Quinta-feira, 06 De Janeiro,2011

A Literatura Nazi nas Américas

Ao Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges, falta esse magnífico animal chileno, o Roberto Bolaño (1953-2003). Escritor compulsivo, o Bolaño é um híbrido de cabeça borgesiana e de corpo realista, visceral, não raras vezes escatológico. É omnívoro, embora a sua dieta não inclua o realismo mágico, cuja simples visão lhe provoca reacções nervosas extremas. Acusado de ser um writer’s writer (animal meta-literário e erudito, contem-se as personagens dos seus livros que são escritores ou literatos), tempera essa tendência com um excesso de realismo que, por sua vez, descamba num ambiente ainda mais onírico e irreal (ver A Parte dos Crimes, em 2666). O Bolaño pega na herança de Borges e leva-a para campos de batalha e desertos cheios de cadáveres. Tão depressa cita William Beckford como logo a seguir nos serve descrições sangrentas de torturas; salta de Melville para um grafismo sexual que pede meças aos especialistas do género; inventa escritores centro-europeus e sádicos latino-americanos; domina as bibliotecas sagradas e as ruas sórdidas; da árvore da ciência só comeu metade do fruto: o que lhe deu o conhecimento do mal.

 

Em forma de enciclopédia de escritores imaginários e de bibliografias inventadas, A Literatura Nazi nas Américas (1996) é um produto da cabeça borgesiana de Bolaño e peça central do puzzle que é a sua obra. Entre personagens extravagantes, como o poeta argentino que também é líder da claque do Boca ou o pensador brasileiro especialista em refutações prolixas de grandes nomes da filosofia, aparecem pela primeira vez outras que hão-de ser repescadas no futuro: Ramírez Hoffman é o modelo para Carlos Wieder de Estrela Distante e a história do general romeno Eugenio Entrescu é narrada pormenorizadamente em 2666. Os grandes temas – o Mal, a loucura, a solidão do escritor perante uma eternidade que desdenha dos seus esforços – são anunciados. O ofício da literatura, capaz de proporcionar a glória, é também a via tortuosa para o esquecimento. Os escritores imaginados por Bolaño suicidam-se, enlouquecem, desistem, abrem frutarias ou restaurantes, os textos inéditos são atirados para o lixo - é longo o inventário de derrotas e desenganos. O que pode um escritor contra o tempo se entre uma biografia imaginária e a vida de um autor que já ninguém lê não existe uma diferença substancial? Só há uma saída: escrever, escrever, escrever. É essa a lição de A Literatura Nazi nas Américas. É esse o exemplo do animal Bolaño.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:29
link do post
Segunda-feira, 27 De Setembro,2010

2666

 

O maior desafio de escrever um romance de mil páginas é o de se conseguir manter a unidade. Foi essa a grande proeza de Roberto Bolaño. São mil páginas de domínio da mão e da narrativa, de obstinação e, em alguns momentos, de génio, mas também, é forçoso reconhecê-lo, de longos períodos de masturbação livresca e de meta-literatura estéril.

 

Em 2666 há uma unidade geográfica, a ficcional cidade de Santa Teresa, no México, palco de dezenas de assassínios de mulheres, mas sobretudo atmosférica. As cinco partes do livro e as personagens principais confluem para o deserto de Sonora, na fronteira com os EUA, atraídas por um íman de morte e de loucura. Chegadas a Santa Teresa mergulham num mar de irrealidade, uma névoa onírica que nunca se dissipa ao longo do romance. Seja no cenário desolador de uma Europa devastada pela II Guerra Mundial, seja no deserto de Sonora, cujo tempo é assinalado pelo “gotejar incessante” de cadáveres, as personagens movimentam-se como fantasmas perdidos num limbo de sonhos e de aparências, que evocam o conto de Borges, “As Ruínas Circulares”, cujo protagonista compreende “que ele próprio também era uma aparência, que outro estava a sonhá-lo”. Há a criança que quer viver no fundo do mar, os presos que parecem seres de outro planeta, os soldados que caminham como zombis, os loucos internados em manicómios e as crianças bêbedas que jogam à bola: presenças voláteis que flutuam num meio ambiente hostil, como peixes no deserto.

 

2666 é um território do medo, da loucura e da incerteza. “No México uma pessoa pode estar mais ou menos morta”, mas os mortos aparecem e os suspeitos evaporam-se. A vida é sonho e só a morte é real. Os investigadores são incapazes de resolver o mistério dos crimes, de desfazer o novelo da realidade. Também eles caminham em círculos, tal como os académicos que, na primeira parte do livro, procuram sem sucesso o escritor alemão Benno von Archimboldi, a personagem central do romance. Frustrados por não chegar a conhecer o homem a cuja obra dedicaram as suas vidas, entregam-se à indolência mexicana e passam os dias como sonâmbulos ou detectives drogados. A identidade do autor dos crimes e do perpetrador dos livros permanece oculta sob os alçapões de uma realidade inapreensível.

 

A estrutura narrativa de 2666 é o que Vargas Llosa define de “boneca russa”. Histórias dentro de histórias que, ao partilharem os motivos, criam um efeito hipnótico de continuidade. Não são material enxertado à força no corpo do romance, são órgãos que pertencem ao mesmo corpo, reconhecíveis apesar dos diferentes cenários, tempos e personagens. Ao chegarmos ao final da terceira parte, a parte dos crimes, temos a impressão de que Bolaño poderia ter continuado a narração ad infinitum, numa teia interminável de sonhos e assassínios.

 

Entre tantas outras coisas, 2666 é também um manifesto estético contra as correntes que aprisionaram a literatura latino-americana: o sentimentalismo poético de Neruda e o realismo mágico. Não há na escrita de Bolaño vestígio de cedências ao lirismo sentimental nem ao anedótico do realismo mágico. Há outros pecados, como o exibicionismo erudito sub-borgeano, mas não aqueles.

 

Roberto Bolaño escreveu 2666 consciente de que “todo o livro que não seja uma obra-prima é carne para canhão”. À angústia da criação artística, aos medos que assombram o escritor – o medo de ser mau, o medo de escrever livros que fiquem esquecidos na floresta da literatura, nas valas comuns onde acabam tantas obras menores – Bolaño respondeu com um livro de uma ambição desmesurada. Um livro contra o esquecimento que, nas suas qualidades e nas suas imperfeições, é uma profissão de fé no poder da literatura. A prova de que, ao contrário do que é dito no livro, pode não se acreditar em Deus e, ainda assim, acreditar num livro. Bolaño acreditou.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:07
link do post

Estrela Distante

Sempre que aparece um escritor latino-americano a tendência é saber se é filho de Borges ou de García Marquez. Recorrendo à feliz formulação de José Eduardo Agualusa, trata-se de saber se o autor vem da biblioteca ou da bananeira. Se o símbolo heráldico é o tigre mental de Borges ou o papagaio festivo do realismo mágico. Estes eucaliptos literários confinaram a possibilidade de se discutir a literatura latino-americana aos limites das respectivas obras, como se antes deles nada houvesse e como se depois deles nada de novo pudesse surgir. O chileno Roberto Bolaño (1953-2003) não escapou ao processo de filiação e, após testes de ADN, confirmou-se: Bolaño era da família literária de Borges. Em Estrela Distante, publicado em 1996, há referências explícitas a Borges e, ainda mais frequentes, alusões ao que designamos de universo borgesiano: mapas, duplos, xadrez, filologia, conjecturas e bibliografias falsas. Mas a família de Bolaño é mais alargada e nela cabem Cortázar, Perec, Calvino e o grupo OuLiPo. Aos exercícios de erudição (na mesma página fala-se de Nicanor Parra, Sylvia Plath e Elizabeth Bishop) junta-se o aspecto lúdico, pós-moderno, que se equilibra entre a paródia e o absurdo (no que lembra Gómez de la Serna). A acção do livro inicia-se nas vésperas do golpe que derrubou Allende e acompanha um grupo de jovens estudantes e poetas. Desse grupo fazem parte o narrador e um autodidacta, Alberto Ruiz-Tagle, um corpo estranho de pragmatismo num meio de entusiasmados com a literatura e com a política. Após o golpe de Pinochet, a repressão atinge os membros do grupo. Alguns desaparecem, outros são presos e o enigmático Ruiz-Tagle reaparece como Carlos Wieder, um piloto da Força Aérea chilena, que escreve poemas e versículos bíblicos nos céus de Santiago. Wieder é também o responsável pela morte de alguns dos antigos companheiros. Na última parte, já nos anos 90, o livro adquire contornos de policial em que um detective é pago para encontrar Wieder. Desta forma, Bolaño junta “alta” e “baixa” cultura, o erudito e o popular. Ruiz-Tagle/Wieder é o elemento central do livro. Como é sugerido desde o início, com a comparação entre a sua casa e a casa dos vizinhos satânicos do filme A Semente do Diabo, Wieder é uma encarnação do Mal, uma espécie de anti-consciência negra do regime de Pinochet. É um sádico para quem a arte é meramente funcional e utilitária. A sua poesia megalómana na forma e pobre no conteúdo seria a emanação artística e involuntária da essência da ditadura, uma espécie de braço artístico do regime. Estrela Distante pode ser visto como uma ponte de passagem entre o Bolaño poeta e da narrativa curta para o romancista atípico que alcançou a consagração com Os Detectives Selvagens e com o póstumo, ainda por publicar em Portugal, 2666. É este papel de transição que desculpa o excesso de digressões eruditas e lúdicas que parecem ter sido escritas mais para ajudar o escritor a suportar os rigores do ofício do que para acrescentar valor à narrativa. Estrela Distante vale como exercício de aquecimento para os romances que se seguiram.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 00:59
link do post

mais sobre mim

pesquisar

 

Março 2013

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

tags

todas as tags

blogs SAPO


Universidade de Aveiro