Clarice Lispector - Uma Vida

“Hermética” é talvez um dos adjectivos mais colados à obra da escritora brasileira Clarice Lispector (1920-1977). João Gaspar Simões terá sido dos primeiros, mas certamente não o último, a referir-se-lhe nestes termos e lançava o repto: “Haja quem lhe encontre a chave” (p. 259). Benjamin Moser encontrou essa e outras chaves que abrem a obra de uma mulher da qual o tradutor Gregory Rabassa disse que “se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf” (p. 349). Clarice Lispector – Uma Vida desmonta as mitologias erguidas à volta de Clarice, o monstro sagrado, para nos mostrar uma mulher dividida entre as exigências de uma vocação artística precoce e o desejo de uma vida familiar pacata. Um conflito real (Clarice queria uma “vida-vida”, “um bloco separado da literatura” p. 158) que transpôs para os seus romances e personagens. Clarice queixava-se de que a aura de mito afastava as pessoas, ainda que o mito se alimentasse muito da sua personalidade esquiva e do mistério intrínseco à obra.

 

O sentimento de estranheza que Clarice despertava enquanto mulher (o rosto de ícone eslavo, o sotaque) e escritora (à margem de uma literatura “materialista”, afirmação do carácter nacional), tem raízes na sua história de vida, recriada por Moser com imenso talento e rigor histórico. Filha de judeus oriundos da Podólia (no que é hoje a Ucrânia), Clarice chegou ao Brasil ainda criança, mas permaneceu sempre uma estrangeira, no sentido em que “era uma estrangeira na terra” (p. 3). O ponto mais original da análise literária de Moser é a leitura da obra de Clarice à luz da condição judaica. Para além das marcas psicológicas, a experiência do exílio foi traduzida de forma indirecta por Clarice nos seus livros, que prolongam a tradição judaica de estabelecer uma relação com o divino através da escrita.

 

Equilibrada entre a contextualização histórica e política e uma interpretação apaixonada da obra de Clarice (Moser considera A Paixão Segundo G.H. um dos grandes romances do século XX), esta biografia consegue a dupla proeza de ser uma obra autónoma de grande valor e de cativar o leitor para o universo lispectoriano. De chave na mão.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:33
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