Não Humano

No prólogo de Não Humano o narrador descreve três fotografias de um homem: em criança, como estudante e, na última, de idade indefinida. São todas monstruosas porque o rosto não tem indícios de humanidade, tão inexpressivo quanto o de um macaco. O livro consiste nos três cadernos de memórias desta personagem, Yozo, um homem incapaz de se ligar à humanidade, de sentir empatia pelos outros ou de sequer compreender as motivações alheias. No entanto, ao contrário de outros notáveis sociopatas e alienados literários (Raskolnikoff, Meursault ou K.), Yozo encontra uma forma de conviver em sociedade sem levantar suspeitas sobre o seu grau de afastamento em relação aos seus semelhantes. E essa forma é através da farsa, daquilo a que ele chama as suas palhaçadas. Yozo não tem “a mais pequena ideia de como ou quão extensas possam ser as angústias dos demais”, pensa que é “completamente diferente do resto” e confessa que sempre tremeu “com medo diante de humanos”, mas esse abismo entre ele e o resto do mundo não o incita a uma rebelião homicida: “Durante o curso da minha vida desejei inúmeras vezes ser vítima de uma morte violenta, mas nem uma vez ansiei por matar alguém.” O seu niilismo é virado para o interior, para o apagamento do eu e não para a eliminação do outro: “vou ser nada, o vento, o céu.” Todos os esforços são aplicados na construção de uma máscara que, no fim, acaba por ficar colada ao rosto. Yozo é um subhomem com consciência da sua estranheza melancólica. Mesmo nos momentos mais negros da sua existência está mais próximo da farsa do que da tragédia. Quando tenta suicidar-se com uma rapariga, ela morre mas ele sobrevive; toma dez comprimidos laxantes convencido que eram soporíferos; quando, sem saber bem como, se envolve nas atividades clandestinas dos comunistas depara-se, por acaso, numa posição de destaque (Kafka mas assumidamente burlesco). A sucessão de farsas, relações falhadas e episódios de degradação alcoólica ilustra o sentimento de auto-destruição da máscara que esconde o ser não-humano que Yozo sempre foi. Quase no final diz: “Deixara então de ser um humano”, mas desde o início reconhece que carrega com ele o peso da desumanidade.

 

Não Humano foi o último livro de Osamu Dazai (1909-1948), escritor japonês que conheceu grande sucesso na primeira metade do século XX. Supostamente autobiográfico, o livro continua a ser vendido no Japão, o que demonstra que, embora muito pessoal, as cordas da solidão e da despertença que Dazai tocou continuam a ressoar até hoje.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:24
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