Estamos Unidos na América

Alexis de Tocqueville nasceu numa França pós-revolucionária que não era o sítio mais agradável para os aristocratas, mesmo para aqueles que se contentavam com o privilégio plebeu de manter a cabeça agarrada ao corpo. Dividido entre o sangue nobre e as ideias democráticas, Tocqueville foi para a América observar a democracia em funcionamento. Daí resultou a sua obra maior, A Democracia na América.

 

Foi a leitura de Tocqueville que levou Peter Carey (n. 1943), escritor australiano duas vezes vencedor do Booker, a escrever Parrot e Olivier na América. Olivier de Garmont é inspirado em Tocqueville, embora o romancista se limite a pedir emprestados alguns dados da biografia, inventando os restantes para compor uma narrativa que, na sua dimensão satírica e picaresca, nada deve ao estilo analítico do pensador francês. A história é narrada por Olivier e Parrot, o amo e o seu criado inglês, duas personagens fascinantes à procura de um lugar num mundo muito diferente daquele em que nasceram. A sociedade francesa era um palco em que as personagens ocupavam o mesmo posto ao longo de toda a vida. A democracia americana rompe com esse modelo de encenação: ali, as personagens são lançadas para o palco em condições de igualdade e a dependerem exclusivamente do seu espírito de iniciativa. O que para o criado é uma oportunidade de se libertar das correntes sociais, para Olivier é um drama. Se, em França, um aristocrata era uma espécie em perigo, na América é um bicho estranho e desadequado ao meio, um papagaio empalhado num concurso de aves de rapina.

 

Peter Carey, com um humor que varia em função do narrador (ora aristocrático, ora popular), controla os detalhes de recontituição histórica e as ideias (quase todas sobre a América e quase todas em segunda mão e que, de qualquer maneira, não reclama como originais) não permitindo que se ergam acima das personagens. Mesmo o que é excessivo (inúmeras peripécias e os relatos, por vezes entediantes, de viagens - uma cadeira de baloiço narrativa em que as personagens estão paradas e em movimento) reforça a longa gestação da amizade que acabará por unir Olivier e Parrot no único lugar do mundo onde isso seria possível. A América do século XIX, que não produz um Voltaire mas inventa o revólver, é esse lugar que, ao incentivar a mobilidade social, os transforma de arquétipos das respectivas classes em dois seres humanos. É apenas no final, quando essa amizade improvável se confirma, que as personagens chegam verdadeiramente à América.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:45
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