Flores Azuis

Flores Azuis pode ter ganho a Copa de Literatura Brasileira, mas a exibição não convence. O romance de Carola Saavedra começa com a carta de uma mulher ao ex-amante cheia de tua-boca-na-minha-boca e será-que-te-lembras?-não-não-te-lembras. O leitor impaciente pode sentir-se tentado a deixar a personagem entregue ao seu onanismo epistolar. Seguem-se mais oito cartas intercaladas pela história do homem que, acidentalmente, as recebe. Na ressaca de um divórcio, Marcos, o novo inquilino do apartamento onde vivia o amante da mulher que escreve as cartas, não resiste à tentação de as ler. E naquelas palavras encontra uma promessa de mulher totalmente diferente das que conhece: a ex-mulher, a actual namorada e até a própria filha de três anos, que é menos uma criança do que uma incubadora de defeitos femininos. As personagens femininas são um autêntico auto-golo. A namorada e a ex-mulher são como a frente e o verso de uma figura de cartão, sem outra função que não seja a de levar Marcos a concluir que “o mundo das mulheres é um mundo fechado[...], um mundo à parte” (p. 69). “Mulheres-vampiro”, belas e exigentes, são meros acessórios narrativos sem qualquer espessura dramática. E quando as personagens são frágeis, a fé do leitor vira-se para a prosa, embora a de Carola Saavedra não chegue para salvar o livro da mediania. Há uma intensidade lírica, sobretudo no formato epistolar, feita de reiterações e dupla adjectivação (“mas você aí, alheio, mudo” p. 6; “o teu rosto tenso, apreensivo” p. 7; “Eu fiquei ali, imóvel, muda” p. 39; “teu jeito dócil, indefeso” p. 59), que corteja o género de impressionismo vago que desconhece o conceito de mot juste. A prosa poética é sempre uma linha magra entre o sublime e o sentimentalismo pueril. Noutros momentos, acontece aquilo que os brasileiros chamam pisar na bola. “As crianças deveriam vir com um manual de instruções” (p. 15) e “todas as mulheres eram assim, exigiam atenção, segurança e uma expectativa que ele não sabia qual era” (p. 101) soam a banal psicologia de revista de domingo.

 

A melhor jogada do livro é a ideia wittgensteiniana segundo a qual os limites de uma relação são os limites da linguagem que a descreve. Ao revisitarem o momento da separação, as cartas prolongam a relação, como se esta não pudesse terminar enquanto as palavras a reinventassem. A., a autora das cartas, quer salvar através das palavras aquilo que foi destruído pelas palavras, pelos mal-entendidos. Como as cartas são um trabalho de reconstituição da relação, dispensam o destinatário, bastam-se a elas próprias (“sou apenas eu, eu tudo, o desejo, a escrita, a leitura” p. 21). O amor, o ódio, a violência, o sexo, um punho que entra no corpo da mulher, não acontecem no momento em que acontecem. Acontecem depois, inteiros e nítidos, nas palavras. Terá sido o suficiente para levar a Copa para casa, mas, tal como o Brasil dos dois trincos, o conjunto não encanta.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 23:00
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