O furacão que nunca chega

E. M. Forster dizia que o único defeito que uma história pode ter é o de os leitores não quererem saber o que vai acontecer a seguir. Nos contos de Lydia Davis (1947) não interessa o que acontece a seguir porque isso implicaria que tivesse acontecido alguma coisa anteriormente. E nunca, ou quase nunca, acontece alguma coisa. As 600 páginas destes Contos Completos, que reúnem os quatro livros de contos publicados por Davis entre 1986 e 2007, estão repletas de desacontecimentos. As histórias nunca são interessantes, porque nada acontece, e é por nada acontecer que são importantes. Não há uma sucessão de ações logicamente encadeadas para permitir a fruição narrativa esperada: início, desenvolvimento, conclusão, movimentos de choque emocional, rupturas, mudanças, epifanias. O método de Davis consiste em enleantes e hipnóticas descrições de processos em que se resiste a todo o custo ao recurso aos artifícios narrativos convencionais. Não tanto para frustrar o leitor, para jogar com as suas expectativas e gorá-las, como para atingir o patamar flaubertiano de impessoalidade na escrita, o ideal estético e ascético de escrever sobre nada. Como as histórias não têm o esqueleto do enredo para as manter de pé, a autora fá-las flutuar através da linguagem.

 

Desta forma, Davis investiga os paradoxos do quotidiano, evade-se da sequência cronológica em que vivemos para a sequência aleatória, mas constante, do pensamento e, mais do que do pensamento, daquele ruído branco que nos preenche a cabeça quando não estamos a pensar, por exemplo, a maçaneta para a qual estou a olhar neste momento e que talvez precisasse de ser limpa, embora eu não tenha os produtos de limpeza adequados para a realização da tarefa e a ideia de limpar a maçaneta com uma toalhita me incomode (esta última frase é uma paródia ao estilo de Davis que pode prosseguir durante páginas e páginas neste registo átono e narcótico), e revira as coisas e as pessoas até estas adquirirem qualidades que lhes são alheias. Essas transformações podem ser surreais e alegóricas, como no caso de mulheres que se transformam em cedros (Os Cedros) ou de uma rapariga que se transforma em pedra (A Transformação), ou, o que é mais frequente e inovador, podem representar a fusão de duas categorias por intervenção da linguagem que exprime uma nova forma de ver.

 

Ver as coisas como pessoas e as pessoas como coisas é um dos processos mais comuns em Lydia Davis e o que mais contribuirá para o efeito de estranheza e distanciamento dos seus contos. O efeito pode ser conseguido com uma só frase: “Aqui os objectos mais impressionantes são a gente comum”; mas também pode ser atingido em três degraus, de forma mais sugestiva: “Toda a gente tem uma mãe algures. Há uma mãe connosco ao jantar. É uma mulher pequena com óculos de lentes tão grossas que parecem negras quando ela põe a cabeça de lado.” Por um lado, aquela é uma mãe e não “a” mãe, é uma entre muitas, uma peça de mobiliário. Por outro, é aquele ser humano frágil e concreto. Aquela mãe é todas as mães, faz o que se espera que as mães, enquanto objetos funcionais, façam, mas são precisamente essas características gerais que a humanizam: “Sofreram por nós, e a maior parte das vezes algures onde não as podíamos ver.” É um processo delicado. Não significa falta de empatia ou frieza emocional, como se vê noutro conto, As Bisavós, em que, paradoxalmente, a reificação confere às pessoas uma renovada e até comovente presença humana. O mesmo efeito humanizador de um olhar clínico e distanciado verifica-se em O Que Aprendes Sobre o Bebé. Da acumulação sem qualquer sentimentalismo de pormenores da atividade do bebé – os sons, os movimentos e os ritmos – emerge a presença vívida da criança.

 

Quando se diz que os contos de Davis são sobre nada o que se está é a registar a ausência da espinha dorsal do enredo. Os temas estão lá, desde o primeiro livro Acerto de Contas (1986): a solidão, o silêncio, o afastamento, as separações, a impossibilidade da felicidade partilhada, o tédio do quotidiano e as fantasias paliativas que nos ajudam a suportá-lo e que nos ajudam a redescobrir o lado reconfortante desse quotidiano, as dívidas emocionais que herdamos dos nossos pais e as que legamos aos nossos filhos, a maternidade e a criação literária, a “curiosa natureza das famílias”. O desejo de isolamento, normalmente na forma arquetípica da casa de campo, é recorrente (Projecto de Casa, Numa Casa Sitiada, Terapia, A Criada de Servir, Amor Seguro, St. Martin, Gente da Cidade). Como se apenas no confronto com a solidão as coisas adquirissem realidade e como se o contacto diário com as pessoas fizesse delas um pedaço de tecido muito usado (O Cunhado). Sucedem-se as conversas telefónicas que, no universo de Davis, são a única possibilidade de verdadeiro contacto. No conto Glenn Gould afirma que o pianista canadiano estava convencido que “podia conhecer melhor a essência de uma pessoa pelo telefone.” A distância que nos separa dos outros, que não nos permite compreendê-los, não é muito diferente da distância que nos separa de nós próprios:“É como se não fôssemos nós que fazemos o que fazemos, mas um ser que nós não reconhecemos.”

 

Entre aforismos (“para se suportar ouvir outra pessoa que fala da sua infância, é preciso estar-se apaixonado por ela”), paradoxos (“Custou-me tanto descobrir este lugar, que creio que não o encontrei”), questões filosóficas (querer determinar se os nossos sentimentos são ações, se pensar uma coisa equivale a fazê-la), vamos encontrando pistas para decifrar esta obra que, na brevidade de uns contos e nas circunvoluções de outros, pode ser exasperante. São dádivas do autor aos leitores: “Uma mulher escreveu uma história em que há um furacão, e, de costume, um furacão promete ser interessante. Mas nesta história o furacão ameaça a cidade sem chegar a atingi-la realmente. [...] quanto menos coisas há numa história, mais são as que têm de ocupar o seu centro.” Outro conto abre assim: “É-lhe difícil, muito difícil, escrever esta história, ou talvez ela devesse dizer que lhe é difícil escrevê-la bem. Mostrou-a a um amigo, e ele disse-lhe que devia torná-la mais interessante.” Estes momentos de reflexão teórica são as pistas que nos permitem ir avançando, sabendo que nada irá acontecer e sabendo que o não acontecer nada não significa que nada exista. Tal como o furacão existe sem nunca atingir a cidade, os contos de Davis são granadas em cima de uma cómoda que não precisam de explodir para que lhes reconheçamos o seu potencial destruidor e a sua essência de engenho explosivo. Se explodissem seriam destroços; assim, intactas e ameaçadoras, são granadas e, ao mesmo tempo, a explosão que não acontece.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:46
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