O país do presidente

1.

Certa noite, levaram o presidente aos filmes. Dez minutos para o filme começar, irromperam uns macacos em fatos militares, uniformizados e despejaram a sala dizendo aos já pagantes que voltassem noutra sessão. Uns mais velhos gritaram, que o país estava perdido, outrora havia respeito pelos pobres e gente humilde, que era pouca vergonha, mas a ponta das espingardas assestada aos olhos tiraram-lhes ânimos protestativos e saíram dali derrotados para beber bicas nos cafés mortos da cidade. Na sala ficou só o presidente e a guarda pretoriana, todos pretos. O filme começou e o presidente, nem quarto de hora, achou tremenda merda e mandou chamar a gerência na pessoa de um sujeito fininho, amarelado, que noutros tempos teria sido intelectual, mas a quem uma inflamação crónica do intestino e uma gorda pusilanimidade política tinham empurrado para aquelas desdenhosas funções. “Senhor?” “Senhor, o caralho. Não dás para pôr outro filme?”. Que ia demorar, o projecionista estava na hora de jantar e enfim também só havia por ali filmes velhos, alguns carcomidos, incompletos, a banda sonora estragada, até a boa da actriz aparecia toda riscada, talvez noutro dia, com tempo e aviso prévio se pudesse preparar coisa à altura da majestade presidencial. Assim, era difícil. O Presidente sussurrou a um preto da guarda. “Onde está o danado?” “A jantar, senhor” “E janta aonde, o infeliz” “na cabina de projecção, senhor – mas é hora da refeição, senhor” Ainda ele falava já dois dos guardas se mandavam escadas acima rumo à cabina para surpreender o projeccionista a comer desgraçadamente de uma marmita uma esparguete fria com frango seco “Questa merda, caralho? Estou em comeres” “Estás, não, boi. Estás a levantar-te o cu e a pôr um filme para o presidente se apreciar.” “qual presidente, caralho?” O da guarda mais pequeno, nervoso, amigo do gatilho, limpava sarampos por dá cá aquela palha, destrancou logo a arma e não fosse as calmas do outro, mais velho, mais macaco, os miolos do projecionista bem que tinham ficado ali a anfeitar paredes, nomeadamente o cartaz de Casablanca, entre vários, o que teria sido infelicidade porque então o presidente ficava sem filme e miolos de ninguém lhe faziam falta nesta nocturna. “é preciso já um filme que o presidente goste ou vai haver merdas” o projecionista, Salomão, nome que lhe fora dado à pia, aprecebeu então que presidente era o que ali viera, e viu-se em fenomenais apertos e correrias, rezando avé-marias para os seus botões e correndo para trás e para diante, em grande espavento, dando ordens a ninguém porque ali, abaixo dele, ninguém havia e não havendo ninguém, não havia ninguém para lhe obedecer, posto que se viu em situação de cumprir as próprias ordens. Desencantou latas com as bobinas, e avisou, escusando-se, que montar o filme levava tempo, não muito, que ele tinha mãos as melhores do ofício, ainda assim, demorava. O guarda nervoso mantinha o dedo no gatilho, desejoso de pretextos, o outro disse-lhe que se desenrascasse, não era para demorar muito ou havia merdas. Lá em baixo, o presidente bufava e o gerente, cada vez mais diminuído, suava com abundâncias, o rosto alagado, as bochechas mordidas, a tripa que se lhe rebentava, estava prestes a desmaiar, não fosse o tremendo respeito à pátria na pessoa presidencial e a consideração das possibilidades futuras.

 

 

 

2. 

Ninguém era especializado em torturas, embora o mister fosse exercido com prazer, zelo e alegria por todos os incumbidos da tarefa. Ninguém se negava a fazê-lo e todos contribuam com sugestões que lhes vinham infantilmente do imaginar (mergulhar os pés em água fervente, apagar cigarros no escroto, enfiar agulhas nos ouvidos). Era tudo pouco profissional mas desempenhado com insuflado ânimo e a coisa funcionava assim, deixar-se estas coisas a amadores é decisão proveitosa pois não se gasta recursos em formações. Vez por outra, os excessos resultavam em mortes escusadas, enfim, danos colaterais, e lá ficava uma confissão por resultar, o que nem era grave porque as confissões geralmente tinham pouco valor, não eram verdade nenhuma, apenas a boca a pedir clemência, e porque o fim dos torturados era quase sempre o mesmo, falassem ou calassem, e mais morto menos morto, ninguém os contava, às famílias, se não se decidisse aplicar-lhes idêntica terapêutica, ninguém prestava contas, ora porque ninguém perguntava, ora porque, perguntando, ninguém respondia. Houve o caso que pôs o governo em alertas, a comunidade internacional quis saber o que era feito de um jornalista de panfletos, alma aguerrida, endireitador de tortos, corrector de desagravos, que denunciava abusos desde sempre mas que tinha vícios sodomitas. O Presidente, bem aconselhado, inventou uma pomposa Comissão de Inquérito com personalidades independentes e imparciais e isentas, umas boas cinquenta, que após aturada investigação concluíram que o pobre jornalista tinha morrido na sequência de fornicação paneleira, ou seja, rebentaram-no todo e morreu sangrado. Para evitar falatórios, a bem do bom nome da vítima e resguardo da família, dera-se sumição ao corpo.

 

Neste contexto de torturas amadoras, emergiu uma figurinha, antigo funcionário da direcção geral de saúde, muito interessado em história, leitor de clássicos latinos e apaixonado por atrocidades. O nome de guerra governamental era Leocádio. Este Leocádio era celibatário, beato e cumpridor de jejuns ortodoxos. Tinha uma imagem de São Cristóvão no bolso do casaco de fazenda já coçado de que não prescindia e, na carteira, trazia sempre uma folha com uma dezena de locuções latinas que lhe recobravam o espírito sempre que se sentia mais abatido, duvidoso espiritualmente sobre a piedade das suas acções. Na secretária do gabinete tinha um livro História da Tortura, mais que inspirador, caução histórica dos males que perpetrava como se males não fossem, antes necessidades que tornavam alcançáveis bens maiores, como a paz social e a unidade da nação. O respeito, dizia, é o pilar da comunidade. Sem respeito, nada feito, repetia, um tanto envergonhado pela rima que desemprestava dignidade à ideia. A sua ascensão ocorreu na sequência do interrogatório nº 53, cuja descrição pode ser consultada no arquivo oficial. Até então os interrogatórios eram brutais, animalescos, terríveis e os registos eufemísticos, burocráticos, repletos de “nadas-a-assinalar”. Leocádio transtornou os hábitos. Fazia descrições detalhadas dos horrores, em caligrafia bem calibrada e impecáveis sustentações histórico-filosóficas, com um nadinha de conhecimento forense, garantido sempre que o objectivo não era a morte do interrogado, mas a sua colaboração total, inequívoca e incondicional. Atingido este ponto, não havia necessidade de continuar e a morte só se justificaria como acto de misericórdia, em casos que o interrogado chegara a tais extremos de vulnerabilidade que um tiro na cabeça era mais humano que longos meses agonizantes em cama de hospital.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 14:40
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