Sofia Tolstoi

Ser mulher de escritor é profissão ingrata. O génio irradia luz mas o lugar da mulher é à sombra. O talento do escritor é celebrado, mas os esforços da mulher em providenciar-lhe as condições ideais para a escrita são esquecidos. A ideia de colaboração não cabe na mitologia da criação artística.

 

Durante muitos anos, Sofia Tolstoi foi, aos olhos do mundo, a megera que enfraqueceu os poderes demiúrgicos de Lev Tolstoi. A biografia de Alexandra Popoff, que teve acesso a documentos até agora inéditos, é mais do que uma tentativa de promover Sofia ao cargo seráfico e passivo de mártir. É um esforço sério de demonstrar o papel crucial que desempenhou na produção de obras-primas absolutas como Guerra e Paz e Ana Karenina e de clarificar a forma como a própria entendia o seu lugar de mulher de um gigante das letras. Popoff demonstra que Sofia Tolstoi nem sempre sentiu o seu papel como um fardo, porque a “escrita dele conferia-lhe um sentido de missão” (p. 101). Tinha consciência do génio do marido, da magnitude da obra e era feliz por participar naqueles que podem ser considerados os empreendimentos literários mais ambiciosos da literatura oitocentista. Não só através da organização da vida familiar, mas também da colaboração direta na feitura da obra. Sofia copiava os capítulos dos romances e sentia justificadamente essa tarefa como um privilégio. No entanto, as gravidezes consecutivas (dezasseis), a educação dos filhos e a dimensão da obra do marido obrigaram-na a deixar para segundo plano os seus próprios interesses artísticos e Sofia, sobretudo na última fase da vida, lamentava-o.

 

Não era fácil lidar com a personalidade avassaladora do marido e com as suas incoerências. A diferença de idades e o estatuto de Tolstoi eram o suficiente para que Sofia se culpasse quando as coisas não corriam bem: “Sempre que discutiam, Sofia tornava a sentir-se «como um demónio perante um santo»” (p. 43). Porém, enquanto a santidade de Tolstoi se cingiu a uma esfera simbólica, o casamento funcionou. Enquanto a literatura foi a religião do marido, Sofia realizava-se no apoio total que lhe dava. A partir do momento em que Tolstoi, marcado pela culpa das riquezas que acumulara, decidiu que a santidade literária não lhe chegava, o idílio conjugal terminou. À procura de um sentido espiritual profundo, renegou as obras que o mundo admirava e enveredou parcialmente por uma via crística de ascetismo e desprendimento material. Dizemos parcialmente porque, segundo Popoff, Tolstoi nunca se privou de alguns caprichos dispendiosos (a criação de cavalos, por exemplo) e porque o abandono ia apenas ao ponto de se furtar às responsabilidades de ordem prática (familiares e patrimoniais) que, fatalmente, recaíam sobre os ombros de Sofia, que via com desgosto o marido abdicar da sua obra literária para se emaranhar num misticismo ambíguo do qual era o profeta embora nem sempre o melhor seguidor.

 

Sofia não estava disponível para acompanhar o marido nesta inflexão existencial, quer por razões práticas (a educação dos filhos), quer por motivos religiosos - Tolstoi aspirava a um cristianismo puro não corrompido pela igreja, o que era uma afronta para a mulher, que para além disso considerava que a generosidade do marido para com os necessitados não servia para outra coisa que não fosse a delapidação do património, dado que não resolvia os problemas da miséria alheia e deixava a família em apuros.

 

A interpretação de Popoff é a de que Sofia queria a todo o custo proteger o talento do marido e que encarava com ânimo os sacrifícios exigidos pela obra, mas não os sacrifícios em nome da deriva metafísica de Tolstoi. Aquele não era o homem que Sofia amava e pelo qual estava disposta a imolar-se. Popoff situa aqui o início da lenda negra de Sofia Tolstoi. Com o marido rodeado de um séquito de admiradores e fiéis que disputavam ferozmente as atenções do profeta, Sofia viu o laço de cumplicidade e de comunhão de interesses quebrar-se. O autor de Guerra e Paz passou a ser um homem apostado em transformar o mundo, em extrair a verdade última dos evangelhos. Quando, a exemplo de Ana Dostoievski, Sofia se aventurou no negócio da edição, para publicar as obras completas do marido, teve de enfrentar as recriminações constantes deste, que a censurava por se preocupar com o dinheiro. Sofia defendia-se: “Estou velha, tenho os nervos em franja e não tenho tempo a perder com ideias.” (p. 204) e “não posso permitir que os meus filhos, que Deus me concedeu, se tornem patifes embrutecidos, para poder beneficiar desconhecidos.” (p. 205). Para Tolstoi, as preocupações com a família eram assuntos menores. Afinal, ele tinha a humanidade inteira para amar e educar. Levando à letra os ensinamentos de Cristo, o escritor tornado profeta, amava a humanidade e desprezava a família.

 

Embora o faça com intenções hagiográficas e num contexto de reabilitação da mulher de Tolstoi, Popoff vai assinalando as contradições da própria Sofia. Era feliz por fazer parte da vida de um homem célebre e admirado por milhões mas queixava-se que essa era uma vida de “trabalho e mais trabalho” (p. 135). Ao ler a peça O Poder das Trevas, reconhece que devia tratar o marido “com mais cuidado e consideração, poupando-o para que possa dedicar-se mais ao seu trabalho” (p. 186), mas mais tarde confessaria estar “farta de ser mulher de um homem famoso” (p. 236), porque para ela o marido era muito mais do que uma celebridade, “é toda a minha existência” (p. 296). A falta de reconhecimento dos sacrifícios a que se sujeitava em nome do génio trazia-lhe insatisfação: “Tenho de trabalhar em alguma coisa minha, ou a minha alma acabará por murchar [...] Cumpro o meu dever para com ele e isso traz-me alguma felicidade mas, por vezes, anseio por fazer alguma coisa diferente e nutro outros desejos.” (p. 274). O que era uma alegria transforma-se, então, num fardo: “suprimir eternamente esse desejo [de ter uma vida intelectual própria], para servir um génio, é um grande infortúnio.” (p. 299) Marido e mulher teciam as respetivas narrativas de martírio à volta do mesmo eixo: o génio dele. Naturalmente, a do escritor era mais convincente: “Aos olhos do mundo, ele não tem defeitos por ser um grande escritor.” (p. 280)

 

Era este o drama crucial da vida de Sofia Tolstoi. Os seus sacrifícios nunca poderiam ser devidamente reconhecidos, porque o génio absorvia todos os méritos e ser mulher de um era tido como recompensa mais do que suficiente. Em vez de um ser autónomo, com sentimentos e aspirações próprios, a sofrer pela morte de vários filhos, a carregar a culpa pelas desconsiderações do marido, Sofia era vista como um apêndice, um dano colateral da obra, uma nota de rodapé marginal ou, na lenda negra, como a responsável pelos tormentos espirituais do escritor. É possível que Sofia Andreevna tivesse conhecido uma existência mais feliz, mais realizada, sem Tolstoi. Por outro lado, dificilmente estaríamos a ler a sua biografia, um documento cujo interesse prova que só as histórias das famílias infelizes nos atraem.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:43
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