Keith Richards - Life

A autobiografia de Keith Richards é um longo e divertido manual de sobrevivência ao facto de se ser Keith Richards. Há quem imagine a vida do guitarrista da maior banda de rock do mundo como uma montanha-russa de gravações, concertos, mulheres deslumbrantes e cocktails de drogas. Estão enganados; é muito mais do que isso: rusgas, conflitos com Mick Jagger, quedas aparatosas, discussões com Mick Jagger, confrontos com as autoridades, afirmações do laço inquebrável com Mick Jagger, uma receita de salsichas e puré e uma capacidade quase sobre-humana de deflagrar incêndios. A constante do livro é, no entanto, a luta entre o espírito autêntico do rock e as concessões necessárias para se sobreviver durante décadas na indústria, e a conciliação do amor genuíno pela música com a marca Rolling Stones ou, por outras palavras, como vender a alma ao diabo e não entregar a mercadoria.

 

Keith Richards nasceu a 18 de dezembro de 1943, em Dartford, arredores de Londres, mas a história que interessa começou em 1961 quando, numa versão barulhenta de Breve Encontro, de David Lean, deu de caras com Mick Jagger na estação de comboios de Dartford. Os dois já se conheciam da escola mas nesse dia descobriram que partilhavam a adoração pelos blues. As condições para se tornarem bluesmen, a exemplo dos seus ídolos de Chicago, não eram as ideais: eram miúdos, ingleses e brancos. A seu favor tinham o tempo livre que dedicavam a ouvir discos e a aprender os truques dos maiores: “éramos promotores não remunerados dos blues de Chicago.” Formaram a banda, vieram os concertos, as gravações, o sucesso e, quando deram por isso, eram uma banda pop, “coisa que desprezávamos”. O sistema absorvera os rapazes rebeldes. Ao mesmo tempo, perceberam que tinham mais a ganhar se trabalhassem precisamente a imagem de rapazes rebeldes, de anti-Beatles, porque afinal “não havia coisa mais fácil do que manipular os meios de comunicação e fazíamos deles o que queríamos” (p. 174). Porém, nos anos seguintes nem tudo foi marketing. Richards e Jagger fundaram uma das mais produtivas e bem-sucedidas parcerias da história do rock, conheceram o sucesso global e puseram os americanos a ouvir música americana, mas os problemas reais com as autoridades sucediam-se, o guitarrista Brian Jones morreu afogado numa piscina e Keith mergulhou a fundo nas drogas pesadas. Experimentar, fosse novas drogas ou novos sons, era a palavra de ordem. Richards descreve assim a sua experiência com ácido: “a coisa mais espantosa de que me lembro sob o efeito do ácido foi ver pássaros a voar – pássaros que não existiam, bandos de aves-do-paraíso que não paravam de voar à minha frente.” (p. 210). Na mesma altura, descobre o open tuning, a “afinação em cordas soltas” – um conceito relativamente simples de explicar a um músico e que, para um leigo, tem o som incompreensível da gramática islandesa -, que lhe revolucionou a forma de tocar guitarra e de entender a música. Tudo isto tendo como pano de fundo traições pessoais, ameaças de ruptura e uma história rocambolesca a envolver uma rusga policial, Marianne Faithfull (na altura, namorada de Mick Jagger e que também terá passado pelos braços de Keith) e uma misteriosa barra de chocolate Mars que lhe teria servido de dildo.

 

Por mais de uma vez, os Stones estiveram à beira do fim, mas conseguiram sempre dar a volta. O motivo da lendária resistência da banda tem de ser encontrado naquela que é a verdadeira história de amor – e ódio – do livro: a conturbada relação entre o guitarrista e o vocalista, os dois pilares dos Stones. E, nesse aspeto, o velho pirata não poupa o grande pantomineiro e chega a referir-se, num passo pouco gracioso, à sumária masculinidade de Jagger. “Eu desci aos meandros do cavalo e ele subiu à esfera do jet set” é uma boa síntese das divergências entre os dois. Jagger assumiu as rédeas e, mesmo depois de Richards ter deixado as drogas, nunca pareceu disposto a abdicar delas. Uma atitude muito natural para quem, como o próprio companheiro reconhece, se habituara a trabalhar por dois, enquanto ele se “injectava por dois.” As manias de celebridade de Jagger, o que Richards chama de SV (síndrome do vocalista), ameaçaram a estabilidade do grupo porque “[p]ara ele, os Rolling Stones eram o Mick Jagger e os outros.” Foi a “faísca electromagnética” entre os dois, a química humana e musical, que os manteve unidos. A guerra aberta acabou por não resultar numa destruição total e, num clima de hostilidade latente após tentativas de carreiras a solo com pouco sucesso, voltaram a erguer a incansável máquina dos Stones, que dura e fatura até hoje: “porque as pessoas querem é ouvir os cabrões dos Rolling Stones, é ou não é?”

 

Keith Richards é o exemplo perfeito de como é possível cultivar uma imagem de rebeldia e inconformismo sem ficar completamente preso a essa imagem, acabando como uma caricatura de si próprio, e sem sucumbir aos excessos, acabando afogado numa piscina ou no próprio vómito. O próprio Keith não tem muitas certezas em relação à primeira: “Já nem sei até que ponto não protagonizei eu o papel que outros me destinaram. (...) É impossível não te transformares numa paródia daquilo que julgavas ser.” No entanto, ao fim de quase cinquenta anos, Keith Richards ainda anda por aí, sempre acompanhado pelo outro “Keith Richards”, com “o anel com a caveira, o dente partido, a maquilhagem negra em torno dos olhos.” O segredo? Uma boa herança genética e uma respeitável dose de sorte. Durante vários anos, Keith ocupou o primeiro lugar de uma lista do New Musical Express das estrelas rock com mais probabilidades de morrer em breve. Sobreviveu. E com ele a aura de eterno revoltado. Para se perceber por que raio o guitarrista dos Rolling Stones é tão cool convém distinguir entre uma estrela e uma vedeta. As vedetas precisam que os holofotes estejam sobre elas. As estrelas irradiam uma luz própria, como se não tivessem de fazer um esforço sobrenatural para brilharem. Keith Richards é uma estrela. As rugas jurássicas e a magreza dos duros, como se o corpo fosse um mapa dos excessos e da trajetória da banda, ajudam-no. Há ali qualquer coisa que não cedeu ao conforto, às mansões gigantescas e aos milhões de dólares. O corpo de Richards é um manifesto vivo da filosofia do rock, no andor dos mitos que lhe inventaram e que ele nunca se preocupou em desmentir. Aquilo que ele nos conta não é uma lição. É a vida. Neste caso, a life.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:28
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