A sala de vidro

A Sala de Vidro, romance do britânico Simon Mawer, percorre 60 anos da história europeia. No centro da narrativa, uma casa. Mais do que uma casa, uma obra de arte arquitectónica. Mais do que uma obra de arte, um símbolo da crença no futuro e no progresso. Só que o futuro, quando chega, vem de botas cardadas e carregado de ódio. O futuro racional e límpido anunciado pelas linhas rectas e pelas paredes de vidro não se cumpre.

 

Na Checoslováquia, no final dos anos 20, os recém-casados Viktor e Liesel Landauer encomendam o projecto de uma casa ao arquitecto Rainer von Abt. Viktor, um industrial judeu, quer libertar-se do Romantismo e do apego ao passado e encontra em von Abt o homem certo para materializar essas aspirações. Os olhos de Viktor estão postos no futuro, num tempo em que “o facto de serem checos ou alemães ou judeus” não tenha importância. O arquitecto, por sua vez, “deseja tirar o Homem da caverna e pô-lo a flutuar no ar.” Com a invasão alemã, a família Landauer é obrigada a refugiar-se na Suiça, seguindo depois para os Estados Unidos. A casa é ocupada por cientistas alemães que aí instalam um laboratório para medição e catalogação de seres humanos. Mais tarde, após a guerra, a Casa Landauer é utilizada como ginásio para reabilitação de crianças deficientes. No final do livro, em 1990, a casa funciona como museu. Nenhuma das mudanças que o espaço sofre ao longo dos anos diminui o fascínio exercido sobre quem o visita. A Sala de Vidro, o ex-libris da casa, é dotada de uma essência que sobrevive às funções circunstanciais. Deste modo, Simon Mawer confronta Arte e História, a tranquilidade da Casa Landaeur em contraste com as convulsões do mundo exterior. Ao resistir às investidas dos acontecimentos históricos, a casa espelha as alterações políticas e sociais mas não se transforma na imagem que reflecte. Esta dimensão “teórica” do romance não é servida em bruto. Mawer dilui as reflexões (sobre arquitectura, sobre história) numa narrativa por vezes demasiado intrincada, a roçar o inverosímil, mas que consegue transmitir o essencial: a influência da sala de vidro – a personagem principal do romance – no comportamento das restantes personagens. É uma lição de arquitectura: a sala não é um mero cenário, mas um actor em interacção com os outros.

 

A Sala de Vidro foi um dos finalistas do Booker Prize de 2009. O autor fez por merecer a distinção. A prosa de Simon Mawer é quase tão translúcida como a própria casa. Mawer esforça-se para que não reparemos nele, o que é parcialmente conseguido na quinta parte do livro, que poderia ter sido escrita por Milan Kundera. A exemplo do que sucede na obra do escritor checo, passado e futuro, memória e esquecimento, são as forças magnéticas do romance de Mawer. A família Landauer caminha em direcção ao futuro, atraída pelos contornos nítidos da casa, mas vê-se obrigada a deixar tudo para trás, para fugir de um presente ameaçador, um presente com as rugas do passado. E é irónico que a casa, que começa por ser o símbolo de um novo começo, acabe como museu, o centro nostálgico que irradia uma ideia de felicidade perdida mas sempre luminosa.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:15
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