Pátria Apátrida

Ao longo de quase dois séculos, o tema da pátria tem sido uma constante da literatura austríaca. Nos ensaios reunidos neste livro, W. G. Sebald (1944-2001) identifica os diferentes tratamentos a que o conceito – belo e verdadeiro, mas também sinistro e odioso – foi sujeito, e analisa as causas dessas variações. Desde logo, a pátria pode ser muitas coisas: o lugar onde se nasceu, a infância, a condição social de origem. Todas estas coisas têm em comum o facto de representarem algo que se perdeu, um mundo que ficou definitivamente para trás. A pátria é, pois, um conceito tão mais nítido quanto maior é o afastamento do indivíduo em relação ao objecto tornado pátria. Jean Améry, um dos escritores a que Sebald dedica um ensaio, escreveu que a pátria “é algo que, quanto mais se tem, menos se necessita (p. 122).” Sebald, na introdução, refere que a ideia nasceu “quando indivíduos e grupos sociais inteiros se viram forçados a virar-lhe as costas e emigrar.” (p. 8) Logo, é indissociável do exílio, cuja natureza, por sua vez, condiciona a relação do indivíduo com a pátria. Karl Postl, a.k.a Charles Sealsfield, escritor do início do século XIX que se auto-exilou nos EUA, “descreve as províncias da Boémia e da Morávia (…) como o paraíso perdido.” O tom é o do “idílio saudosista.” A Jean Améry, baptizado como Hanns Mayer, a pátria suscita sentimentos ambivalentes. Judeu, perseguido e aprisionado em Auschwitz, revoltou-se contra a pátria que o maltratou, mas não deixava de sofrer por lhe ter sido extirpada uma parte fundamental da sua identidade. “Que era então aquela saudade da terra nesses que o terceiro Reich banira por virtude das suas opiniões políticas ou da sua árvore genealógica?” pergunta Améry, para responder: “A minha saudade da terra, a nossa saudade da terra, era a alienação de nós mesmos.” (A Humanidade Perdida, Alain Finkielkraut, Ed. Asa, p. 121) Thomas Bernhard e Peter Handke são os dois expoentes de uma geração cuja relação com a pátria é marcada pela culpa. Rejeitam-na e, ainda que fisicamente não tenham deixado o país, Sebald considera-os “potencialmente apátridas e exilados.” Em todos eles, os saudosistas, os excluídos e os apátridas voluntários, a pátria é uma patologia, com sintomas que variam de paciente para paciente. Sebald cita uma das personagens de Peter Altenberg (1859-1919), que, ao ver um grupo de africanos a chorar, diz: “c’est le mal du pays, a doença mais delicada da nossa alma.” (p. 61).

 

A pátria que encontramos nestes ensaios não é uma mera convenção social e política cuja antítese seria o cosmopolitismo. O cosmopolitismo está de acordo com a natureza humana, porque, como escreveu George Steiner, “as árvores têm raízes, os seres humanos têm pernas”, mas não é incompatível com o conceito de pátria. Améry percebeu-o quando disse que é preciso “ter uma terra própria para não se precisar dela” (Finkielkraut, p. 124). As implicações do desenraizamento forçado não são apenas políticas, da mesma forma que a decisão de Hanns Mayer alterar o nome para Jean Améry é mais do que um processo burocrático. A quebra dos vínculos simbólicos e físicos com a pátria resulta no afastamento do indivíduo em relação ao seu mundo, mas também na separação do indivíduo em relação a si próprio, na desestruturação do eu, na alienação de que Améry fala.

 

Estas questões têm uma importância superlativa nos escritores de origem judia, os grandes especialistas mundiais em construção de identidade no exílio. Sobretudo, naqueles, como Joseph Roth e Jean Améry, que viram, em pleno século XX, a pátria transformar-se em “país inimigo” (p. 125). Para os escritores judeus do século XIX, envolvidos num processo de ascensão social marcado pela recém-adquirida igualdade jurídica e pelo aburguesamento, o saudosismo é projectado no gueto, nas origens humildes, e não está isento de ambiguidades. A saída do gueto é, afinal, uma libertação que, ao mesmo tempo, implica o abandono da identidade construída, precisamente, em função do exílio e do gueto. Sebald refere “a postura que oscila entre a afeição e a rejeição” (p. 38). Chamemos-lhe o dilema da mulher de Ló: sabe que, para se salvar, tem de seguir em frente, mas não consegue deixar de olhar para trás. A idealização do gueto era um claro sinal de que esse tempo era cada vez mais passado. O típico drama do judeu exilado – a colisão entre o desejo de preservar as tradições e a necessidade de reafirmar a lealdade à pátria de adopção – está patente em obras de Leopold Sacher-Masoch e de Karl Emil Franzos. David Blum, personagem de um conto de Franzos, é o exemplo perfeito do processo de assimilação e o seu destino, um indício do que estava para vir: o exercício da medicina permite-lhe a ascensão social, altera o nome para Friedrich Reimann, mas quando, por causa das suas origens, é rejeitado pela mulher que ama, descobre-se subitamente em terra de ninguém. Reimann continua a ser Blum, o judeu, o exilado, o apátrida. Não obstante os esforços de gerações no sentido da integração, os conflitos entre tradição e mudança, entre o gueto e a burguesia, entre a aceitação conformada do exílio e o papel do messianismo numa ruptura violenta com a submissão (o ensaio sobre O Castelo, de Franz Kafka, que Sebald lê como uma alegoria messiânica, é magistral), parecem excentricidades na época em que Roth, depois de uma viagem pela Alemanha, em 1931, conclui com uma clarividência arrepiante: “Não fazem ideia de como já é tarde. Estas cidades estão a cinco minutos do pogrom.” (p. 96). Marcados pela sombra dos acontecimentos da II Guerra Mundial, escritores contemporâneos, como Peter Handke, rejeitam a pátria, não por aquilo que esta lhes fez, como no caso da geração de Améry, mas por aquilo que é, mesmo admitindo, como vimos, que a pátria pode ser muitas coisas diferentes.

 

Nestes ensaios, a pátria que Sebald descobre na literatura austríaca não é uma ideia superficial imposta aos homens pelo romantismo reaccionário. É uma ideia que gera sentimentos contraditórios, desde a exaltação ingénua ao rancor obsessivo, muitas vezes dentro da mesma pessoa. Sebald menciona que Améry nunca conseguiu ultrapassar a perda da pátria. Quando verbalizava o seu ressentimento contra a Áustria, era contra uma parte indivisível do seu ser que falava, o que demonstra que a pátria é uma complexa ideia interior que envolve a recordação daquilo que fomos, dos lugares e das pessoas que amamos – não pode ser separada de nós sem violência. De outra maneira, como poderíamos nós compreender, no sentido mais profundo, o regozijo de Ulisses quando percebe que regressou a Ítaca?

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:16
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