Beloved

 

Há bandas que procuram a canção pop perfeita. Os romancistas norte-americanos procuram o grande romance americano. O Santo Graal das letras americanas teria de ser um grande fresco de toda a história americana; mítico mas que projectasse o homem comum; exemplar dos valores americanos, inspirador e escrito na língua telúrica das pedras e da paisagem, a língua de Whitman, de Twain e de Faulkner. Um romance onde coubesse toda a América, um romance que fosse a América.

 

Por esse motivo, pode parecer estranho que um livro escrito por uma mulher negra, sobre a vida de uma escrava e da sua luta para se reconstruir em liberdade, que decorre em meados do século XIX, seja talvez o mais próximo que os escritores americanos estiveram daquele grande romance. É o relato de uma experiência minoritária, sobre uma das páginas negras da história americana e, no entanto, Beloved ultrapassa claramente esses limites. Em vez da construção épica de um país, temos a história de Sethe, mulher, negra e escrava em fuga de uma plantação, Sweet Home, rumo à liberdade. Privado de desejos e vontade própria, o escravo não tinha autorização para se apegar aos seus porque nada lhe pertencia. O seu corpo, animalizado, brutalizado e violado, não lhe pertencia. Para não sofrer mais, o escravo nem sequer se podia afeiçoar aos filhos, porque “não valia a pena memorizar feições que nunca veria transformarem-se em adultas”, “assim protegíamo-nos e amávamos pouco”. Para o escravo, a liberdade era mais do que a carta de alforria, o soldo pago pelo suor do rosto, era “chegar a um lugar onde se podia amar tudo aquilo que se escolhesse - sem precisar da autorização para o desejo”. Quando Sethe se vê novamente sob a ameaça de perder o que conquistou com a fuga, recusa-se a aceitar que os filhos voltem para o lugar escuro de onde escaparam e degola a própria filha. E o que é mais chocante no sacrifício é a necessidade que subjaz ao acto aparentemente tresloucado. Tal como Abraão ouve a voz de Deus e não hesita em sacrificar o seu único filho, Sethe está disposta a matar os filhos para os poupar à não-vida da escravidão. O que parece loucura é, afinal, amor. Depois de conhecer a liberdade, Sethe não quer que os filhos sintam na pele a mesma árvore de carne viva que ela carrega às costas. A memória do sofrimento não se cinge às cicatrizes físicas. Beloved é também uma história de fantasmas que não se podem esquecer (o fantasma da criança morta assombra a casa de Sethe e encarna nessa criatura vinda de lado nenhum que se chama Beloved), de passados que não se podem exorcizar.

 

O Nobel que Toni Morrison recebeu deve-se sobretudo a este seu quinto romance, publicado em 1987. E o lugar de Beloved na galeria dos grandes romances americanos releva da sua ressonância bíblica, que lhe confere o carácter mítico, e do poder evocativo da tradição oral, que lhe garante a força telúrica e o enraizamento popular. É a história da libertação de um povo e do sangue derramado nesse caminho. É sobretudo a história de uma mulher e do seu êxodo particular rumo à Terra Prometida que cada ser humano livre traz no seu coração.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:05
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