Terça-feira, 07 De Dezembro,2010

Milagrário Pessoal

Podemos ler Milagrário Pessoal, de José Eduardo Agualusa, como ensaio em fato de romance sobre a língua portuguesa, história de amor senil (o dos velhos é o verdadeiro amor senil) ou louvor das palavras de que se fazem as línguas. “Palavras fazem misérias / inclusive músicas”, cantou (ou assobiou) o poeta-pássaro Manoel de Barros, a quem o novo romance de José Eduardo Agualusa muito deve. As palavras têm poder, as palavras são poder. Neste romance, a associação entre palavras e magia é frequente: dos povos que ainda acreditam na sua natureza mágica (p. 72) aos poetas que tentam devolver às palavras o “seu brilho antigo”, a sua magia (p. 88). O realismo mágico, que também há por aqui, é consequência da magia do verbo. As palavras e as línguas não são apenas razão, logos, têm uma carga telúrica, são a topografia verbal de um povo, ideia expressa na profecia segundo a qual os angolanos haveriam de falar “um português próspero, redondo e musical”, onde se ouviria o largo rumor do Cuanza [...], o colorido piar de suas muitas aves, o silvo do vento soprando húmido por entre o capinzal.” (p. 33).

 

Palavras também são poder, política no sentido mais lato. Podem significar insubmissão, como no caso do timorense que declamava sonetos de Camões. Podem siginificar afirmação nacionalista, como no caso das elites brasileiras que passaram a utilizar apelidos de origem tupi. Podem significar subversão, como o colonizado que pretende colonizar a língua do colonizador para assim o dominar.

 

As palavras estão no centro da intriga. Iara é uma linguista que estuda o aparecimento de neologismos na língua portuguesa para os dicionarizar. Quando, numa única semana, surgem vinte e três neologismos em várias publicações, pede auxílio a um ex-professor - o narrador do livro - um octogenário anarquista angolano. Os dois lançam-se numa busca quase danbrownesca e com uma pitada de O Pêndulo de Foucault, que os leva de Lisboa a Olinda. Uma trama que serve para vestir o fato de romance ao material ensaístico (ver o décimo primeiro capítulo) e que, dada a sua natureza flexível, permite a Agualusa o já habitual exercício em vários registos do idioma (segundo e quarto capítulos como os melhores exemplos).

 

Com a atenção que dedica aos neologismos, Milagrário Pessoal é veículo para a ideia da língua enquanto ser de uma inteligência orgânica que rejeita as palavras que o adoecem e assimila as que o retemperam. Como se à língua não se pudessem impor palavras, como se estas apenas estivessem à espera de quem as colhesse. O livro homenageia alguns dos colectores subversivos – porque a mais radical das subversões é “a de melhorar uma civilização sofisticando o seu idioma” (p. 22) – da língua portuguesa: Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Luandino Vieira e Mia Couto. Agualusa não se junta ao bando como companheiro de viagem, optando por guardar a distância defensiva do ornitólogo que observa os poetas-pássaro em acção. O autor agradece-lhes a afinação da ferramenta com que constrói os seus romances. Um utensílio que é também, e cada vez mais, o tema central da obra de Agualusa.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:26
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Segunda-feira, 27 De Setembro,2010

Barroco Tropical

Aldous Huxley escreveu que “um livro sobre o futuro não pode interessar-nos, a não ser que as suas profecias tenham a aparência de coisas cuja realização se pode conceber”. Barroco Tropical, sétimo romance do angolano José Eduardo Agualusa, não corre o risco de não nos interessar porque para conceber o futuro imaginado pelo escritor basta saber um pouco sobre o presente de Angola. A acção decorre no ano de 2020, em Luanda, mas ao longo das 339 páginas do livro, Agualusa mantém o leitor em 2009. A culpa talvez seja de um país onde, como diz um dos personagens, “até o futuro é arcaico”. O oxímoro, e não há escassez de oxímoros no livro, capta a essência contraditória da sociedade angolana. Opulência e miséria, tradição e futuro, realidade e ficção são elementos que, ao invés de se anularem, se potenciam. Do oxímoro à hipérbole, a figura de estilo do barroco, é um pequeno passo. Um excesso que Agualusa não desaproveita, nem sempre com os melhores resultados. Os bons contadores de histórias, e Agualusa é dos melhores da nossa língua, têm uma fraqueza: desperdiçar uma história é um acto contranatura. Sobram personagens excessivos em Barroco Tropical, um mal ampliado pela estrutura do livro que tem um capítulo dedicado à apresentação dos personagens secundários. Mesmo com uma epígrafe que se socorre da compreensão metaliterária do leitor, o capítulo 3 não deixa de ser uma solução que expõe demasiado a estrutura. São 40 páginas em que o “engenheiro” substitui o romancista ou, para recorrer a uma imagem do livro, em que a lagarta irrompe da borboleta. O escritor parece não ter resistido quer à própria imaginação, quer “ao alfobre de personagens insólitos” que é Luanda. Quando se olha a realidade de fora, e o olhar de Agualusa sobre Angola é o de um “estrangeirado”, tem-se a virtude de ver o que os outros não vêem. Por outro lado, o olhar exterior pode ser afectado pela “síndrome do turista”, que consiste no fascínio pueril pelo pitoresco e pelo superficial. O observador perspicaz pode tornar-se o guia de uma visita à Disneylândia do Terceiro Mundo, com os seus pobres, os seus curandeiros e os seus Ratos Mickey. É o principal risco de se descrever uma sociedade em que o absurdo invade o quotidiano ao ponto de não se distinguirem. Um risco presente desde o início do romance em que, numa inversão gravítica do episódio mais célebre do “realismo mágico”, uma mulher cai do céu. Esta profusão tropical de personagens e situações é temperada pelo estilo enxuto de Agualusa. A linguagem é sóbria, à procura da palavra certa, e evita exibições grandiloquentes de virtuosismo que transformariam o livro num pleonasmo de barroco, um exagero exagerado. O facto de o narrador principal ser um escritor permite o recurso a artifícios como as reflexões sobre a estrutura do romance, os apartes etimológicos e as referências a outros escritores (Coetzee, Manoel de Barros, Augusto Monterroso e até uma piada sobre Paulo Coelho), que apelam ao leitor mais cínico. Livro sobre o futuro de Angola, Barroco Tropical é também, implicitamente, um livro sobre o futuro da língua portuguesa. A escrita de José Eduardo Agualusa, que se desloca com elegância entre as diferentes variantes do idioma, navega esse futuro que se pode designar de “português transatlântico”.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:03
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