E. M. Forster dizia que o único defeito que uma história pode ter é o de os leitores não quererem saber o que vai acontecer a seguir. Nos contos de Lydia Davis (1947) não interessa o que acontece a seguir porque isso implicaria que tivesse acontecido alguma coisa anteriormente. E nunca, ou quase nunca, acontece alguma coisa. As 600 páginas destes Contos Completos, que reúnem os quatro livros de contos publicados por Davis entre 1986 e 2007, estão repletas de desacontecimentos. As histórias nunca são interessantes, porque nada acontece, e é por nada acontecer que são importantes. Não há uma sucessão de ações logicamente encadeadas para permitir a fruição narrativa esperada: início, desenvolvimento, conclusão, movimentos de choque emocional, rupturas, mudanças, epifanias. O método de Davis consiste em enleantes e hipnóticas descrições de processos em que se resiste a todo o custo ao recurso aos artifícios narrativos convencionais. Não tanto para frustrar o leitor, para jogar com as suas expectativas e gorá-las, como para atingir o patamar flaubertiano de impessoalidade na escrita, o ideal estético e ascético de escrever sobre nada. Como as histórias não têm o esqueleto do enredo para as manter de pé, a autora fá-las flutuar através da linguagem.
Desta forma, Davis investiga os paradoxos do quotidiano, evade-se da sequência cronológica em que vivemos para a sequência aleatória, mas constante, do pensamento e, mais do que do pensamento, daquele ruído branco que nos preenche a cabeça quando não estamos a pensar, por exemplo, a maçaneta para a qual estou a olhar neste momento e que talvez precisasse de ser limpa, embora eu não tenha os produtos de limpeza adequados para a realização da tarefa e a ideia de limpar a maçaneta com uma toalhita me incomode (esta última frase é uma paródia ao estilo de Davis que pode prosseguir durante páginas e páginas neste registo átono e narcótico), e revira as coisas e as pessoas até estas adquirirem qualidades que lhes são alheias. Essas transformações podem ser surreais e alegóricas, como no caso de mulheres que se transformam em cedros (Os Cedros) ou de uma rapariga que se transforma em pedra (A Transformação), ou, o que é mais frequente e inovador, podem representar a fusão de duas categorias por intervenção da linguagem que exprime uma nova forma de ver.
Ver as coisas como pessoas e as pessoas como coisas é um dos processos mais comuns em Lydia Davis e o que mais contribuirá para o efeito de estranheza e distanciamento dos seus contos. O efeito pode ser conseguido com uma só frase: “Aqui os objectos mais impressionantes são a gente comum”; mas também pode ser atingido em três degraus, de forma mais sugestiva: “Toda a gente tem uma mãe algures. Há uma mãe connosco ao jantar. É uma mulher pequena com óculos de lentes tão grossas que parecem negras quando ela põe a cabeça de lado.” Por um lado, aquela é uma mãe e não “a” mãe, é uma entre muitas, uma peça de mobiliário. Por outro, é aquele ser humano frágil e concreto. Aquela mãe é todas as mães, faz o que se espera que as mães, enquanto objetos funcionais, façam, mas são precisamente essas características gerais que a humanizam: “Sofreram por nós, e a maior parte das vezes algures onde não as podíamos ver.” É um processo delicado. Não significa falta de empatia ou frieza emocional, como se vê noutro conto, As Bisavós, em que, paradoxalmente, a reificação confere às pessoas uma renovada e até comovente presença humana. O mesmo efeito humanizador de um olhar clínico e distanciado verifica-se em O Que Aprendes Sobre o Bebé. Da acumulação sem qualquer sentimentalismo de pormenores da atividade do bebé – os sons, os movimentos e os ritmos – emerge a presença vívida da criança.
Quando se diz que os contos de Davis são sobre nada o que se está é a registar a ausência da espinha dorsal do enredo. Os temas estão lá, desde o primeiro livro Acerto de Contas (1986): a solidão, o silêncio, o afastamento, as separações, a impossibilidade da felicidade partilhada, o tédio do quotidiano e as fantasias paliativas que nos ajudam a suportá-lo e que nos ajudam a redescobrir o lado reconfortante desse quotidiano, as dívidas emocionais que herdamos dos nossos pais e as que legamos aos nossos filhos, a maternidade e a criação literária, a “curiosa natureza das famílias”. O desejo de isolamento, normalmente na forma arquetípica da casa de campo, é recorrente (Projecto de Casa, Numa Casa Sitiada, Terapia, A Criada de Servir, Amor Seguro, St. Martin, Gente da Cidade). Como se apenas no confronto com a solidão as coisas adquirissem realidade e como se o contacto diário com as pessoas fizesse delas um pedaço de tecido muito usado (O Cunhado). Sucedem-se as conversas telefónicas que, no universo de Davis, são a única possibilidade de verdadeiro contacto. No conto Glenn Gould afirma que o pianista canadiano estava convencido que “podia conhecer melhor a essência de uma pessoa pelo telefone.” A distância que nos separa dos outros, que não nos permite compreendê-los, não é muito diferente da distância que nos separa de nós próprios:“É como se não fôssemos nós que fazemos o que fazemos, mas um ser que nós não reconhecemos.”
Entre aforismos (“para se suportar ouvir outra pessoa que fala da sua infância, é preciso estar-se apaixonado por ela”), paradoxos (“Custou-me tanto descobrir este lugar, que creio que não o encontrei”), questões filosóficas (querer determinar se os nossos sentimentos são ações, se pensar uma coisa equivale a fazê-la), vamos encontrando pistas para decifrar esta obra que, na brevidade de uns contos e nas circunvoluções de outros, pode ser exasperante. São dádivas do autor aos leitores: “Uma mulher escreveu uma história em que há um furacão, e, de costume, um furacão promete ser interessante. Mas nesta história o furacão ameaça a cidade sem chegar a atingi-la realmente. [...] quanto menos coisas há numa história, mais são as que têm de ocupar o seu centro.” Outro conto abre assim: “É-lhe difícil, muito difícil, escrever esta história, ou talvez ela devesse dizer que lhe é difícil escrevê-la bem. Mostrou-a a um amigo, e ele disse-lhe que devia torná-la mais interessante.” Estes momentos de reflexão teórica são as pistas que nos permitem ir avançando, sabendo que nada irá acontecer e sabendo que o não acontecer nada não significa que nada exista. Tal como o furacão existe sem nunca atingir a cidade, os contos de Davis são granadas em cima de uma cómoda que não precisam de explodir para que lhes reconheçamos o seu potencial destruidor e a sua essência de engenho explosivo. Se explodissem seriam destroços; assim, intactas e ameaçadoras, são granadas e, ao mesmo tempo, a explosão que não acontece.
Publicado na revista Ler
O relatório do orçamento do Estado para 2013 é um daqueles documentos fundamentais que qualquer português culto e moderadamente sensual deveria ler. Os restantes podem continuar entretidos a comer salsichas e atum enquanto engordam os números do desemprego. Estas páginas – expressão imorredoira do génio de Vítor Gaspar – são o paralelo 39 entre dois modos de vida, entre o Portugal alavancado pela poderosa engrenagem comunitária e o Portugal possível onde o bife de vaca é artigo de luxo. É o fim da utopia da classe média e o regresso ao Portugal dos remediados, um país sem remédio. E estas páginas são também um exercício de literatura tecnocrática. Por momentos podemos imaginar um dos membros do Oulipo a escrever um documento espartilhado por este constrangimento: ser o mais desinteressante possível cumprindo os critérios mínimos de legibilidade. O resultado não andaria muito longe deste relatório.
A primeira coisa que sobressai nesta obra notável é a tónica no esforço. Desde logo, o esforço dos trabalhadores do Ministério das Finanças que, segundo o ministro, é “desinteressado” e sem o qual não teria sido possível apresentar a proposta de orçamento a tempo e horas. Ou seja, para cumprir prazos o Ministério das Finanças tem de se valer do esforço desinteressado dos seus trabalhadores o que, traduzido para português, deve significar horas extraordinárias não pagas. É um louvor sentido e, para além disso, revela mestria no uso do eufemismo. Mas o esforço não se fica por aqui, sendo mesmo possível considerar este um orçamento esforçado, como aqueles jogadores de futebol sem talento natural mas que correm muito. Segundo o relatório é preciso mais esforço, de preferência “persistente” e repartido equitativamente. Há o esforço contributivo e o esforço na poupança, com incidência no “esforço de contenção nas despesas com pessoal” e na redução dos “encargos brutos com as Parcerias Público-Privadas”, o esforço fiscal e o esforço coletivo, o esforço financeiro e o esforço de simplificação, o esforço de revisão e o esforço de coordenação. Pedem-se, numa aritmética singular, esforços adicionais que subtraem, esforços acrescidos que reduzem e refere-se um esquisito “esforço deliberado” que cria, por contraste, uma nova e contraditória categoria semântica, a do esforço involuntário. A enxurrada de esforços é tão grande que os esforços até se sobrepõem como no caso de “um esforço acrescido no esforço de consolidação.”
Palavras como corte e reduções são cortadas e reduzidas ao mínimo possível, substituídas pelo mais neutro “ajustamento”. O ajustamento, sendo um emagrecimento forçado tem, ainda assim, uma proximidade semântica a algo que é justo e, como tal, necessário e benéfico. Neste relatório, o ajustamento é “muito exigente e persistente”, embora o que já foi feito seja muito “significativo.” Já os sacrifícios permanecem no lugar de eixo moral e religioso deste orçamento. A via é difícil e estreita – é a nossa via crucis rumo à redenção final, quando não mais necessitaremos de ajuda externa e atingiremos a beatitude celestial da autonomia política. Não a podemos percorrer sem sacrifícios. Estes são inevitáveis e enormes mas evitam “sacrifícios futuros bem superiores.” Ou seja, se não queremos mais sacrifícios temos de fazer mais sacrifícios, o que nos deixa numa situação bem ingrata e, para utilizar um adjetivo muito popular neste relatório, “difícil”. De facto, aqui é tudo muito difícil. Portugal “atravessa um episódio difícil da sua história”, esta é uma “difícil situação”, a sustentabilidade das finanças públicas é “tão difícil”, a consolidação orçamental é uma via “difícil” e até o diagnóstico, a caracterização do ponto de partida, é difícil devido, louve-se o humilde reconhecimento das limitações, “à escassez de competências técnicas adequadas no Ministério das Finanças”. Como se não bastassem tantas dificuldades, o relatório avisa-nos caridosamente que o “caminho que temos que percorrer não é fácil.”
Para mitigar as dificuldades, vale-nos o facto de o governo ter um rumo e saber perfeitamente o que quer e para onde vai. Vejamos, por exemplo, a aposta na divulgação de Portugal enquanto destino para turismo residencial: lê-se no relatório que “importa desenvolver um enquadramento que favoreça a residência de estrangeiros em território nacional”, o que é uma medida muito coerente com os apelos à emigração dos jovens qualificados. No fundo, trata-se de substituir portugueses por estrangeiros para ver se isto começa a melhorar. E como é que o governo pensa desenvolver aquele enquadramento? Simples: com um pacote “para a promoção do turismo residencial que incentiva a atração de turistas residenciais”. Não é dito se o pacote inclui bronzeador, mas é revelador de bom senso e de alguma moderação nos objetivos que um pacote de promoção de turismo residencial vise atrair turistas residenciais e não, por exemplo, refugiados do Norte de África. O projeto vai ainda mais longe porque pretende atrair particularmente “turistas residenciais seniores” e os “respectivos rendimentos” que é para ninguém pensar que só os queremos cá por serem estrangeiros. Nada disso. Também têm de ser velhos e trazer o dinheirinho. Sandálias e meias brancas são dispensáveis. Para 2013, o relatório dá conta de um Governo apostado em várias coisas como desenvolver, reorganizar, reformular, agilizar, rentabilizar, promover e, sobretudo, requalificar. O Património será requalificado e o mesmo acontecerá com as “infraestruturas e equipamentos da Administração Interna”. Em relação à RTP, promete-se “um serviço público de conteúdos de rádio e de televisão consequente com a ambição de mudança que o Governo está a levar a cabo em prol de uma sociedade moderna, aberta e cosmopolita.” Fica por dizer como é que este projeto popperiano se articula com João Baião pois estamos em crer que naquele serviço só há espaço para um dos dois.
Outro aspeto em que o relatório revela determinação para manter o rumo é nas medidas de incentivo ao emprego que são equívoca e divertidamente libidinosas (Programa Impulso Jovem, Programa Vida Ativa, medida Estímulo 2012) e criam a legítima dúvida se o Governo quer reduzir efetivamente a taxa de desemprego ou se está apenas a tentar levá-la para a cama. Se assim for, propomos medidas adicionais como o Programa Titilação Prolongada (destinado a desempregados de longa duração) e o Programa Maduras (apoio a desempregadas com mais de 50 anos). Outras medidas como o “IVA de Caixa” ou o “Guichet Aberto” rivalizam com a nomenclatura mais inspirada das operações da GNR e da Polícia Judiciária. Na área da Reabilitação urbana, construção e imobiliário há uma atrevida Iniciativa Jessica, em honra da campeã de vendas de imóveis na ERA do Seixal.
Ao longo deste brilhante texto, é criada uma atmosfera vagamente conspirativa com a disseminação de inúmeros acrónimos. Aos já familiares BCE, FMI e TSU, juntam-se a GERAP, o RFAI, o CTUP, o PAEF, a EMPORDEF (que não é um programa de emprego destinado a deficientes mas a prosódica Empresa Portuguesa de Defesa), o MAMAOT (canal para adultos que não deve ser confundido com Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território), o desvairado NUTS (Nomenclatura das Unidades Territoriais Estatísticas), o esotérico POPH (Programa Operacional do Potencial Humano) e o paciente SPER (Sector Empresarial Regional). Há também um SIRCA não aconselhável a crianças (Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos na Exploração). A profusão de acrónimos é de tal ordem que até permite ao ministro uma referência oblíqua e um tanto jocosa à “queda acentuada dos CDS”.
Outro pormenor interessante é o da designação das pessoas a quem se destina o Orçamento, os portugueses, ou, em orçamentês, os contribuintes. Neste relatório o cidadão português é salomonicamente dividido em dois: o português, a quem o governo apela sentimentalmente, pedindo um esforço adicional, reconhecendo que este é um orçamento difícil que envolve sacrifícios para todos; e o contribuinte, que paga os impostos. Com os portugueses (que aqui são, por vezes, grafados com maiúscula, os Portugueses), o governo fala mansinho e pede-lhes ajuda na “prossecução deste desígnio nacional.” Com os contribuintes, que só conhece de número, é mais impessoal e tecnocrático: “20% dos contribuintes com salários mais altos”, “contribuintes que auferem rendimentos superiores ao salário mínimo”, “aplicável apenas aos contribuintes que auferem rendimentos mais elevados.” Esta estratégia de serem os contribuintes a auferir em vez dos portugueses é muito astuta porque põe os portugueses a desejar o pior aos contribuintes, esses auferidores de um raio!
Lendo o relatório só não se consegue perceber por que razão Portugal não contacta diretamente com quem manda nisto, que é o contexto (os gráficos também não se percebem mas isso é uma falha da minha formação em Humanidades). Afinal, tudo depende do contexto. O contexto é omnipresente e muito versátil: pode ser, como o clima, favorável ou desfavorável; beneficia de condições desconhecidas para a maioria dos portugueses, como a possibilidade de ser promovido (o relatório diz que se deve “promover um contexto adequado à criação”); e o ministro chega mesmo a reconhecer que pede conselhos ao contexto (“o contexto económico e financeiro atual aconselha à revisão das regras”), o que significa que, no contexto da coligação, o contexto vale mais do que o CDS. Tudo indica que sairemos desta crise muito mais pobres e extraordinariamente contextualizados.
Acredito que à medida que o tempo passa e nos afastamos irremediavelmente dos acontecimentos pode ser que estes percam nitidez e definição, culpa dos pormenores que vamos esquecendo, e adquiram, em compensação, um fulgor e uma renovada vividez, como uma árvore de folha caduca que, caídas as folhas, ganha uma majestade nua e límpida. É assim que vejo a viagem de comboio de há tantos anos, nas férias da Páscoa, eu e a minha avó a caminho de Montalvão, a aldeia aonde regressou meses antes de morrer. Em Santa Apolónia, apanhámos o comboio que nos levaria a Castelo de Vide. Não me recordo da semana que passámos em Montalvão, mas lembro-me da viagem: a paisagem até chegarmos a Vila Franca e a senhora sentada à nossa frente. Já a viagem ia a meio e sentimos um cheiro ácido, a lixívia morna. Incapaz de perguntar pela casa de banho e vendo que o comboio demorava a parar, a pobre senhora urinara ali mesmo. Já é de noite quando chegamos a Castelo de Vide. As poucas pessoas que saem connosco têm alguém à espera, de carro. A estação fica vazia. O silvo de ferro de animal mecânico e pesado afasta-se. Eu e a minha avó, ainda a segurar as malas, estamos à porta. A esta hora já não há camionetas para lado nenhum. Ficamos ali alguns minutos, rodeados de noite por todos os lados, a luz dos candeeiros insuficiente para nos sossegar. Somos duas criaturas vulneráveis. Na estrada em frente passa um carro. Suspiramos. Agora é apenas uma luz vermelha, cada vez mais ténue, até desaparecer numa curva. Regressamos ao interior da estação. A luz das lâmpadas fluorescentes fere a vista. Há um vago cheiro a ferro e urinol. Procuramos horários e números de telefone. Cedemos ao cansaço e sentamo-nos. De repente, sem o esperarmos, aparece o táxi que nos há-de levar a Montalvão, terra onde a minha avó nasceu e onde queria ser enterrada. A tensão desumana daquela curta espera fragilizara-nos ao ponto de a chegada inesperada do táxi nos ter emocionado e confortado. À medida que o carro avança pelas estradas ruins e estreitas, ladeadas de muros baixos de xisto, de oliveiras que se iluminam com a luz cega dos faróis para logo serem de novo tragadas pela escuridão, a trepidação do carro no asfalto remendado dá a impressão de nos deslocarmos a grande velocidade e o nosso conforto torna-se precário e por isso mais intenso, quando nos envolve, e mais desejado, quando por segundos é tragado pelas mesmas trevas que devoram as oliveiras. Para onde nos conduzirá este homem? A rádio dá notícias: tragédia num estádio inglês, muitos mortos. O condutor comenta a desgraça do mundo, lamenta que seja sempre assim, eu lembrei-me de outros mortos, noutro estádio, e a existência daquela tragédia exterior e longínqua aproxima-nos e apazigua-nos, o carro parece abrandar e é então que, depois de uma curva, se vêem os contornos nocturnos da aldeia da minha avó, as luzes das casas e das ruas, a imagem tão familiar e tão querida da torre da igreja e sabemos finalmente que vamos chegar bem. Devemos ter passado uma semana em Montalvão, aldeia em que a minha avó foi criança, mas foi tudo há muitos anos, não tenho a certeza de que tenha sido assim. Permanece a imagem da senhora sentada à nossa frente na carruagem, o cheiro adstringente a amoníaco, a chegada à estação de Castelo de Vide, eu e a minha avó, duas crianças com medo do escuro e das trovoadas, à espera de alguém que nos levasse pela mão através do escuro e das trovoadas até ao bom porto da nossa aldeia, os faróis a iluminar as oliveiras, a rádio a falar de mortos num país distante. Foi apenas isso que ficou: a majestade de uma árvore nua e límpida, que vejo hoje tão claramente como a vi há tantos anos, a silhueta familiar da nossa aldeia a aparecer-nos como um aconchego maternal no fim de um pesadelo, um lugar onde podemos enfim repousar e dormir, sabendo sempre, dolorosamente, que lá fora ainda é de noite, que uma criança e a avó ainda esperam à porta da estação, que tudo o que temos é uma falsa sensação de segurança.
1.
Certa noite, levaram o presidente aos filmes. Dez minutos para o filme começar, irromperam uns macacos em fatos militares, uniformizados e despejaram a sala dizendo aos já pagantes que voltassem noutra sessão. Uns mais velhos gritaram, que o país estava perdido, outrora havia respeito pelos pobres e gente humilde, que era pouca vergonha, mas a ponta das espingardas assestada aos olhos tiraram-lhes ânimos protestativos e saíram dali derrotados para beber bicas nos cafés mortos da cidade. Na sala ficou só o presidente e a guarda pretoriana, todos pretos. O filme começou e o presidente, nem quarto de hora, achou tremenda merda e mandou chamar a gerência na pessoa de um sujeito fininho, amarelado, que noutros tempos teria sido intelectual, mas a quem uma inflamação crónica do intestino e uma gorda pusilanimidade política tinham empurrado para aquelas desdenhosas funções. “Senhor?” “Senhor, o caralho. Não dás para pôr outro filme?”. Que ia demorar, o projecionista estava na hora de jantar e enfim também só havia por ali filmes velhos, alguns carcomidos, incompletos, a banda sonora estragada, até a boa da actriz aparecia toda riscada, talvez noutro dia, com tempo e aviso prévio se pudesse preparar coisa à altura da majestade presidencial. Assim, era difícil. O Presidente sussurrou a um preto da guarda. “Onde está o danado?” “A jantar, senhor” “E janta aonde, o infeliz” “na cabina de projecção, senhor – mas é hora da refeição, senhor” Ainda ele falava já dois dos guardas se mandavam escadas acima rumo à cabina para surpreender o projeccionista a comer desgraçadamente de uma marmita uma esparguete fria com frango seco “Questa merda, caralho? Estou em comeres” “Estás, não, boi. Estás a levantar-te o cu e a pôr um filme para o presidente se apreciar.” “qual presidente, caralho?” O da guarda mais pequeno, nervoso, amigo do gatilho, limpava sarampos por dá cá aquela palha, destrancou logo a arma e não fosse as calmas do outro, mais velho, mais macaco, os miolos do projecionista bem que tinham ficado ali a anfeitar paredes, nomeadamente o cartaz de Casablanca, entre vários, o que teria sido infelicidade porque então o presidente ficava sem filme e miolos de ninguém lhe faziam falta nesta nocturna. “é preciso já um filme que o presidente goste ou vai haver merdas” o projecionista, Salomão, nome que lhe fora dado à pia, aprecebeu então que presidente era o que ali viera, e viu-se em fenomenais apertos e correrias, rezando avé-marias para os seus botões e correndo para trás e para diante, em grande espavento, dando ordens a ninguém porque ali, abaixo dele, ninguém havia e não havendo ninguém, não havia ninguém para lhe obedecer, posto que se viu em situação de cumprir as próprias ordens. Desencantou latas com as bobinas, e avisou, escusando-se, que montar o filme levava tempo, não muito, que ele tinha mãos as melhores do ofício, ainda assim, demorava. O guarda nervoso mantinha o dedo no gatilho, desejoso de pretextos, o outro disse-lhe que se desenrascasse, não era para demorar muito ou havia merdas. Lá em baixo, o presidente bufava e o gerente, cada vez mais diminuído, suava com abundâncias, o rosto alagado, as bochechas mordidas, a tripa que se lhe rebentava, estava prestes a desmaiar, não fosse o tremendo respeito à pátria na pessoa presidencial e a consideração das possibilidades futuras.
2.
Ninguém era especializado em torturas, embora o mister fosse exercido com prazer, zelo e alegria por todos os incumbidos da tarefa. Ninguém se negava a fazê-lo e todos contribuam com sugestões que lhes vinham infantilmente do imaginar (mergulhar os pés em água fervente, apagar cigarros no escroto, enfiar agulhas nos ouvidos). Era tudo pouco profissional mas desempenhado com insuflado ânimo e a coisa funcionava assim, deixar-se estas coisas a amadores é decisão proveitosa pois não se gasta recursos em formações. Vez por outra, os excessos resultavam em mortes escusadas, enfim, danos colaterais, e lá ficava uma confissão por resultar, o que nem era grave porque as confissões geralmente tinham pouco valor, não eram verdade nenhuma, apenas a boca a pedir clemência, e porque o fim dos torturados era quase sempre o mesmo, falassem ou calassem, e mais morto menos morto, ninguém os contava, às famílias, se não se decidisse aplicar-lhes idêntica terapêutica, ninguém prestava contas, ora porque ninguém perguntava, ora porque, perguntando, ninguém respondia. Houve o caso que pôs o governo em alertas, a comunidade internacional quis saber o que era feito de um jornalista de panfletos, alma aguerrida, endireitador de tortos, corrector de desagravos, que denunciava abusos desde sempre mas que tinha vícios sodomitas. O Presidente, bem aconselhado, inventou uma pomposa Comissão de Inquérito com personalidades independentes e imparciais e isentas, umas boas cinquenta, que após aturada investigação concluíram que o pobre jornalista tinha morrido na sequência de fornicação paneleira, ou seja, rebentaram-no todo e morreu sangrado. Para evitar falatórios, a bem do bom nome da vítima e resguardo da família, dera-se sumição ao corpo.
Neste contexto de torturas amadoras, emergiu uma figurinha, antigo funcionário da direcção geral de saúde, muito interessado em história, leitor de clássicos latinos e apaixonado por atrocidades. O nome de guerra governamental era Leocádio. Este Leocádio era celibatário, beato e cumpridor de jejuns ortodoxos. Tinha uma imagem de São Cristóvão no bolso do casaco de fazenda já coçado de que não prescindia e, na carteira, trazia sempre uma folha com uma dezena de locuções latinas que lhe recobravam o espírito sempre que se sentia mais abatido, duvidoso espiritualmente sobre a piedade das suas acções. Na secretária do gabinete tinha um livro História da Tortura, mais que inspirador, caução histórica dos males que perpetrava como se males não fossem, antes necessidades que tornavam alcançáveis bens maiores, como a paz social e a unidade da nação. O respeito, dizia, é o pilar da comunidade. Sem respeito, nada feito, repetia, um tanto envergonhado pela rima que desemprestava dignidade à ideia. A sua ascensão ocorreu na sequência do interrogatório nº 53, cuja descrição pode ser consultada no arquivo oficial. Até então os interrogatórios eram brutais, animalescos, terríveis e os registos eufemísticos, burocráticos, repletos de “nadas-a-assinalar”. Leocádio transtornou os hábitos. Fazia descrições detalhadas dos horrores, em caligrafia bem calibrada e impecáveis sustentações histórico-filosóficas, com um nadinha de conhecimento forense, garantido sempre que o objectivo não era a morte do interrogado, mas a sua colaboração total, inequívoca e incondicional. Atingido este ponto, não havia necessidade de continuar e a morte só se justificaria como acto de misericórdia, em casos que o interrogado chegara a tais extremos de vulnerabilidade que um tiro na cabeça era mais humano que longos meses agonizantes em cama de hospital.
Nas cartas do meu pai eu não existo. Quando ele as escreveu eu não sabia que o meu pai estava vivo. As cartas que hoje leio são cartas escritas pela mão de um morto entretanto ressuscitado e devolvido ao convívio dos outros, dos que respiram. Na altura, ele estava morto. A sete de Julho de 1984, data no cabeçalho da carta, no primeiro verão antes de mim, ele estava morto e escrevia assim:
Querido e saudoso pai (querido e saudoso pai, escrevo eu hoje)
Tenho diante de mim a sua carta que me vem de chegar às mãos (diante de mim tenho a sua carta que me vem de chegar às mãos, vinda do passado e do pó, do reino dos mortos, escrevo) Já a li três vezes (tantas vezes já a li, mais do que três, escrevo eu hoje) estou bastante contente era a carta que eu esperava (ainda estou atónito e não sou bem eu e já a li tantas vezes é a carta que eu não inesperava, escrevo) e o facto de ter sido escrita à mão, me fez dobrar a alegria (e o facto de ter sido escrita à mão, pela sua mão viva, pai, me fez dobrar o espanto e a tristeza, porque para mim essa mão que, sei-o agora, também escrevia ainda segura uma faca, é e será sempre a mão que segura a faca e não a mão que escrevia Querido e Saudoso Pai) No que respeita a conselhos seus, ou sugestões como lhe queira chamar, serão sempre bem vindos (no que a conselhos seus respeita, ou sugestões como quiser, dispenso-os, esta voz, as palavras escritas na carta pela mão que segurava a faca oiço-as pela voz que me ilumina a memória “esta faca é para matar a tua avó”)...Os nossos problemas, só nos diz respeito a nós dois (os nossos problemas, quais problemas?, tenho seis anos, esta é a minha primeira bicicleta, aprendi a andar nela com o meu avô a segurar-me o banco, eu a cair, o meu avô, querido e saudoso avô, tão querido e saudoso avô, as tuas mãos rudes que escreviam mal a migar e a salgar o tomate que comíamos à sombra do sobreiro, este sabor que me lembra tanto de ti, querido e saudoso avô, como se ainda te beijasse as mãos, as mãos rudes que não escreviam mas que seguravam o banco da minha primeira bicicleta, não temos problemas, pai, não temos problemas, naquela tarde em que eu aprendo a andar de bicicleta tu ainda estás morto, só regressarás à vida numa tarde de céu baixo e plúmbeo, céu de chuva que ainda não cai, à saída do cemitério onde foste visitar a campa do teu pai, querido e saudoso pai)...e porque estou longe, porque no dia em que nos olharmos nos olhos um do outro não serão precisas mais palavras. Nós nos saberemos perdoar, embora não sejamos divinos (estou longe, estamos longe, porque no dia em que nos olharmos nos olhos um do outro, querido e saudoso pai, nesse dia em que nos encontrarmos à porta do cemitério, eu com dezasseis anos e um pai que é só aquela voz que segura uma faca, a mão que fala e diz “esta faca é para matar a tua avó”, não serão precisas mais palavras. Nós nos saberemos perdoar porque no dia em que nos encontrarmos eu serei a criança daquela fotografia, no primeiro verão antes de mim, e tu já não serás a voz que prometia a morte, mas a mão que escreve “no dia em que nos olharmos nos olhos um do outro não serão precisas mais palavras” e limparemos dos nossos olhos todas as lágrimas e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, porque já as primeiras coisas são passadas).
A carta prosseguia, a mão jovem e arrogante do meu pai a desenhar as letras, Quanto ao futuro: o futuro pode ser já amanhã, respondia ao meu avô que lhe deve ter falado de um futuro distante, de um futuro que o meu avô na sua boa sabedoria tinha a certeza que não iria conhecer, e que o meu pai na ignorância leve dos seus vinte e seis anos podia dizer o futuro é coisa que neste momento não me atormenta. Eu encontrei a boa via, escreve a mão do meu pai, ganho cerca de 130 contos em dinheiro português, gaba-se a mão do meu pai. Despede-se por fim pedindo ao meu avô para não estranhar se em Setembro receber alguns papéis dos Correios, é uma oferta que vos faço pelo muito que vos devo, e assina, a mão morta do meu pai a assinar a carta em que eu não existo, onde eu existia era naquela fotografia com a primeira bicicleta, é aí que eu estou e existo e sou e o meu pai não sabe.
E naquele tempo eram muitas as raças de homens: os flávulas e os díngeos, os artas e os préssios, os menídeos e os prântulas, os cárpios e os bráquios, os sávios e os límidas, os grálios e os sempíreos, os arbálidas e os câneos, os fláquios e os benádios, os margolos e os transvéridas, os bessíneos e os antícronos, os panvéridas e os maxínios, os linvólios e os abnídeos, os filácios e os numénicos, os trintalúmidos e os angríseos, os cruezos e os pietráquios, os numólidas e os sabíneos, os calqueus e os zeféridas, os tagórios e os môncios, os estrázios e mirteus, os vendrétios e os cristénios. Desapareceram todas sob os escombros.
As nuvens podem não ter ajudado. Achei Beja uma cidade triste e feia. Era manhã de Sábado, manhãs que recordo festivas com um certo ar de arraial sarraceno, e esta era uma manhã acabrunhada, sem gente e com uma chuva tão mole que nos fazia ter pena de nós próprios. Prédios iguais aos de tantos subúrbios, com as suas pastelarias falsamente acolhedoras, simulacros ridículos de salões de chá sumptuosos, onde se comem torradas, meias de leite e chás de camomila com aquele vagar de burguesia em que assoma uma reminiscência de aristocracia velha mas não é mais do que pardacento funcionalismo público, rotundas exageradamente decoradas com obras que fulminam o olhar e o espírito do visitante, como se no meio da selva um arranha-céus irrompesse, lojas chinesas com o seu caos de bazar asiático onde tudo se encontra, universo infindável de bugigangas e inutilidades à medida das nossas magras carteiras, bombas de gasolina esquálidas onde ainda subsistem os empregados de calças manchadas. Nesta cidade até a imponente estátua de D. Leonor, esverdeada pelo tempo e pelo desmazelo, parecia triste e deslocada, como se em vez de exibir os dons que lhe deram direito à eternidade da pedra a pobre Rainha confessasse o seu desespero por não poder sair dali. Foi destarte que vi Beja. Mas a culpa pode ter sido do tempo e das nuvens.
Para além de notáveis praticantes da arte da narrativa breve e de uma idêntica tendência para a piromania literária, Nikolai Gógol e Franz Kafka estão unidos pelo humor. O do escritor russo faz piruetas e cabriolas, o de Kafka é um humor impassível que não mexe um único músculo da cara. O humor absurdo de um conto como O Nariz é impossível de escapar a qualquer leitor com mais sentido de humor do que o general Ramalho Eanes. Para se perceber a comicidade de A Metamorfose até o leitor mais culto agradece a ajuda da história que o próprio Kafka contava sobre as gargalhadas que a primeira leitura do conto provocara aos seus amigos. Recorrendo à divisão proposta por Eric Idle (e mencionada por Ricardo Araújo Pereira no prefácio a O Mundo de S. J. Perelman), diríamos que Gógol é um humorista red nose e Kafka um humorista white face. Partindo ambos de um facto extraordinário (o homem que perde o nariz e o homem que acorda transformado num insecto), cujas causas nunca são explicadas, um mantém o humor visível, à superfície, e o outro mantém-no oculto, como um prazer secundário. Gógol lança a história num ritmo de comédia, com sucessivas mudanças de cenário e situações absurdas. Kafka abranda o ritmo, e nem o protagonista, nem a linguagem, nem a estrutura parecem absorver as ondas de choque que aquele insólito acontecimento deveria provocar. Esta estratégia, que é antagónica à de Gógol, tem fundamentalmente o mesmo efeito: acentuar o absurdo e o cómico. De um lado temos um homem a gritar: “Perdi o nariz, perdi o nariz!” e isso tem piada. Do outro temos um homem que se vê transformado num insecto e que se pergunta: “E agora como é que vou trabalhar?” Também tem piada. Num curto ensaio, David Foster Wallace tentou explicar porque é difícil captar o lado divertido da obra de Kafka. A dificuldade está em não ser um humor óbvio, que não se anuncia de nariz vermelho, que joga com códigos humoristícos a que não estamos habituados e que – e isto também é importante – não esperamos encontrar num autor com a aura de profeta da alienação moderna como Kafka. Como Helena Topa assinalou no prefácio à edição de A Metamorfose (Presença, 1996), a comédia kafkiana é “um quase imperceptível veio humorístico que subterraneamente percorre o texto.” Na obra de Gógol, esse veio é um rio transbordante. Até as interpretações psicanalíticas – o medo da castração e a conturbada relação de Kafka com o pai – favorecem a leitura humorística de O Nariz e uma leitura grave da obra de Kafka. Não apenas neste caso, mas na totalidade das obras. Gógol é um especialista da sátira; Kafka é um especialista da parábola. Quando critica as hierarquias e a burocracia, Gógol está a criticar a sociedade do seu tempo. Quando representa um inferno burocrático, Kafka está a perseguir uma imagem que ilustre o tormento metafísico do homem. A sátira é um instrumento profano. A parábola é um instrumento religioso. O homem gogoliano, nestes Contos de São Petersburgo, procura o seu lugar na sociedade. O homem kafkiano procura o seu lugar no universo.
Entre os dois escritores há também semelhanças na forma como entretecem o fantástico nas narrativas. No entanto, as semelhanças serão mais notórias em relação a O Nariz, cujo tratamento do fantástico é bastante diferente do dos restantes contos. Nestes, se o real é constante e idêntico (as hierarquias, os funcionários públicos, as ruas, a cidade, as roupas), o fantástico é maleável e tanto pode assumir a forma de um sonho, como a do sobrenatural tradicional ou até a de uma história de fantasmas. Mas é sempre um fantástico convencional e reconhecível. Diz-se que Gógol tencionava terminar O Nariz explicando que tudo não passara de um sonho de Kovaliov. Ao não fazê-lo, inaugurou um género de fantástico, o antepassado direto do Kafka não só de A Metamorfose, mas também de O Artista da Fome (incluído no primeiro volume dos contos) e do ainda mais vorazmente surreal Descrição de uma Luta. Para se perceber até que ponto O Nariz representa uma ruptura, basta compará-lo com O Capote. A introdução de elementos fantásticos no final deste conto é inútil e não traz qualquer mais-valia. (Isto é tão óbvio que o próprio narrador reconhece que “a nossa história ganha inesperadamente um final fantástico.”) É um acrescento que prejudica a poderosa história de solidão que acabou de ser contada. Akáki, o protagonista, é digno de compaixão, humano, vulnerável, sentimo-nos próximos dele. Nem o habitual tom satírico, nem as críticas à burocracia, nem a crónica de aspirações sociais, nos afastam do drama íntimo que é a vida de Akaki. Kovaliov assemelha-se a uma experiência literária, um fantoche surreal ao serviço da comédia do autor. Nunca desperta genuína compaixão. É uma figura de plástico a sofrer uma série de infortúnios. Nesse sentido é o contrário de Akáki. Todo o conto é realista, as aspirações de Akáki são plausíveis e não há nenhum acontecimento extraordinário/fantástico a empurrar a narrativa. É só na parte final que o conto entra no domínio do fantástico, quando já não pode ser mais do que uma intromissão perfeitamente dispensável. Pelo contrário, a força de O Nariz é precisamente o surreal e o fantástico. Sem essa premissa, não há conto. A Metamorfose seria então uma conjunção dos dois e Gregor Samsa uma síntese de Kovaliov (o homem que sofre um revés extraordinário) e Akáki (uma personagem digna de compaixão).
Quando situa a acção num tribunal (como em O Procurador Adjunto), Kafka cria uma situação arquetípica, o resumo ou a soma de todos os indivíduos como aquele, enquanto Gógol cria situações caricaturais, o exagero de um único indivíduo específico. Kafka, em excertos de contos como O Caçador Gracchus ou Na Construção da muralha da China, tende para um tom metafísico, uma litania de sinagoga onde explora o potencial religioso e existencial das parábolas e das alegorias. Neste último, há um exemplo particularmente forte desta tendência: “O ser humano, leviano no seu fundo, da natureza do pó levantado, não suporta o acorrentamento, se se acorrenta a si próprio, não tardará a sacudir as correntes como um louco e a despedaçar, em todas as direcções, muralha, amarras e a si próprio.” Aqui, a literatura aproxima-se tanto quanto possível de uma interrogação filosófica.
Cada qual à sua maneira, Gógol e Kafka são investigadores das limitações da existência humana, sejam limitações sociais ou metafísicas. Em certas ocasiões, o absurdo é a forma mais adequada que encontram para descrever essas limitações. O absurdo religioso que atormentava Kierkegaard, que os precede, e que também surge em obras tão diferentes como as de Camus e de Beckett, que lhes sucedem. Mas enquanto Gógol permanece ancorado e a trabalhar sobre um fundo social concreto, Kafka navega nas águas intangíveis da parábola. Escreve Gógol em O Capote: “É assim na nossa santa Rússia, cada qual imitando e macaqueando o seu superior.” Escreve Kafka em Na Construção da muralha da China: “Nós – posso dizer que falo em nome de muitos – na verdade só nos conhecemos uns aos outros ao soletrar as ordens da chefia superior, tendo concluído que, sem a chefia, nem a nossa sabedoria escolar nem a nossa razão de homens teriam chegado sequer para o mais pequeno cargo a assumir dentro do imenso todo.” Os dois escritores escrevem sobre hierarquias, mas é evidente que o alcance da frase de Kafka transcende em muito o limitado escopo social de Gógol. Talvez por sentir que a sua obra era futilmente profana, o então místico Nikolai Gógol queimou as segunda e terceira partes do seu romance Almas Mortas. Franz Kafka, cuja escrita é um reflexo da condição judaica no centro da Europa no início do século XX, pediu ao seu amigo Max Brod que queimasse todos os seus trabalhos não publicados. É como se a constatação do absurdo da existência humana, com os seus tons trágicos e cómicos, os tivesse guiado a uma mesma conclusão: perante essa evidência, toda a literatura é inútil. E, podemos acrescentar, absoluta e absurdamente necessária.
O estilo, quando demasiado virtuoso, está sempre à beira de ganhar consciência e, como o monstro de Frankenstein, começar a obedecer aos seus próprios pensamentos. Vladimir Nabokov, um dos grandes estilistas da prosa (em russo e em inglês) do século XX, é um desses criadores em que, por vezes, o estilo parece ganhar vida própria, seguir um caminho autónomo e concentrar em si todas as atenções.
Glória, quinto dos nove romances russos de Nabokov escritos 1925 e 1937, é um veículo para o estilo do escritor. A história de Martin Edelweiss, um jovem russo que, juntamente com a mãe, foge do caos revolucionário da Rússia para a Suiça, é suficientemente elástica e indefinida para permitir a Nabokov uma série de exercícios verbais e técnicos que, aplicados a um enredo mais rígido, comprometeriam a sua solidez. O que temos aqui, porém, é um escritor a pedir boleia a uma personagem sem destino e a pegar no volante, para exibir a sua condução virtuosa, como se estivesse num test-drive das suas imensas capacidades descritivas. A personalidade de Martin, com os seus anseios vagos por uma glória pouco nítida, é um convite à entrada de um estilo vigoroso. Deve dizer-se, no entanto, que o estilo não empurra a personagem principal para fora do carro. Limita-se a tirar-lhe o volante das mãos. Os dois seguem juntos até ao fim.
Numa viagem de comboio em França, um homem, pensando que Martin é inglês, diz-lhe que os ingleses gostam de apostas e de records; Martin responde: “Sim, acertou no alvo. E no entanto, mesmo isso, mesmo le sport, não é tudo. Para além disso, há...como direi?...a glória, a ternura, o amor pela terra, mil sentimentos algo misteriosos.” Mas neste romance, le sport, se não é tudo, é fundamental. Há três momentos determinantes que representam não só as aproximações de Martin à glória, mas também a aproximação de Nabokov à glória verbal. Nas descrições de uma partida de ténis, de um jogo de futebol e de uma luta corpo a corpo, a precisão de cada movimento é transplantada para as páginas, autonomizando-se do fluxo narrativo, como aqui: “uma coordenação de todos os elementos que participam na pancada que se dá na bola branca de tal modo que o impulso iniciado com o movimento em arco ainda se prolonga após a vibração sonora das cordas tensas, passando, como passa, pelos músculos do braço até ao ombro, como a fechar o círculo suave de que, com a mesma suavidade, nasce o seguinte.” Nabokov, que anos mais tarde, em Lolita, haveria de regressar às brilhantes descrições tenísticas, faz aqui uma síntese da própria escrita como extensão do autor, movimentos que se encadeiam, suavemente, necessariamente, nos seguintes.
Outro dos principais traços do estilo de Nabokov é o investimento nos pormenores que constituem a filigrana do realismo. A dada altura, refere um escritor russo exilado em Berlim que, no meio de um desgosto, aproveita um pormenor da indumentária de Martin para uma personagem de um conto. Nabokov compara-o a “um hábil gatuno que seca as lágrimas com uma mão enquanto com a outra tira o relógio a um homem.” Esta é a essência dos escritores do detalhe, que em vez de de construirem suntuosos relógios de sala, divertem-se a roubar modestos relógios de bolso. Eis alguns dos relógios que o hábil gatuno Nabokov expõe neste livro: o tubo da pasta de dentes com “uma ranhura transversal, pelo que a pasta, ao ser espremida, deslizava para cima da escova não como uma minhoca, mas como uma fita”; um homem que escolhia peúgas que “garantissem decência por terem buracos no dedo gordo e não acima do calcanhar”; a mãe de Martin a meter-lhe os dedos dentro da gola “para ver se não estava muito suado depois das correrias”; “um cão malhado sentado no chão a coçar a orelha com a pata traseira”; “uma mosca doméstica com uma das pernas presa na cola da tira mata-moscas cor de mel afixada no rebordo de uma janela.” Nesta recriação da realidade, ou na criação do realismo, a abundância de pormenores ofusca o registo metafórico, por vezes descuidado: uma bétula é comparada, banalmente, a uma rapariga “que tivesse deixado pender o cabelo de um lado para ser penteada e tivesse ficado nessa posição” e um céu sem nuvens é comparado a uma “folha de papel de seda que por vezes reveste um frontispício excecionalmente vivo numa edição cara de contos de fadas”, imagem recuperada um pouco mais à frente, mas agora para descrever uma mulher: “Sobre ela, sobre aquele frontispício que, removido o papel de seda, se revelara um pouco grosseiro”.
Nas descrições obrigatoriamente rápidas e incisivas de personagens secundárias, Nabokov alia o pormenor à metáfora, numa técnica que consiste na justaposição de características contraditórias. Por exemplo: “Era um homenzinho velho e mirrado, com pezinhos de pombo e olhos vivos, um latinista, tradutor de Horácio e grande amante de ostras.” A solenidade do latinista e tradutor de Horácio oposta ao ridículo dos pezinhos de pombo e ao prosaísmo da preferência por ostras cria uma mistura improvável de sabores, como na cozinha de fusão, que é intensa por ser improvável. Uma técnica semelhante é aplicada a Iogolevitch, outro exilado russo, que depois de um discurso sério sobre execuções, fome e a maldade do regime, pergunta quanto é custam umas “kalochi (galochas) em Londres”. O escritor consegue dar, em poucas linhas e com um mínimo de informação, o máximo de vida às personagens.
Nabokov não se detém nos aspetos políticos do percurso instável de Martin. Quando pela primeira vez sente que é um exilado, “condenado a viver longe da sua terra”, eis o que o protagonista faz dessa perceção: “A palavra «exílio» tinha uma sonoridade deliciosa: Martin considerou o negrume da noite coniferina, sentiu nas faces uma palidez byrónica e viu-se de capa. [...] Foi como se Martin tivesse encontrado o tom certo para todos os sentimentos vagos, ternos e furiosos que o subjugavam.” O ambiente na Rússia revolucionária resume-se a isto: “um lado a combater pelo fantasma do passado, o outro pelo fantasma do futuro.” A questão do exílio, que seria a questão “social” do romance, é subjugada à ditadura sentimental de Martin, às suas paixões não concretizadas, ao seu desejo nebuloso de glória. E, neste romance, isso é credível porque (como Nabokov aponta no prefácio) Martin é incapaz de verbalizar as suas aspirações. Sente “uma insuportável intensificação de todos os sentidos, um impulso mágico e exigente, a presença de qualquer coisa, uma coisa por si só suficiente para que valha a pena viver”, mas que não sabe o que é, pois “vivia um estado de confusão íntima, e certas coisas despertavam nele sentimentos que ainda não compreendia bem.” Ele tem uma sensibilidade aguda mas não tem o talento para a exprimir. O narrador, como vimos, tem esse talento de sobra. Os dois, personagem e narrador, são o piloto e o navegador de uma aventura sem destino, rumo a uma glória pressentida. A estrela, essa, é o veículo: o estilo de Nabokov.