Verão

Quando a personagem principal de um romance de J.M. Coetzee é um escritor sul-africano chamado John Coetzee, o alarme metaliterário dispara. O leitor, que se julga sempre mais esperto do que o escritor, aproxima-se cautelosamente, com a esperança de comer o isco confessional sem ficar com a boca presa no anzol da ficção. Mas o pescador experiente, como é o caso de Coetzee, faz do isco e do anzol um só corpo. O peixinho está condenado a saber menos do que o pescador. Deve ler e deleitar-se com a arte que o engana.

 

Após a morte de John Coetzee, o seu biógrafo entrevista cinco pessoas (quatro mulheres e um homem) que se cruzaram com o escritor no período entre 1972-77, antes da consagração literária. Dos relatos fragmentados emerge uma imagem unívoca e pouco favorável do homem. Mais do que um inadaptado, era um inadaptável. É retratado pelas mulheres como assexuado e frouxo, “um homem sem aptidão para o casamento, como um homem que passou a vida no sacerdócio e perdeu a virilidade e se tornou incompetente com as mulheres.” Socialmente, Coetzee assemelhava-se a um seminarista divorciado do próprio corpo, divorciado dos outros. Calvinista nos afectos e na falta de jeito para a dança, era “um homenzinho sem importância”, sem nenhum sinal exterior do talento que haveria de demonstrar.

 

Apesar do jogo de espelhos auto-referencial, Verão não é um romance solipsista. É uma (falsa) biografia em construção, em que os personagens secundários (os entrevistados) invadem o palco principal, deixando o protagonista fora de cena. Desta forma, o foco do romance desvia-se, em determinados momentos, do mundo fechado do escritor para incidir sobre a sociedade sul-africana: a gradual transformação das relações entre negros e brancos, o desencanto burguês dos subúrbios e a ligação complexa dos colonos ao país.

 

Quase no final do livro, uma das personagens faz uma avaliação crítica da obra de John Coetzee. Conclui que o estilo, “demasiado frio”, denota falta de ambição. Ela projecta nos livros as qualidades do homem, enquanto que a mensagem do romance é a oposta. Não devemos confundir o homem com a obra. Não devemos confundir J.M. Coetzee com John Coetzee.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:48
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