O albatroz azul

Há várias maneiras de um escritor, escreva bem ou mal, se destacar: uma polémica, um prémio, a morte. Felizmente, a fama de João Ubaldo Ribeiro no nosso país deve-se apenas às duas primeiras. Pela via de uma polémica de hipermercado ou pela via do Prémio Camões, o que interessa é chegar à obra de Ubaldo Ribeiro, um dos maiores prosadores da língua portuguesa. O Albatroz Azul serve de confirmação.

  

Livro entre um começo e um fim, este romance é uma reflexão sobre a continuidade, sobre aquilo que herdamos e aquilo que nos preparamos para deixar aos que vêm depois de nós. A história começa no dia do nascimento do neto de Tertuliano Jaburu, um velho sereno “que goza de familiaridade com os seres, visíveis e invisíveis.” Tertuliano é o único que sabe, contra todas as evidências e augúrios, que vai ter um neto homem. Este futuro avô vê o nascimento do neto como uma derradeira oportunidade concedida pelo destino: a sua missão é “preparar as glórias do seu grande neto, o que em si, já continha sua própria glória” e garantir que nenhuma imprudência na hora do parto comprometa o futuro do neto, que antevê glorioso. Após o nascimento auspicioso da criança, que até nasce de rabo virado para a lua, Tertuliano sente-se renovado. Porém, uma conversa com um amigo, que o recorda de acontecimentos nefastos que marcaram a sua vida, lança nuvens no dia radioso. Então, numa longa analepse, ficamos a conhecer a história da família de Tertuliano e da ferida funda que, ao longo dos anos, aprendeu a domar mas que nunca soube cicatrizar. E, no tempo que vai do júbilo pelo nascimento ao doloroso remoer das memórias, Tertuliano adquire a certeza pacífica de que a sua hora final está prestes a chegar.

 

Ubaldo Ribeiro faz um elogio da sabedoria popular e das suas expressões: tradições, superstições, crenças e provérbios. Por exemplo, o saber empírico da parteira Altina, que havia pilotado mais de três mil partos, é mais valorizado do que a ciência de “medicastros de merda”. Tertuliano pensa que o “saber coisas demais termina por prejudicar a noção” e apesar de acreditar em Deus nunca foi “de igreja, nem de padre, nem de freira, nem de missa.” Os anos de convívio simples e atento com as coisas do mundo ensinaram-lhe mais do que os livros, os latinórios dos padres e as manhas dos advogados. Nenhum deles pode ensiná-lo a ouvir uma pedra. Dentro deste conceito de filosofia natural, deste panteísmo tropical, quase caeiriano, a linguagem das personagens desempenha um papel fundamental. É ela que, ao mesclar arcaísmos, regionalismos e expressões populares, define as personagens.

 

Ubaldo Ribeiro aproveita os matizes populares para caracterizar as personagens, mas a sua prosa é pródiga em recursos que denotam um conhecimento profundo da variante literária da língua, do Padre António Vieira a Guimarães Rosa. Do estilo mais directo dos dois romances anteriores (A Casa dos Budas Ditosos e O Diário do Farol) Ubaldo Ribeiro passa para um barroquismo elegante, numa demonstração da amplitude do seu talento. Um talento que merece estar acessível a todos os leitores, inclusive os de hipermercado.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:12
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