Pássaros na Boca

Samanta Schweblin é apresentada como uma das grandes promessas da literatura latino-americana. Pássaros na Boca, colectânea de alguns dos seus melhores contos, ajuda a perceber a razão do entusiasmo. O território destes contos é familiar. Tal como acontece nos contos do seu compatriota Julio Cortázar, Schweblin introduz elementos fantásticos nas suas descrições realistas do quotidiano, produzindo um efeito de choque que não teria o mesmo impacto se a atmosfera fosse nitidamente sobrenatural. As súbitas alterações no enredo, os acontecimentos repentinos que surpreendem o leitor obrigando-o a pôr em causa o que leu, funcionam como pequenos sismos de absurdo que abalam as certezas das personagens. O protagonista de O Cavador, que ao arrendar uma casa fica a saber que tem ao seu serviço um homem cuja única função é a de cavar um buraco, é um exemplo da forma estranha como as personagens integram o insólito nas suas experiências: como se o mundo fosse assim desde o início. Mas o melhor exemplo é o do conto que dá o título ao livro. Pássaros na Boca é a história de um pai divorciado que descobre que a filha desenvolveu o hábito de comer pássaros vivos. Esse hábito incomum é rapidamente incorporado na rotina daquela família. Por outro lado, os rituais, as tarefas rotineiras e sistemáticas, são expostos como comportamentos maníacos através dos quais as personagens procuram compensar a falta de sanidade. No conto A Medida das Coisas, o protagonista encontra-se num processo de regressão para a infância. O seu trabalho numa loja de brinquedos consiste em organizar a disposição destes por critérios cromáticos. As vendas da loja disparam. Ao mesmo tempo, Enrique é obsessivo no cumprimento de tarefas básicas e não se cansa de repetir “já fiz a cama” ou “acabei de varrer.” É no seu comportamento normal que Enrique revela as suas perturbações, provocadas, neste caso, por uma mãe dominadora e autoritária. Em vários contos, os desequilíbrios familiares são o tema central: Conservas – história de uma gravidez ao contrário – e O Meu Irmão Walter – sobre um deprimido crónico que é o talismã da felicidade do resto da família são, nesse aspecto, os mais conseguidos.

 

Mesmo quando se aproximam do realismo urbano (Matar um Cão), as atmosferas criadas por Schweblin nunca deixam de ser inquietantes, quer pelo grau de violência (Cabeças Contra o Asfalto), quer pelo manejo perfeito do suspense e até do terror (Na Estepe). Entre o onírico e a capacidade cirúrgica de desconstruir o real, Samanta Schweblin é uma voz forte e autêntica do novo panorama literário latino-americano.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 23:54
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