As cartas do meu pai

Nas cartas do meu pai eu não existo. Quando ele as escreveu eu não sabia que o meu pai estava vivo. As cartas que hoje leio são cartas escritas pela mão de um morto entretanto ressuscitado e devolvido ao convívio dos outros, dos que respiram. Na altura, ele estava morto. A sete de Julho de 1984, data no cabeçalho da carta, no primeiro verão antes de mim, ele estava morto e escrevia assim:

 

Querido e saudoso pai (querido e saudoso pai, escrevo eu hoje)

 

Tenho diante de mim a sua carta que me vem de chegar às mãos (diante de mim tenho a sua carta que me vem de chegar às mãos, vinda do passado e do pó, do reino dos mortos, escrevo) Já a li três vezes (tantas vezes já a li, mais do que três, escrevo eu hoje) estou bastante contente era a carta que eu esperava (ainda estou atónito e não sou bem eu e já a li tantas vezes é a carta que eu não inesperava, escrevo) e o facto de ter sido escrita à mão, me fez dobrar a alegria (e o facto de ter sido escrita à mão, pela sua mão viva, pai, me fez dobrar o espanto e a tristeza, porque para mim essa mão que, sei-o agora, também escrevia ainda segura uma faca, é e será sempre a mão que segura a faca e não a mão que escrevia Querido e Saudoso Pai) No que respeita a conselhos seus, ou sugestões como lhe queira chamar, serão sempre bem vindos (no que a conselhos seus respeita, ou sugestões como quiser, dispenso-os, esta voz, as palavras escritas na carta pela mão que segurava a faca oiço-as pela voz que me ilumina a memória “esta faca é para matar a tua avó”)...Os nossos problemas, só nos diz respeito a nós dois (os nossos problemas, quais problemas?, tenho seis anos, esta é a minha primeira bicicleta, aprendi a andar nela com o meu avô a segurar-me o banco, eu a cair, o meu avô, querido e saudoso avô, tão querido e saudoso avô, as tuas mãos rudes que escreviam mal a migar e a salgar o tomate que comíamos à sombra do sobreiro, este sabor que me lembra tanto de ti, querido e saudoso avô, como se ainda te beijasse as mãos, as mãos rudes que não escreviam mas que seguravam o banco da minha primeira bicicleta, não temos problemas, pai, não temos problemas, naquela tarde em que eu aprendo a andar de bicicleta tu ainda estás morto, só regressarás à vida numa tarde de céu baixo e plúmbeo, céu de chuva que ainda não cai, à saída do cemitério onde foste visitar a campa do teu pai, querido e saudoso pai)...e porque estou longe, porque no dia em que nos olharmos nos olhos um do outro não serão precisas mais palavras. Nós nos saberemos perdoar, embora não sejamos divinos (estou longe, estamos longe, porque no dia em que nos olharmos nos olhos um do outro, querido e saudoso pai, nesse dia em que nos encontrarmos à porta do cemitério, eu com dezasseis anos e um pai que é só aquela voz que segura uma faca, a mão que fala e diz “esta faca é para matar a tua avó”, não serão precisas mais palavras. Nós nos saberemos perdoar porque no dia em que nos encontrarmos eu serei a criança daquela fotografia, no primeiro verão antes de mim, e tu já não serás a voz que prometia a morte, mas a mão que escreve “no dia em que nos olharmos nos olhos um do outro não serão precisas mais palavras” e limparemos dos nossos olhos todas as lágrimas e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, porque já as primeiras coisas são passadas).

 

A carta prosseguia, a mão jovem e arrogante do meu pai a desenhar as letras, Quanto ao futuro: o futuro pode ser já amanhã, respondia ao meu avô que lhe deve ter falado de um futuro distante, de um futuro que o meu avô na sua boa sabedoria tinha a certeza que não iria conhecer, e que o meu pai na ignorância leve dos seus vinte e seis anos podia dizer o futuro é coisa que neste momento não me atormenta. Eu encontrei a boa via, escreve a mão do meu pai, ganho cerca de 130 contos em dinheiro português, gaba-se a mão do meu pai. Despede-se por fim pedindo ao meu avô para não estranhar se em Setembro receber alguns papéis dos Correios, é uma oferta que vos faço pelo muito que vos devo, e assina, a mão morta do meu pai a assinar a carta em que eu não existo, onde eu existia era naquela fotografia com a primeira bicicleta, é aí que eu estou e existo e sou e o meu pai não sabe.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 10:15
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