas extraordinárias não pagas. É um louvor sentido e, para além disso, revela mestria no uso do eufemismo. Mas o esforço não se fica por aqui, sendo mesmo possível considerar este um orçamento esforçado, como aqueles jogadores de futebol sem talento natural mas que correm muito. Segundo o relatório é preciso mais esforço, de preferência “persistente” e repartido equitativamente. Há o esforço contributivo e o esforço na poupança, com incidência no “esforço de contenção nas despesas com pessoal” e na redução dos “encargos brutos com as Parcerias Público-Privadas”, o esforço fiscal e o esforço coletivo, o esforço financeiro e o esforço de simplificação, o esforço de revisão e o esforço de coordenação. Pedem-se, numa aritmética singular, esforços adicionais que subtraem, esforços acrescidos que reduzem e refere-se um esquisito “esforço deliberado” que cria, por contraste, uma nova e contraditória categoria semântica, a do esforço involuntário. A enxurrada de esforços é tão grande que os esforços até se sobrepõem como no caso de “um esforço acrescido no esforço de consolidação.”

 

Palavras como corte e reduções são cortadas e reduzidas ao mínimo possível, substituídas pelo mais neutro “ajustamento”. O ajustamento, sendo um emagrecimento forçado tem, ainda assim, uma proximidade semântica a algo que é justo e, como tal, necessário e benéfico. Neste relatório, o ajustamento é “muito exigente e persistente”, embora o que já foi feito seja muito “significativo.” Já os sacrifícios permanecem no lugar de eixo moral e religioso deste orçamento. A via é difícil e estreita – é a nossa via crucis rumo à redenção final, quando não mais necessitaremos de ajuda externa e atingiremos a beatitude celestial da autonomia política. Não a podemos percorrer sem sacrifícios. Estes são inevitáveis e enormes mas evitam “sacrifícios futuros bem superiores.” Ou seja, se não queremos mais sacrifícios temos de fazer mais sacrifícios, o que nos deixa numa situação bem ingrata e, para utilizar um adjetivo muito popular neste relatório, “difícil”. De facto, aqui é tudo muito difícil. Portugal “atravessa um episódio difícil da sua história”, esta é uma “difícil situação”, a sustentabilidade das finanças públicas é “tão difícil”, a consolidação orçamental é uma via “difícil” e até o diagnóstico, a caracterização do ponto de partida, é difícil devido, louve-se o humilde reconhecimento das limitações, “à escassez de competências técnicas adequadas no Ministério das Finanças”. Como se não bastassem tantas dificuldades, o relatório avisa-nos caridosamente que o “caminho que temos que percorrer não é fácil.”

 

Para mitigar as dificuldades, vale-nos o facto de o governo ter um rumo e saber perfeitamente o que quer e para onde vai. Vejamos, por exemplo, a aposta na divulgação de Portugal enquanto destino para turismo residencial: lê-se no relatório que “importa desenvolver um enquadramento que favoreça a residência de estrangeiros em território nacional”, o que é uma medida muito coerente com os apelos à emigração dos jovens qualificados. No fundo, trata-se de substituir portugueses por estrangeiros para ver se isto começa a melhorar. E como é que o governo pensa desenvolver aquele enquadramento? Simples: com um pacote “para a promoção do turismo residencial que incentiva a atração de turistas residenciais”. Não é dito se o pacote inclui bronzeador, mas é revelador de bom senso e de alguma moderação nos objetivos que um pacote de promoção de turismo residencial vise atrair turistas residenciais e não, por exemplo, refugiados do Norte de África. O projeto vai ainda mais longe porque pretende atrair particularmente “turistas residenciais seniores” e os “respectivos rendimentos” que é para ninguém pensar que só os queremos cá por serem estrangeiros. Nada disso. Também têm de ser velhos e trazer o dinheirinho. Sandálias e meias brancas são dispensáveis. Para 2013, o relatório dá conta de um Governo apostado em várias coisas como desenvolver, reorganizar, reformular, agilizar, rentabilizar, promover e, sobretudo, requalificar. O Património será requalificado e o mesmo acontecerá com as “infraestruturas e equipamentos da Administração Interna”. Em relação à RTP, promete-se “um serviço público de conteúdos de rádio e de televisão consequente com a ambição de mudança que o Governo está a levar a cabo em prol de uma sociedade moderna, aberta e cosmopolita.” Fica por dizer como é que este projeto popperiano se articula com João Baião pois estamos em crer que naquele serviço só há espaço para um dos dois.

 

Outro aspeto em que o relatório revela determinação para manter o rumo é nas medidas de incentivo ao emprego que são equívoca e divertidamente libidinosas (Programa Impulso Jovem, Programa Vida Ativa, medida Estímulo 2012) e criam a legítima dúvida se o Governo quer reduzir efetivamente a taxa de desemprego ou se está apenas a tentar levá-la para a cama. Se assim for, propomos medidas adicionais como o Programa Titilação Prolongada (destinado a desempregados de longa duração) e o Programa Maduras (apoio a desempregadas com mais de 50 anos). Outras medidas como o “IVA de Caixa” ou o “Guichet Aberto” rivalizam com a nomenclatura mais inspirada das operações da GNR e da Polícia Judiciária. Na área da Reabilitação urbana, construção e imobiliário há uma atrevida Iniciativa Jessica, em honra da campeã de vendas de imóveis na ERA do Seixal.

 

Ao longo deste brilhante texto, é criada uma atmosfera vagamente conspirativa com a disseminação de inúmeros acrónimos. Aos já familiares BCE, FMI e TSU, juntam-se a GERAP, o RFAI, o CTUP, o PAEF, a EMPORDEF (que não é um programa de emprego destinado a deficientes mas a prosódica Empresa Portuguesa de Defesa), o MAMAOT (canal para adultos que não deve ser confundido com Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território), o desvairado NUTS (Nomenclatura das Unidades Territoriais Estatísticas), o esotérico POPH (Programa Operacional do Potencial Humano) e o paciente SPER (Sector Empresarial Regional). Há também um SIRCA não aconselhável a crianças (Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos na Exploração). A profusão de acrónimos é de tal ordem que até permite ao ministro uma referência oblíqua e um tanto jocosa à “queda acentuada dos CDS”.

 

Outro pormenor interessante é o da designação das pessoas a quem se destina o Orçamento, os portugueses, ou, em orçamentês, os contribuintes. Neste relatório o cidadão português é salomonicamente dividido em dois: o português, a quem o governo apela sentimentalmente, pedindo um esforço adicional, reconhecendo que este é um orçamento difícil que envolve sacrifícios para todos; e o contribuinte, que paga os impostos. Com os portugueses (que aqui são, por vezes, grafados com maiúscula, os Portugueses), o governo fala mansinho e pede-lhes ajuda na “prossecução deste desígnio nacional.” Com os contribuintes, que só conhece de número, é mais impessoal e tecnocrático: “20% dos contribuintes com salários mais altos”, “contribuintes que auferem rendimentos superiores ao salário mínimo”, “aplicável apenas aos contribuintes que auferem rendimentos mais elevados.” Esta estratégia de serem os contribuintes a auferir em vez dos portugueses é muito astuta porque põe os portugueses a desejar o pior aos contribuintes, esses auferidores de um raio!

 

Lendo o relatório só não se consegue perceber por que razão Portugal não contacta diretamente com quem manda nisto, que é o contexto (os gráficos também não se percebem mas isso é uma falha da minha formação em Humanidades). Afinal, tudo depende do contexto. O contexto é omnipresente e muito versátil: pode ser, como o clima, favorável ou desfavorável; beneficia de condições desconhecidas para a maioria dos portugueses, como a possibilidade de ser promovido (o relatório diz que se deve “promover um contexto adequado à criação”); e o ministro chega mesmo a reconhecer que pede conselhos ao contexto (“o contexto económico e financeiro atual aconselha à revisão das regras”), o que significa que, no contexto da coligação, o contexto vale mais do que o CDS. Tudo indica que sairemos desta crise muito mais pobres e extraordinariamente contextualizados.

 

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:26
link do post

mais sobre mim

pesquisar

 

Março 2013

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

tags

todas as tags

subscrever feeds

blogs SAPO


Universidade de Aveiro