Gógol e Kafka

Para além de notáveis praticantes da arte da narrativa breve e de uma idêntica tendência para a piromania literária, Nikolai Gógol e Franz Kafka estão unidos pelo humor. O do escritor russo faz piruetas e cabriolas, o de Kafka é um humor impassível que não mexe um único músculo da cara. O humor absurdo de um conto como O Nariz é impossível de escapar a qualquer leitor com mais sentido de humor do que o general Ramalho Eanes. Para se perceber a comicidade de A Metamorfose até o leitor mais culto agradece a ajuda da história que o próprio Kafka contava sobre as gargalhadas que a primeira leitura do conto provocara aos seus amigos. Recorrendo à divisão proposta por Eric Idle (e mencionada por Ricardo Araújo Pereira no prefácio a O Mundo de S. J. Perelman), diríamos que Gógol é um humorista red nose e Kafka um humorista white face. Partindo ambos de um facto extraordinário (o homem que perde o nariz e o homem que acorda transformado num insecto), cujas causas nunca são explicadas, um mantém o humor visível, à superfície, e o outro mantém-no oculto, como um prazer secundário. Gógol lança a história num ritmo de comédia, com sucessivas mudanças de cenário e situações absurdas. Kafka abranda o ritmo, e nem o protagonista, nem a linguagem, nem a estrutura parecem absorver as ondas de choque que aquele insólito acontecimento deveria provocar. Esta estratégia, que é antagónica à de Gógol, tem fundamentalmente o mesmo efeito: acentuar o absurdo e o cómico. De um lado temos um homem a gritar: “Perdi o nariz, perdi o nariz!” e isso tem piada. Do outro temos um homem que se vê transformado num insecto e que se pergunta: “E agora como é que vou trabalhar?” Também tem piada. Num curto ensaio, David Foster Wallace tentou explicar porque é difícil captar o lado divertido da obra de Kafka. A dificuldade está em não ser um humor óbvio, que não se anuncia de nariz vermelho, que joga com códigos humoristícos a que não estamos habituados e que – e isto também é importante – não esperamos encontrar num autor com a aura de profeta da alienação moderna como Kafka. Como Helena Topa assinalou no prefácio à edição de A Metamorfose (Presença, 1996), a comédia kafkiana é “um quase imperceptível veio humorístico que subterraneamente percorre o texto.” Na obra de Gógol, esse veio é um rio transbordante. Até as interpretações psicanalíticas – o medo da castração e a conturbada relação de Kafka com o pai – favorecem a leitura humorística de O Nariz e uma leitura grave da obra de Kafka. Não apenas neste caso, mas na totalidade das obras. Gógol é um especialista da sátira; Kafka é um especialista da parábola. Quando critica as hierarquias e a burocracia, Gógol está a criticar a sociedade do seu tempo. Quando representa um inferno burocrático, Kafka está a perseguir uma imagem que ilustre o tormento metafísico do homem. A sátira é um instrumento profano. A parábola é um instrumento religioso. O homem gogoliano, nestes Contos de São Petersburgo, procura o seu lugar na sociedade. O homem kafkiano procura o seu lugar no universo.

 

Entre os dois escritores há também semelhanças na forma como entretecem o fantástico nas narrativas. No entanto, as semelhanças serão mais notórias em relação a O Nariz, cujo tratamento do fantástico é bastante diferente do dos restantes contos. Nestes, se o real é constante e idêntico (as hierarquias, os funcionários públicos, as ruas, a cidade, as roupas), o fantástico é maleável e tanto pode assumir a forma de um sonho, como a do sobrenatural tradicional ou até a de uma história de fantasmas. Mas é sempre um fantástico convencional e reconhecível. Diz-se que Gógol tencionava terminar O Nariz explicando que tudo não passara de um sonho de Kovaliov. Ao não fazê-lo, inaugurou um género de fantástico, o antepassado direto do Kafka não só de A Metamorfose, mas também de O Artista da Fome (incluído no primeiro volume dos contos) e do ainda mais vorazmente surreal Descrição de uma Luta. Para se perceber até que ponto O Nariz representa uma ruptura, basta compará-lo com O Capote. A introdução de elementos fantásticos no final deste conto é inútil e não traz qualquer mais-valia. (Isto é tão óbvio que o próprio narrador reconhece que “a nossa história ganha inesperadamente um final fantástico.”) É um acrescento que prejudica a poderosa história de solidão que acabou de ser contada. Akáki, o protagonista, é digno de compaixão, humano, vulnerável, sentimo-nos próximos dele. Nem o habitual tom satírico, nem as críticas à burocracia, nem a crónica de aspirações sociais, nos afastam do drama íntimo que é a vida de Akaki. Kovaliov assemelha-se a uma experiência literária, um fantoche surreal ao serviço da comédia do autor. Nunca desperta genuína compaixão. É uma figura de plástico a sofrer uma série de infortúnios. Nesse sentido é o contrário de Akáki. Todo o conto é realista, as aspirações de Akáki são plausíveis e não há nenhum acontecimento extraordinário/fantástico a empurrar a narrativa. É só na parte final que o conto entra no domínio do fantástico, quando já não pode ser mais do que uma intromissão perfeitamente dispensável. Pelo contrário, a força de O Nariz é precisamente o surreal e o fantástico. Sem essa premissa, não há conto. A Metamorfose seria então uma conjunção dos dois e Gregor Samsa uma síntese de Kovaliov (o homem que sofre um revés extraordinário) e Akáki (uma personagem digna de compaixão).

 

Quando situa a acção num tribunal (como em O Procurador Adjunto), Kafka cria uma situação arquetípica, o resumo ou a soma de todos os indivíduos como aquele, enquanto Gógol cria situações caricaturais, o exagero de um único indivíduo específico. Kafka, em excertos de contos como O Caçador Gracchus ou Na Construção da muralha da China, tende para um tom metafísico, uma litania de sinagoga onde explora o potencial religioso e existencial das parábolas e das alegorias. Neste último, há um exemplo particularmente forte desta tendência: “O ser humano, leviano no seu fundo, da natureza do pó levantado, não suporta o acorrentamento, se se acorrenta a si próprio, não tardará a sacudir as correntes como um louco e a despedaçar, em todas as direcções, muralha, amarras e a si próprio.” Aqui, a literatura aproxima-se tanto quanto possível de uma interrogação filosófica.

 

Cada qual à sua maneira, Gógol e Kafka são investigadores das limitações da existência humana, sejam limitações sociais ou metafísicas. Em certas ocasiões, o absurdo é a forma mais adequada que encontram para descrever essas limitações. O absurdo religioso que atormentava Kierkegaard, que os precede, e que também surge em obras tão diferentes como as de Camus e de Beckett, que lhes sucedem. Mas enquanto Gógol permanece ancorado e a trabalhar sobre um fundo social concreto, Kafka navega nas águas intangíveis da parábola. Escreve Gógol em O Capote: “É assim na nossa santa Rússia, cada qual imitando e macaqueando o seu superior.” Escreve Kafka em Na Construção da muralha da China: “Nós – posso dizer que falo em nome de muitos – na verdade só nos conhecemos uns aos outros ao soletrar as ordens da chefia superior, tendo concluído que, sem a chefia, nem a nossa sabedoria escolar nem a nossa razão de homens teriam chegado sequer para o mais pequeno cargo a assumir dentro do imenso todo.” Os dois escritores escrevem sobre hierarquias, mas é evidente que o alcance da frase de Kafka transcende em muito o limitado escopo social de Gógol. Talvez por sentir que a sua obra era futilmente profana, o então místico Nikolai Gógol queimou as segunda e terceira partes do seu romance Almas Mortas. Franz Kafka, cuja escrita é um reflexo da condição judaica no centro da Europa no início do século XX, pediu ao seu amigo Max Brod que queimasse todos os seus trabalhos não publicados. É como se a constatação do absurdo da existência humana, com os seus tons trágicos e cómicos, os tivesse guiado a uma mesma conclusão: perante essa evidência, toda a literatura é inútil. E, podemos acrescentar, absoluta e absurdamente necessária.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 14:44
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