A Mulher do Próximo

Muita felicidade, bênçãos abundantes, desprezo pelo acaso: eis os ingredientes da tragédia. Quando se abate sobre infelizes e pobres a tragédia é apenas reiteração. É quando castiga os belos, os poderosos e os ricos que a tragédia é verdadeiramente tragédia. Ainda assim, a ira dos deuses não depende da arrogância humana, embora esta possa facilitar a ocorrência de acontecimentos nefastos ou redobrar o castigo. O homem afortunado desafia os deuses por ser o que é. Afronta-os, quando à sua condição junta a insolência e a insensatez. Não vê os seus limites, a fragilidade da sua condição, tudo lhe parece possível, como a um bêbado a conduzir um carro a alta velocidade. As histórias seguintes são tragédias, verídicas ou ficcionais, de dois reis e de um homem rico. Dois homens que, por força de um excesso de felicidade, expõem as respectivas mulheres e outro que, ao contemplar a mulher do próximo, não hesita em fazer o que lhe é ditado pelos seus apetites. Hubris em diferentes formas.

 

Logo no início das suas Histórias, Heródoto relata o caso de Candaules, rei de Sardes, e do estranho pedido que fez a um dos seus guardas, Giges, aquele em quem mais confiava. Era vontade do rei que Giges visse a nudez da rainha, sob o pretexto de tirar todas as dúvidas quanto à sua beleza, “since men’s ears are less credulous than their eyes”, ou seja, vê para creres. Giges diz-lhe que não se atreveria a corresponder a um tal pedido, até porque acredita que a rainha é, sem dúvida, “the fairest of all womankind”. Candaules diz-lhe que não se preocupe, que não o está a pôr à prova e que ele nada tem a temer da rainha, porque há-de arranjar forma de ele ver sem ser visto. O bom Giges lá acede ao pedido do rei e acaba por contemplar a nudez da soberana. O problema é que a rainha apercebe-se da presença do guarda e embora sem se manifestar percebe o que acabou de se passar. O caso é grave porque, como afirma Heródoto, “among the lydians, and indeed among the barbarians generally, it is reckoned a deep disgrace, even to a man, to be seen naked.” No dia seguinte, a rainha convoca Giges sem que este suspeite do seu grau de conhecimento. A proposta é simples: “Mata Candaules e torna-te meu senhor ou morre aqui, neste momento.” A violação dos costumes determina a punição do autor material ou do autor moral do crime. Um dos dois terá de morrer. Giges hesita, pede clemência, mas é obrigado a escolher, e escolhe viver. A rainha faz questão que Giges mate o rei no local onde ele a expôs à contemplação do subordinado. Assim acontece. Candaules é morto, Giges toma posse da mulher e da coroa.

 

Dentro da grande matrioska que é Dom Quixote, A Novela do Curioso Impertinente talvez seja a boneca com mais vida própria. Em Florença, Anselmo e Lotario são conhecidos, “por excelencia y antonomasia”, como “os dois amigos”. Não há amizade mais forte, mais bela, mais viril. Anselmo, o rico, descende de boas famílias e possui bastas riquezas materiais; não lhe faltam, pois, os bens de natureza e os bens de fortuna. Como se tanta bem-aventurança não fosse suficiente para atrair a tragédia, ainda casa com a bela, pura e recatada Camila. Tudo é perfeito na vida de Anselmo, menos a sua inquietação. Embora não duvide das qualidades da mulher, Anselmo está obcecado em pô-la à prova. Afinal, que valor tem a virtude se não é ameaçada pelas tentações? Confiado no amigo, Anselmo pede a Lotario que seduza Camila com jóias, poemas e promessas. Lotario, prudente e sensato, aconselha-o a pôr de parte um tal plano que, se tudo correr bem, nenhuma glória lhe poderá acrescentar, e que, no caso de suceder o contrário do que Anselmo deseja, seria a ruína da honra de todos. Lotario desfila um cortejo de razões, com boa retórica e sã misoginia: Camila é comparada a um diamante e a um jardim, um objecto que deve ser cuidado e resguardado pelo dono. Sabendo da natureza imperfeita da mulher, da sua tendência ancestral para incorrer em falta, é dever do homem manter afastadas da senda da virtude eventuais pedras de tropeço que, pequenas que sejam, são sempre aumentadas pelo fraco espírito feminino. Porém, vendo que o amigo está decidido a avançar com o plano, Lotario acede aos seus desejos. Sem tentar qualquer aproximação, confirma a honestidade de Camila. Caso arrumado. Mas Anselmo desconfia e, por fim, descobre que o amigo o tem enganado e que não está a cumprir o prometido. Arranja maneira de os deixar a sós durante vários dias. O silêncio entre Lotario e Camila mantém-se, mas é nos olhares, mais do que nas palavras, que medra a cobiça e o inevitável acontece: “Rindiose Camila, Camila se rindió…” Demoremo-nos um pouco nesta maravilhosa frase, que fala de uma rendição, que é desfalecimento na repetição, que é sugestão nas reticências, que é bélica e amorosa, bíblica e sentimental…Não é Lotario que conquista, é Camila que se rende, que se entrega como quem desmaia de amor. É uma das mais belas frases de todo o livro que não tem escassez de frases belas. A conclusão da novela há-de ser trágica, mas interessa menos do que o princípio da história, a curiosidade impertinente de Anselmo, a hubris que desperta a fúria dos deuses.

 

Erros que despertam a fúria divina são a essência da relação de Deus com o povo de Israel. Por muito que estivessem avisados, os israelitas facilmente se esqueciam que aquilo ou funcionava com Deus ou não funcionava. Chamavam a si os louros que eram de Deus, adoravam outras divindades, esqueciam-se dos sacrifícios, etc. Resultado: lá vinha uma tribo ou uma calamidade que lhes fazia descobrir uma renovada humildade e um temor genuíno, embora quase sempre temporário. O rei David foi um dos que andou nessa montanha-russa que leva um homem das boas graças às más desgraças em menos de nada. Uma das acções que menos agradaram a Deus, e atenção que falamos num especialista na matéria, foi o episódio de Urias e da mulher deste, Batseba, “mulher mui formosa à vista”. Por negligência do marido, dolo feminino ou atrevimento real (para não falarmos do acaso, porque, enfim, David passeava tranquilamente no terraço), David veio a cobiçar Batseba, cuja nudez contemplou inadvertidamente. Com as facilidades que nestas circunstâncias se concedem aos reis, David fez com que Batseba fosse trazida aos seus aposentos, tomou-a e, pouco tempo depois, teve de ouvir “grávida estou”. O mal estava feito e tinha de ser remediado. Outro remédio não encontrou David que não despachar o pobre Urias para a frente de uma batalha, a fim de que a morte resolvesse os apuros em que o desejo o deixara. Urias morreu, David fez de Batseba sua mulher e tudo isto “pareceu mal aos olhos do Senhor”. O homem que na juventude derrotara um gigante vê o filho do seu pecado morrer. Outras desgraças o esperavam.

 

 

Estas histórias têm mais em comum do que o sentimento trágico. Vejamos:

 

A nudez

 

A nudez sempre foi um assunto sério, desde os tempos do Éden. Heródoto escreveu sobre os costumes dos povos bárbaros para os quais a nudez era o último reduto da intimidade. Contemplar a nudez alheia era quase uma violação. O Antigo Testamento também é abundante em recomendações sobre os perigos de se olhar a nudez alheia. Lotario, empurrado por Anselmo, demora o olhar na mulher do amigo e as virtudes teóricas de Camila tornam-se dolorosamente visíveis. Não é só a nudez que se vê, é também o tempo que os olhos se demoram no objecto, por muito vestido que esteja. A contemplação é o princípio da adoração casta mas também da cobiça pecaminosa.

 

 

A mulher

 

As mulheres destas histórias são pouco mais do que objectos. É verdade que a rainha de Sardes toma as rédeas do assunto para reparar a humilhação, mas não é menos verdade que diz a Giges “Slay Candaules, and thereby become my lord”, que é como quem diz, “faz-te homem e faz-te meu senhor”. Ao contrário dos outros dois, Urias não ofereceu a mulher em sacrifício, mas é a beleza de Batseba e a concupiscência de David que lhe selam o destino: a morte. Morte que sobrevém a Candaules e Anselmo porque, fascinados pela beleza e qualidades das mulheres, montam a armadilha que os há-de arruinar. Judaico-cristãs, Batseba e Camila são duas belas jarras ornamentais, descendentes da Mãe Eva, facilmente quebráveis.

 

O homem

 

Há uma leveza, uma falta de gravitas, no comportamento de David, Candaules e Lotario. Nada de mediocritas. Comportam-se como crianças caprichosas, entediados na sua fortuna e desejosos de testar os limites da sorte, que acreditam protegê-los de todos os disparates. No meio, sempre uma mulher: a mulher que Candaules quer que seja vista por outro tal como ele a vê, a mulher cuja virtude Anselmo quer testar, a mulher cuja nudez se oferece ao desejo omnipotente do Rei David. Candaules é assassinado, mas a mão de Giges apenas conclui o movimento que a insensatez daquele iniciou. Anselmo morre de desgosto ao saber que Lotario fugiu com Camila; mas quem pode culpar senão ele próprio? David há-de sofrer as consequências de um adultério e de um homicídio. Anos mais tarde há-de chorar amargamente a morte do filho: “Meu filho, Absalão, meu filho, Absalão! Quem me dera que eu morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho!”

 

As tragédias, e estas também, são os deuses em fúria castigando a desobediência, a impertinência e a insensatez humanas. Nenhum Deus gosta de ser posto à prova, desafiado. Nem os deuses antigos, nem o Deus único dos israelitas. A tragédia é queda dos favores divinos. Repete, à escala de cada um dos protagonistas, a queda original, daí que só suceda a quem tem de onde cair. Quem esteve sempre no chão nunca é trágico, é patético, no sentido em que nos comove sem que possa servir de exemplo. Atraído pela mulher, o homem cai do trono, real ou imaginário, onde está sentado. Já era assim, no princípio dos tempos, na solidão de um jardim, na nudez inocente de Adão e Eva, nossos pais.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:54
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