Peregrinação de Enmanuel Jhesus

Timor-Leste, como qualquer outro país, é uma ficção. Peregrinação de Enmanuel Jhesus, o novo romance do jornalista Pedro Rosa Mendes, é uma ficção literária sobre a ficção de um território. Pelas vozes de várias personagens, são evocados 500 anos de História, da indigência do luso-colonialismo à ocupação indonésia, da guerra civil ao messianismo tardio que culminou com a independência de um país inviável. Um desfecho adequado à narrativa da vitimização timorense (“[...] a língua eucaristica e narrativa de vitimização são os dois tesouros nacionais no génesis do Estado Lorosa’e.”). Alor, a personagem central, desempenha a função sacrificial, o Moisés criado pelo inimigo e que não verá a terra prometida. Aquele desfecho também serviu de epílogo à narrativa do Portugal colonial. Se este é um livro sobre Timor é também um livro sobre Portugal, que viu naquela ilha a última oportunidade de redenção de uma descolonização desastrosa. Dois actores marginais da História contemporânea a confluírem para um final apoteótico de culpa, sangue e libertação política e moral. Nesta história, Timor não foi o único “pequeno povo condenado à pequena ambição da vitória moral”.

 

Embora possam ser detectadas semelhanças com Baía dos Tigres, híbrido de difícil classificação, Peregrinação de Enmanuel Jhesus é um objecto de contornos literários mais definidos, sem prejuízo da diversidade de registos. Algo que, a par da amplitude do relato, justifica a polifonia do romance: da cartografia aos sistemas de linhagem, da história militar e religiosa à diplomacia das grandes potências, das artes marciais à arquitectura, o leque de temas é tão vasto que a hipótese de um único narrador aproximaria perigosamente o livro do género jornalístico, uma espécie de mega-reportagem didáctica. A flexibilidade da estrutura – os autos de uma missão de inquérito conduzida por um bispo norueguês – é o sustentáculo da harmonia do coro. O realismo e a erudição de Dalboerkerk (a voz principal) entrelaçam-se com naturalidade no lirismo quimérico de Wallacea (a única voz feminina). O resultado é um romance magistral, a milhas do que se convencionou chamar literatura portuguesa.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:53
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