O Fio da Navalha

O panteão dos escritores tem várias portas de entrada. W. Somerset Maugham (1874-1965) não utilizou a mesma de contemporâneos como Proust ou Joyce. Enquanto estes traçavam os caminhos que a narrativa haveria de percorrer nas décadas seguintes, Maugham repisava trilhos desbravados décadas antes.

 

O Fio da Navalha (1944), a sua última grande obra, exala todo o perfume da impertinência aristocrática do romancista. Maugham cortejava o cliché sem remorsos (é contar os narizes aquilinos ou atentar nesta pérola: “a nossa imaginação zarpa nas asas douradas do sonho”) e com a segurança de quem tem coisas mais importantes a dizer e não está disposto a despender energias com problemas que há muito foram solucionados (não era Borges que se gabava de utilizar as metáforas mais usadas, estrelas/olhos, morte/sono, exactamente por serem eternas?). Cultivava o aforismo, uma flor de civilização e de espírito, com um afinco comparável ao de Oscar Wilde, mas era através das personagens e do ouvido apurado para o diálogo que o génio de Maugham se expressava na totalidade. Larry, Isabel e Elliott são criações tão completas que temos de admirar os dotes demiúrgicos do seu autor. Um poder aplicado também à descrição do mundo em que viviam, as altas sociedades americana e europeia das décadas de 20 e 30. Os vícios de uma Europa decadentista, o materialismo optimista da América, a sordidez do bas-fond parisiense, o requinte da nobreza na Riviera: Maugham domina os cenários com a desconcertante naturalidade do homem mundano e culto. Por isso, a digressão pelo misticismo hindu soa a nota forçada. Aquela que deveria ser a parte mais espiritual do livro é muito mais superficial do que a descrição da vida fútil do dandy Elliott Templeton. Não há no romance momento mais humano e mais patético do que o sofrimento de um moribundo Elliott por não ter sido convidado para uma festa. À conta daquele faux pas hindu de Maugham, Edward Said poderia ter acrescentado mais um capítulo ao seu Orientalismo.

 

O leitor pode, no entanto, seguir a recomendação de Maugham, saltar o penoso capítulo místico e deleitar-se com o resto do livro, o resultado do entendimento perfeito que o autor tinha do seu ofício e que surge lapidar quando diz que “a arte é triunfante quando consegue usar a convenção como instrumento para seu próprio proveito.”

publicado por Bruno Vieira Amaral às 10:59
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