Segunda-feira, 27 De Setembro,2010

Clarice Lispector - Uma Vida

“Hermética” é talvez um dos adjectivos mais colados à obra da escritora brasileira Clarice Lispector (1920-1977). João Gaspar Simões terá sido dos primeiros, mas certamente não o último, a referir-se-lhe nestes termos e lançava o repto: “Haja quem lhe encontre a chave” (p. 259). Benjamin Moser encontrou essa e outras chaves que abrem a obra de uma mulher da qual o tradutor Gregory Rabassa disse que “se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf” (p. 349). Clarice Lispector – Uma Vida desmonta as mitologias erguidas à volta de Clarice, o monstro sagrado, para nos mostrar uma mulher dividida entre as exigências de uma vocação artística precoce e o desejo de uma vida familiar pacata. Um conflito real (Clarice queria uma “vida-vida”, “um bloco separado da literatura” p. 158) que transpôs para os seus romances e personagens. Clarice queixava-se de que a aura de mito afastava as pessoas, ainda que o mito se alimentasse muito da sua personalidade esquiva e do mistério intrínseco à obra.

 

O sentimento de estranheza que Clarice despertava enquanto mulher (o rosto de ícone eslavo, o sotaque) e escritora (à margem de uma literatura “materialista”, afirmação do carácter nacional), tem raízes na sua história de vida, recriada por Moser com imenso talento e rigor histórico. Filha de judeus oriundos da Podólia (no que é hoje a Ucrânia), Clarice chegou ao Brasil ainda criança, mas permaneceu sempre uma estrangeira, no sentido em que “era uma estrangeira na terra” (p. 3). O ponto mais original da análise literária de Moser é a leitura da obra de Clarice à luz da condição judaica. Para além das marcas psicológicas, a experiência do exílio foi traduzida de forma indirecta por Clarice nos seus livros, que prolongam a tradição judaica de estabelecer uma relação com o divino através da escrita.

 

Equilibrada entre a contextualização histórica e política e uma interpretação apaixonada da obra de Clarice (Moser considera A Paixão Segundo G.H. um dos grandes romances do século XX), esta biografia consegue a dupla proeza de ser uma obra autónoma de grande valor e de cativar o leitor para o universo lispectoriano. De chave na mão.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:33
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A Cor do Hibisco

“As coisas começaram a desmoronar-se em casa quando o meu irmão, o Jaja, não foi comungar (…)” O começo de A Cor do Hibisco remete-nos implicitamente para um dos romances seminais da literatura africana, Quando Tudo se Desmorona, de Chinua Achebe. No seu romance de estreia, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora do aclamado Meio Sol Amarelo, reclama a sua parte da herança e prolonga a fusão entre a literatura ocidental e as raízes africanas ou, adaptando, inglês correcto com sotaque e imaginário ibo.

 

A convivência entre as duas culturas nem sempre resultou na amálgama sólida de que é feita a literatura de Achebe e de Adichie. Neste romance, é a figura do pai de Kambili, a narradora adolescente, que representa a impermeabilidade dos dois mundos. Educado numa missão católica, o pai é “um puro produto do colonialismo”, alguém que obliterou a sua identidade africana e que exige o mesmo dos filhos, mesmo que tenha de recorrer a constantes abusos físicos e psicológicos. No entanto, este homem de uma severidade extrema é capaz dos gestos mais altruístas em benefício de estranhos e é proprietário de um jornal que denuncia corajosamente a corrupção do governo. Kambili tem dificuldade em conciliar as duas imagens do pai: o herói público e o monstro privado, que castiga os filhos com água a ferver, que espanca a mulher e que despreza o próprio pai. A ideia de pecado ensombra toda a existência de Kambili que só tem um vislumbre de uma outra vida quando vai visitar a tia. A casa de Ifeoma é um santuário de liberdade e de riso. A tia mostra-lhe que o avô não é um pecador pagão que mereça as chamas do Inferno e os olhos de Kambili abrem-se para esse novo mundo que existe para lá da disciplina paterna.

 

Para romance de estreia, A Cor do Hibisco revela uma autora surpreendentemente madura. O ponto de vista da narradora é coerente e temas que são lançados num determinado momento são recuperados mais à frente (as aparições em Aokpe, a visita ao monte Odim), criando um efeito de perfeição circular. A maturidade também se expressa nas personagens, agulhas de um sismógrafo que capta a turbulência social. A derrocada familiar é consequência dos abalos políticos. A forma como Adichie entrelaça os dois planos, sem excesso de melodrama e sem proselitismo político, é o grande trunfo do livro e um feito admirável para um primeiro romance.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:56
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Elza, a garota: a história da jovem comunista que o partido matou

O brasileiro Sérgio Rodrigues cruza investigação jornalística e ficção partindo de um caso verídico: o assassínio, nos anos 30, da amante do secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro por decisão da cúpula partidária. O sensacionalismo fica todo no subtítulo, “a história da jovem comunista que o Partido matou”. A história de Elza e as circunstâncias macabras da sua morte são o chamariz que nos atrai para os territórios mais complexos da verdade histórica, da construção dos mitos e de como os homens se servem da memória para expiarem os seus pecados. Não é por acaso que a citação que abre o livro é retirada de Expiação, de Ian McEwan.

 

A narrativa desenvolve-se em dois planos: o ficcional e o da pesquisa histórica sobre a morte de Elza, levada a cabo pelo autor. Neste plano, Sérgio Rodrigues procura responder a uma questão simples: quem era aquela menina de dezasseis anos? Traidora para os comunistas, mártir para a propaganda anti-comunista, a verdadeira Elza perdeu-se no confronto entre as suas versões míticas e contraditórias. A conclusão de Sérgio Rodrigues é que Elza, ingénua e analfabeta, foi uma vítima acidental do turbilhão político que se seguiu à insurreição falhada dos comunistas, em 1935. No segmento ficcional, Molina, um jornalista em decadência, é contratado por um velho comunista para lhe escrever as memórias. Durante semanas, Molina grava os relatos de Xerxes. Enredado na teia fascinante urdida pelo velho, o jornalista deixa “de levar em conta os sinais de que nem tudo era o que parecia ser.” No final, Molina percebe que as memórias de Xerxes não estão ao serviço da História, mas da história pessoal daquele homem. Memória e representação são meros instrumentos de um processo íntimo de expiação.

 

O livro renega com igual intensidade o preto-e-branco ideológico do século XX e o relativismo “viscoso” que transforma tudo “em matéria pastosa de comédia.” A verdade está algures no meio dos mitos e de documentos falsificados, de doppelgängers e de nomes de código e encontrá-la é quase tão difícil como reparar os erros através de uma narrativa. Mas, como nos lembra a citação de McEwan, “a tentativa era tudo.”

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:55
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Corespondência 1959-1978

Ler a correspondência entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena pode ser um exercício de voyeurismo retrospectivo. Em vez de intimidades íntimas temos o país que era, e em alguns aspectos continua a ser, Portugal, de vergonhas destapadas e exibidas sob uma luz inclemente e fria, sobretudo quando é Sena a apontar o foco. Empurrado para o exílio por uma intelectualidade que o desprezava e que ele desprezava com tanto ou mais vigor, incapaz de se submeter à ditadura da mediocridade da “lítero-cambada”, Sena trovejava de ressentimento e de amargura. Em Sophia, que nunca saiu do país a não ser em turismo, a mesma intolerância à baixeza de alguns personagens, ávidos por “criar em nome do anti-fascismo um novo fascismo”, é expressa com a moderação magoada de quem teve de sofrer aquele Portugal na lenta agonia do quotidiano e que é ilustrada nesta passagem sobre os amigos que a desiludiram: “Eles não têm a menor noção do que seja lealdade nem seriedade. Felizmente consigo dominar-me e nem me zangar com eles. Creio que são dignos de dó. Talvez sejam casos onde a miséria material acaba por provocar a miséria moral.”

 

A distância de Portugal não atenuou em Sena o sentimento de injustiça, até porque no Brasil encontrou muitos dos defeitos de que tinha fugido com a agravante de ter de lidar com a desconfiança dos portugueses “exilados”, para quem era demasiado brasileiro, e dos brasileiros, que o viam como um “agente temível de portugalidade.” À injustiça, Sena respondeu, muito pouco portuguêsmente, com obra. Os seus lamentos não eram estéreis; foram o combustível de ensaios, poesia, romance e traduções. Obras para deixar as orelhas da Pátria a arder, obras como as póstumas Dedicácias, em que os inimigos são nomeados e brindados com o sarcasmo virulento de Sena, autor cujo reconhecimento tem sido lento mas notório. Caso diferente foi o de Sophia, entronizada em vida e que preservou a sua poesia num templo impoluto, refúgio grego das tormentas cívicas.

 

Provas de uma amizade funda em que as emoções não turvavam a integridade intelectual, nem a independência crítica, estas são cartas de dois gigantes de um país “que se empequeneceu irremediavelmente”.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:54
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Peregrinação de Enmanuel Jhesus

Timor-Leste, como qualquer outro país, é uma ficção. Peregrinação de Enmanuel Jhesus, o novo romance do jornalista Pedro Rosa Mendes, é uma ficção literária sobre a ficção de um território. Pelas vozes de várias personagens, são evocados 500 anos de História, da indigência do luso-colonialismo à ocupação indonésia, da guerra civil ao messianismo tardio que culminou com a independência de um país inviável. Um desfecho adequado à narrativa da vitimização timorense (“[...] a língua eucaristica e narrativa de vitimização são os dois tesouros nacionais no génesis do Estado Lorosa’e.”). Alor, a personagem central, desempenha a função sacrificial, o Moisés criado pelo inimigo e que não verá a terra prometida. Aquele desfecho também serviu de epílogo à narrativa do Portugal colonial. Se este é um livro sobre Timor é também um livro sobre Portugal, que viu naquela ilha a última oportunidade de redenção de uma descolonização desastrosa. Dois actores marginais da História contemporânea a confluírem para um final apoteótico de culpa, sangue e libertação política e moral. Nesta história, Timor não foi o único “pequeno povo condenado à pequena ambição da vitória moral”.

 

Embora possam ser detectadas semelhanças com Baía dos Tigres, híbrido de difícil classificação, Peregrinação de Enmanuel Jhesus é um objecto de contornos literários mais definidos, sem prejuízo da diversidade de registos. Algo que, a par da amplitude do relato, justifica a polifonia do romance: da cartografia aos sistemas de linhagem, da história militar e religiosa à diplomacia das grandes potências, das artes marciais à arquitectura, o leque de temas é tão vasto que a hipótese de um único narrador aproximaria perigosamente o livro do género jornalístico, uma espécie de mega-reportagem didáctica. A flexibilidade da estrutura – os autos de uma missão de inquérito conduzida por um bispo norueguês – é o sustentáculo da harmonia do coro. O realismo e a erudição de Dalboerkerk (a voz principal) entrelaçam-se com naturalidade no lirismo quimérico de Wallacea (a única voz feminina). O resultado é um romance magistral, a milhas do que se convencionou chamar literatura portuguesa.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:53
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Uma Gata, um Homem e duas Mulheres

A dissecação de casamentos é uma das especialidades da obra de Junichiro Tanizaki (1886-1965), um dos grandes nomes da literatura japonesa do século XX, a par de Yasunari Kawabata e de Yukio Mishima. A novela Uma Gata, Um Homem e Duas Mulheres é mais uma autópsia de um organismo vivo e anestesiado pela indiferença, a exemplo do que sucedia em Alguns Preferem Urtigas (romance publicado em 2009 pela Teorema). Entre a tradição e a modernidade, entre os atavismos e a ocidentalização, o verdadeiro drama das personagens de Tanizaki é a ausência de emoções, um certo enfado pelo outro que, se nunca é explicitamente manifestado, também não é camuflado ao ponto de ser invisível. Em vez de grandes explosões de cólera e de violentos acessos de raiva, Tanizaki prefere a descrição das punhaladas silenciosas, das pequenas recriminações e dos ardis subterrâneos. O casamento segundo Tanizaki é, pois, um banquete de que só os passivo-agressivos podem desfrutar na plenitude. E quanto menos emoções envolvidas, mais suportável se torna. Por isso, o casal de Alguns Preferem Urtigas não tem coragem de avançar para a separação. Por isso, Shozo, o protagonista desta novela, não se importa de ser humilhado desde que consiga aquilo que quer e que, neste caso, é estar perto de Lily, a gata que ele ama mais do que a mãe e as mulheres. A imagem pública de Shozo é a de um homem fraco, sem vontade, “lorpa”, mas isso não o incomoda. Não é uma daquelas personagens burguesas e suburbanas sufocadas pelas aparências; pelo contrário, as aparências funcionam como um escudo protector que lhe permite dedicar-se sem reservas ao único ser ao qual está ligado por uma emoção genuína e concentrar-se nos seus prazeres fúteis, “jogar um pouco de bilhar, entreter-se com bonsais envasados e namoriscar as empregadas dos cafés baratos.”

 

As aparências estão também no centro dos dois contos, O Pequeno Reino e O Professor Rado, que completam o livro. Juntamente com a novela que lhe dá o título, são exercícios miniaturais da arte superior de Tanizaki: a produção de superfícies de tal forma polidas que o leitor é induzido a ver o seu próprio reflexo no destino das personagens.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:52
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Santa Maria do Circo

Após uma zanga entre os proprietários, os irmãos Alejo e Ernesto, o Circo Mantecón divide-se em dois. Don Ernesto parte com os artistas talentosos, enquanto Don Alejo fica com a tenda e o resto da trupe, incluindo a mulher barbuda e o anão. O livro acompanha a chegada deste último grupo a uma cidade-fantasma, nos confins do México. Os colonizadores baptizam o lugar com o nome de Santa Maria do Circo e esforçam-se por se adaptar a uma vida sedentária, completamente diferente daquela que conhecem. Habituados a viver em função da itinerância e do público, a paragem involuntária confronta-os com a decadência física ou com a falta de talento, com o estigma de um defeito ou com um amor não correspondido. A única solução que encontram para ordenar a realidade é inventar um espectáculo sem espectadores e sem números, e em que cada um assume um determinado papel social: o homem-bala é promovido a militar e o Hércules da companhia é relegado para a função de prostituta. O circo morre e nasce o reality show.

 

À excepção das efabulações genealógicas do anão Natanael, Santa Maria do Circo é um romance muito distante do realismo mágico e aproximá-lo desse universo é uma manobra que só se pode compreender no autofágico mercado anglo-saxónico. Publicado em 1998, este livro do mexicano David Toscana é uma alegoria da existência humana enquanto palco para toda a sorte de inadaptados. Tão premente como a procura de água é a necessidade de combater o absurdo dando um nome ao lugar e definindo uma nova ordem social. Como se a sobrevivência se jogasse mais no plano simbólico – o papel que tem de se representar – do que no plano material – aquilo que cada um tem de fazer. Figuras unidimensionais dentro dos limites do circo (“Se não fosse a minha estatura, ninguém diria que sou anão.”), os artistas não concebem a vida de outra forma. Por isso, fora do circo e longe dos espectadores, aqueles homens e aquelas mulheres – uma estranha família de Noé que simboliza a humanidade – precisam ainda assim de novas máscaras e de rituais no lugar dos sentimentos.

 

Se o romance tem o travo agridoce da desolação mitigada pelo humor, o final capta-o na perfeição: a assimetria de um anão e de um gigante lado a lado, enquanto o circo abandona a cidade.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:51
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Três Mulheres Poderosas

A escritora francesa Maria Ndiaye conquistou o prémio Goncourt com este romance sobre três mulheres inadaptadas, porém suficientemente fortes para não soçobrarem perante as adversidades.

 

De acordo com a velha máxima, por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Neste romance, em que mesmo os homens fortes são fracos, há sempre uma mulher que resiste, que teima em não definhar na sombra. As três mulheres poderosas, cujas vidas estão superficialmente ligadas, lutam todas contra o mesmo. Norah luta contra a figura de um pai ausente mas opressivo. Fanta usa o silêncio para combater um marido que a arrastou para o seu próprio falhanço. Khady Demba enfrenta a memória do marido morto ao qual não conseguiu dar descendentes. Como viveram sempre em função das expectativas masculinas, desenvolveram a arte de lhes suportar o peso sem perder de vista a própria identidade. Esse peso, e o sofrimento que dele resulta, é mais um teste à capacidade de adaptação do que à capacidade de resistência. E Norah, Fanta e Khady encontram sempre maneira de se adaptarem, de encontrar um lugar, por mais frio, triste ou infecto, que seja só delas. A força destas mulheres é o seu verdadeiro dote, o objecto da cobiça masculina. Como se fossem portadoras de um bem sem o qual toda a fraqueza masculina ficaria exposta, a exemplo do que acontece ao marido que, “a pretexto de a amar, fechara Fanta numa prisão de amor lúgubre e fria.”

 

A prosa de Marie Ndiaye espraia-se por frases longas e ricas em adjectivos que se encadeiam harmoniosamente para atingir uma descrição exaustiva, mas não cansativa, dos estados emocionais das personagens. Emoções que são potenciadas pelas características dos locais onde a acção decorre: da casa despovoada do pai de Norah à sala asfixiante onde Khady Demba vende o corpo, da modorra da província francesa às ruas agitadas de uma cidade africana. Tal como as personagens femininas, resistentes mas flexíveis, a escrita de Marie Ndiaye move-se com igual presteza por esses mundos opostos sem abdicar da sua integridade. Como se a obra, embora dividida entre Europa e África, feminino e masculino, pertencesse antes de mais ao artista, esse ser que habita nas intersecções.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:50
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Vozes no Escuro

Vozes no Escuro, do escritor portuense Rui Vieira, pretende ser um romance polifónico, mas as várias vozes que narram a história não se diferenciam. É uma polifonia monocórdica, como o resultado do esforço de um mau ventríloquo.

 

Por vontade da mãe, uma jovem de dezassete anos é enviada para um convento. Nos dias que ali passa é visitada pelas vozes das mulheres que, há muitos anos, conheceram o mesmo destino e sofreram as mesmas privações. Enquanto acompanhamos o sofrimento físico e espiritual da jovem, vamos conhecendo os dramas da sua família através da mãe religiosa, da avó moribunda, da tia louca e do pai afogado.

 

O romance vegeta nos lugares-comuns da condição feminina: sexualidade reprimida, prazeres proibidos e conventos. Rui Vieira não permite que nos esqueçamos do assunto: “já era mulher”, “eu ainda não mulher”, “com inveja de não sermos mulheres”, “queria ser mulher”, até ao definitivo “vou ser mulher”.

 

A prosa poética de Rui Vieira abusa dos mesmos substantivos (muitas pedras, cinzas, águas, neblinas, sombras e névoas), repete motivos em busca de uma cadência que nunca chega a atingir (o sorriso do pai na fotografia, a tia louca que embala uma boneca de pano), perpetra imagens francamente assustadoras (“o olhar terno dos pássaros”), aliterações inúteis (“no catre do quadro no corredor para o Cadeiral”) e redundâncias assassinas (“cozinheiros fritam em frigideiras”). Quando incorre no sexo vai do abjecto (“cheiro a carne apodrecida”, “a podridão da carne”, “conheci a putrefacção da carne”) à floricultura (seios que se tornam flores e sexos que se abrem como um botão de flor), sem falhar os transes místicos inspirados em Santa Teresa de Ávila (“um sonho em que o meu Senhor é carne”).

 

Rui Vieira procura cauções exteriores na divisão da estrutura em quatro partes (os quatro elementos), em abundantes passagens bíblicas e em citações do livro Cartas Portuguesas. Fica a ideia de que são enxertos desnecessários que não dialogam com o livro e que têm o efeito perverso de evidenciar a pobreza da matéria-prima. A nota final, em que o autor se justifica, era dispensável, qualidade que partilha com o resto da obra.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:49
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O Tesouro

“Na época em que o rei Frederico II da Dinamarca reinava na província de Bohus, vivia em Marstrand um pobre peixeiro, de nome Torarin.” Um arranque destes já era anacrónico quando Selma Lagerlöf escreveu O Tesouro, em 1904. Hoje, assente que está a poeira das modas, podemos considerá-lo intemporal. A história emerge com a solidez da sua simplicidade. Combina elementos dos contos populares e das histórias de fantasmas, sob uma atmosfera moral e religiosa, inspirada em lendas escandinavas e em episódios bíblicos.

 

O Tesouro narra a história de Elsalill, uma rapariga que se apaixona por um dos homens que lhe matou a família. Perseguida pelo fantasma da irmã adoptiva, Elsalill vive atormentada pela dúvida: denunciar o homem que ama ou fugir com ele, tornando-se cúmplice do crime e carregando em silêncio a culpa dos dois. A questão central do romance é este dilema moral de Elsalill, no qual se confrontam os seus sentimentos e uma noção de justiça transcendente. Enquanto os assassinos não são punidos, não é apenas a alma da irmã que não tem descanso; a própria Natureza, o longo braço de Deus, impõe as suas leis. O barco que levaria os criminosos de volta à Escócia, de onde eram originários, permanecerá encalhado no gelo até que a justiça seja feita. Sendo a paixão de Elsalill o único obstáculo entre o crime e o castigo, o seu sacrifício torna-se a condição para o apaziguamento dos defuntos e da cólera divina. Ao aceitar o seu destino trágico, Elsalill expia o seu pecado: o de um amor corrompido pela culpa.

 

Simples na caracterização das personagens e na descrição dos ambientes, e profundo no tratamento dos temas (amor, culpa, redenção), O Tesouro é uma obra anti-naturalista que reveste a estrutura dos contos tradicionais de uma sensibilidade cristã típica dos países nórdicos. Um antepassado literário de filmes como A Palavra (Dreyer), A Fonte da Virgem (Bergman) e Ondas de Paixão (von Trier), com os quais partilha a austeridade mística e a economia narrativa. Selma Lagerlöf, a primeira mulher a receber o Prémio Nobel, escreveu um romance sem adiposidades, sempre as primeiras presas da voracidade do tempo. A designação de clássico serve-lhe na perfeição.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:48
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Verão

Quando a personagem principal de um romance de J.M. Coetzee é um escritor sul-africano chamado John Coetzee, o alarme metaliterário dispara. O leitor, que se julga sempre mais esperto do que o escritor, aproxima-se cautelosamente, com a esperança de comer o isco confessional sem ficar com a boca presa no anzol da ficção. Mas o pescador experiente, como é o caso de Coetzee, faz do isco e do anzol um só corpo. O peixinho está condenado a saber menos do que o pescador. Deve ler e deleitar-se com a arte que o engana.

 

Após a morte de John Coetzee, o seu biógrafo entrevista cinco pessoas (quatro mulheres e um homem) que se cruzaram com o escritor no período entre 1972-77, antes da consagração literária. Dos relatos fragmentados emerge uma imagem unívoca e pouco favorável do homem. Mais do que um inadaptado, era um inadaptável. É retratado pelas mulheres como assexuado e frouxo, “um homem sem aptidão para o casamento, como um homem que passou a vida no sacerdócio e perdeu a virilidade e se tornou incompetente com as mulheres.” Socialmente, Coetzee assemelhava-se a um seminarista divorciado do próprio corpo, divorciado dos outros. Calvinista nos afectos e na falta de jeito para a dança, era “um homenzinho sem importância”, sem nenhum sinal exterior do talento que haveria de demonstrar.

 

Apesar do jogo de espelhos auto-referencial, Verão não é um romance solipsista. É uma (falsa) biografia em construção, em que os personagens secundários (os entrevistados) invadem o palco principal, deixando o protagonista fora de cena. Desta forma, o foco do romance desvia-se, em determinados momentos, do mundo fechado do escritor para incidir sobre a sociedade sul-africana: a gradual transformação das relações entre negros e brancos, o desencanto burguês dos subúrbios e a ligação complexa dos colonos ao país.

 

Quase no final do livro, uma das personagens faz uma avaliação crítica da obra de John Coetzee. Conclui que o estilo, “demasiado frio”, denota falta de ambição. Ela projecta nos livros as qualidades do homem, enquanto que a mensagem do romance é a oposta. Não devemos confundir o homem com a obra. Não devemos confundir J.M. Coetzee com John Coetzee.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:48
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Cordilheira

A badana do livro, fonte sempre fiável, assegura-nos que Daniel Galera é “considerado o melhor escritor brasileiro da sua geração”. O melhor elogio que se pode fazer é que o terceiro romance do escritor gaúcho não desmente a badana. Cordilheira é um livro de um escritor maduro, sem o espalhafato verbal com que se impõem muitos dos novos valores e sem a colagem a patronos literários que facilita a entrada na primeira divisão das letras. Aqui de nada servem os baptismos fáceis, “Guimarães Rosa de Porto Alegre” ou “Machado de Assis do século 21”. Galera é o seu próprio padrinho.

 

A história é narrada por Anita van der Goltz Vianna, uma jovem escritora a quem o sucesso do primeiro livro perturba mais do que motiva. O seu grande objectivo é mais doméstico: ser mãe. Mas o entusiasmo de Anita não contagia Danilo, o namorado, que pensa que ela faria melhor em investir na carreira literária. Perante a recusa de Danilo de a acompanhar no seu projecto egoísta e após o suicídio de uma amiga, Anita aproveita o lançamento do seu romance em Buenos Aires para deixar tudo para trás e perseguir o seu desejo: “Eu desejava o mais próximo que poderia haver de uma concepção milagrosa”. Anita sai do Brasil e mergulha na ficção, decidida a controlar os acontecimentos em vez de lhes atribuir um sentido a posteriori. Embora não tão arrojada, é uma ideia semelhante à de José Holden, o homem com quem se envolve. Holden e os seus amigos não se contentam com escrever livros, assumem a vida das suas personagens até às últimas consequências.

 

Enquanto nos diverte com alguns passos metaliterários (a Carnicería Cortázar, a tasca La Catedral), Daniel Galera não faz do estilo um traje carnavalesco. A sua prosa é clássica sem ser barroca e actual sem ser “moderninha”. Consegue imagens que não podiam ser de outro tempo (“[...] seu piscar azulado transformou a sombria alameda Chile num ambiente de rave evacuado.”) e guarda a melhor mão para momentos-chave: a descrição rigorosa de um ataque de pânico ou uma cena de sexo com as palavras certas no sítio certo. Mesmo quem não aprecia consagrações de badana não poderá negar que o século XXI já tem o seu Daniel Galera.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:47
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Biografia José Saramago

Esta biografia de José Saramago, da autoria do investigador João Marques Lopes, é a prova da difícil relação dos portugueses com o género. Trata-se do percurso invulgar do único prémio Nobel da literatura de língua portuguesa e de um homem polémico que ainda não perdeu a capacidade de provocar reacções epidérmicas aos adversários de sempre: a direita e a Igreja Católica. No entanto, se compararmos esta biografia com as de outros nobelizados, como Gabriel García Márquez e V.S. Naipaul, não podemos deixar de sentir a falta de ambição e de talento para nos dar um retrato mais completo e complexo não só do homem e do escritor, mas também da sua época. É verdade que nem todos podem ser Ruy Castro, cujas biografias são muito provavelmente o expoente máximo do género em língua portuguesa. O que não desculpa a linguagem burocrática e, pontualmente, hermética de Marques Lopes, que confunde o rigor da investigação com uma prosa em rigor mortis. A função do biógrafo é de transportar o leitor para a vida do biografado e não para os arquivos e bibliotecas onde fez a pesquisa, por muito meritória que esta seja. Uma das opções mais questionáveis é a ausência de entrevistas. A base da investigação é exclusivamente documental, o que não se compreende, tendo em conta que alguns dos protagonistas dos episódios mais polémicos da vida de Saramago poderiam oferecer testemunhos relevantes. Seria interessante ouvir o desaparecido Sousa Lara ou Maria Lúcia Lepecki, membro do júri do prémio da APE que elegeu O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que votou por uma obra de que ninguém se lembra. Em relação a outras polémicas, Marques Lopes suaviza a participação de Saramago no saneamento de jornalistas do DN durante o PREC, menospreza a crítica literária quando esta não é simpática com Saramago, atribuindo-lhe motivações ideológicas, e eleva o escritor à condição em que o próprio gosta de se rever: a de profeta-mor dos desempregados morais do comunismo. As afinidades ideológicas entre biografado e autor são óbvias e, até por esse motivo, este será o primeiro a reconhecer que a biografia paroquial que escreveu não honra a dimensão universal de Saramago.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:45
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O Mundo Alucinante

Para se afirmar, a identidade de um povo precisa de historiadores, de romancistas e de bons electricistas, e destes apenas para evitar que os outros percam tempo a trocar fusíveis. Um povo pode lutar e conseguir a independência, mas “o grito de Ipiranga” é apenas o meio do percurso na estrada que leva à construção de uma nação. Por este motivo, a luta dos povos americanos pela independência e o “combate” dos escritores latino-americanos, um século e meio mais tarde, pela emancipação cultural são dois momentos do mesmo caminho. A autodeterminação de um povo não fica completa sem o direito a narrar a própria história, a fundar novas mitologias e a consagrar as suas figuras e os seus heróis. Foi esse o papel da literatura latino-americana. Não como um projecto subordinado a ditames de natureza política ou estética, mas como um conjunto heterogéneo de vozes que, para benefício de todos, parecia cantar em uníssono. Daí que, mesmo uma voz marginal e rebelde, como a do escritor cubano Reinaldo Arenas (1943 – 1990), possa ser incluída no coro.

“O Mundo Alucinante”, romance publicado no auge do chamado boom da literatura latino-americana (1966), é um contributo para aquelas mitologias. Arenas pegou na figura histórica do frade mexicano Servando Teresa de Mier e compôs uma hagiografia secular, delirante, poética e surrealista. A escolha não foi inocente. Defensor da independência das colónias americanas, Frei Servando foi condenado ao desterro em Espanha por heresia. Várias vezes preso, conseguiu sempre fugir. Percorreu a Europa e deparou-se com a decadência dos costumes e a corrupção moral. Esteve em Itália, “onde os ladrões são tão abundantes que quando alguém não o é o canonizam imeditamente; em Espanha, “[...] a Roma de Nero comparada com a corte de Espanha, pareceria a casa de Deus e de todos os santos.” Tudo aquilo que viu inflamou o seu “mais forte e maior desejo”, a independência da sua pátria. “Até quando seremos considerados como seres paradisíacos e lascivos, criaturas de sol e água?...Até quando vamos ser considerados como seres mágicos guiados pela paixão e pelo instinto?” Era hora de o homem americano se libertar da canga incapacitante do “bom selvagem” e assumir as rédeas do seu destino.

Muitos anos depois, os escritores fizeram o mesmo. Reclamaram o direito de construir a sua própria genealogia. Como se pode comprovar neste livro, em que Arenas se apropria da tradição literária europeia e produz um artefacto miscigenado, distintamente americano e de fôlego universal. Não renega a herança para dar ares de “falso primitivo”. Arenas é Cervantes nas deambulações por uma Espanha desoladora e numa citação do discurso de D. Quixote sobre a liberdade. Arenas é Homero, e Servando é o seu Ulisses que regressará a Ítaca – a América idealizada - para libertar a pátria dos usurpadores. Arenas, e aqui paga o seu tributo à modernidade, também é Virginia Woolf e, “Orlando”, outra biografia atípica, a matriz que inspira o romance com o desrespeito pelas convenções narrativas. O romancista, ao contrário do historiador, não precisa de colmatar as lacunas da História com hipóteses verosímeis. Bastam-lhe a imaginação e a saudável tendência para quebrar as regras.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:18
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A volta ao dia em 80 mundos

A Volta ao Dia em 80 Mundos é o melhor livro para se entrar no universo do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984). E é também o pior. É o melhor porque este caleidoscópio vertiginoso, publicado em 1967, reúne ensaios e contos, poemas e crónicas, e maravilhas de ourivesaria como Louis, Enormíssimo Cronópio. É o pior porque esta máquina enciclopédica, em que vamos viajando através dos 80 ou mais mundos de Cortázar, pode desanimar o leitor menos persistente. Não se esperem, portanto, facilidades do encontro com a obra de Cortázar.

 

O título pode criar no leitor uma expectativa de paródia ou de gracejo erudito. Depois das primeiras páginas, este leitor terá perdido toda a vontade de tratar Cortázar por che. É que, ao contrário de O Jogo do Mundo (Rayuela), este livro não vem com manual de instruções. Sugerimos, pois, que o leitor inicie a abordagem ao livro por territórios reconhecíveis e onde a mão de Cortázar sempre foi mais feliz: os contos. Tema para São Jorge, Com Legítimo Orgulho e A Carícia mais Profunda são óptimos preliminares para o deleite futuro. O primeiro trata de López, um ergofóbico que em todos os locais de trabalho encontra um monstro feito dos hábitos do escritório; o segundo relata a história de uma comunidade cujo espírito gregário assenta na antiga tradição de recolher as folhas secas; o terceiro conto é kafkiano do início ao fim, a história de um homem que se afunda no chão, a cada dia que passa cada vez mais, sem que as pessoas à sua volta se dêem conta do facto. Nestes contos exemplares da arte de Cortázar, o fantástico não é o avesso do real, um mundo invisível habitado por entes sobrenaturais; é aquilo que paira no ângulo morto da realidade. O monstro que só é visto por López e o homem que se afunda no chão sem que ninguém repare não são menos monstruosos, fantásticos e absurdos do que a anestesia do quotidiano que impede que os outros os vejam.

 

Feito o tirocínio, saciado o desejo de leitor-fêmea (Cortázar haveria de corrigir esta expressão para leitor-passivo), é altura de avançar. A Volta ao Dia em 80 Mundos, como bom labirinto de um escritor com apetência para o jogo, tem muitas entradas: a paixão pelo boxe e pelo jazz (Thelonious Monk e Clifford Brown), o fascínio da voz de Gardel ouvida na grafonola, a contaminação da memória pela imaginação (Acerca da maneira de viajar de Atenas a Cabo Súnion), o presente e o futuro da literatura latino-americana ou o grave problema que os argentinos enfrentam para iniciar uma carta (Querido Amigo, estimado, ou o nome sem mais). Esta última entrada é uma emanação directa do sol que está no centro do universo de Cortázar: o humor. Um humor com a cara de Buster Keaton, um sol com raios de melancolia. Um humor que nos resgata da seriedade bolorenta e fúnebre que alguns escritores, mais propensos à metafísica e à solenidade, confundem com a grande literatura. Cortázar fustiga-os. “Por que diabos existe entre a nossa vida e a nossa literatura uma espécie de «muro da vergonha»?” Uma questão dirigida aos escritores argentinos da altura, mas que, a 40 anos de distância e no periférico mundo das letras portuguesas, não perdeu utilidade.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:17
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101 Monstros

Defenestrações, genocídios, empalações, torturas, envenenamentos: o cardápio de crueldades de que o ser humano é capaz é praticamente inesgotável. O historiador Simon Sebag Montefiore, com a colaboração de John Bew e Martyn Frampton, escolheu 101 exemplares da maldade humana. Aqui encontramos estadistas poderosos, imperadores megalómanos, ditadores sanguinários, mas também traficantes de droga, profetas alucinados e assassinos em série. Em certos momentos, temos uma sensação de déja vu. As mesmas histórias de ambição e de loucura representadas por personagens diferentes. A crueldade não conhece ideologias, religiões ou territórios e distingue-se pela facilidade em inventar inimigos, isto é, em angariar vítimas. Inimigos da Pátria, da Revolução ou de Deus, judeus, homossexuais ou índios: a diferença, real ou fabricada, é o pretexto mais comum para a prática de atrocidades. Da antiga Babilónia à África pós-colonial, do Império Romano à Alemanha nazi, da Chicago de Capone à Sicília de Riina, da Espanha inquisitorial aos campos de treino de terroristas no Afeganistão, o Mal encontra sempre maneira de se manifestar. Não o Mal enquanto categoria ontológica, mas o mal enquanto expressão objectiva do pior que habita o ser humano. No prefácio, Montefiore lembra que alguns dos homens que escolheu, como Genghis Khan ou Tamerlão, mereciam um livro à parte, o dos heróis-monstros. O génio que demonstraram no campo de batalha atenua o horror dos crimes que cometeram, relativiza-os. Não são poucos os exemplos de homens cuja grandeza política assenta em pilhas de cadáveres. No entanto, há crimes que resistem ao relativismo histórico e às propagandas patrióticas ou religiosas. É por isso legítimo falar do Mal, desde que não sirva para escamotear o facto de que a crueldade é uma escolha. Pode revelar aspectos da natureza humana que são difíceis de entender mas não deve ser desculpada com base em relativismos culturais ou, pior ainda, abordagens metafísicas. Hitler e Estaline não eram monstros, nem demónios. Eram homens. É isso que assusta. Ainda mais assustador é pensar nos actores secundários, nos milhares de “pessoas banais, que se transformaram em assassinos e torturadores”. Algumas das entradas deste manual de maus costumes não teriam sido possíveis sem a colaboração desses cúmplices anónimos. Alguns mancharam as mãos de sangue, outros cobriram-se com a ignomínia do silêncio.

 

Montefiore diz que “todos nós deveríamos conhecer estas personagens, lembrar os seus crimes e termos, sobre eles, a nossa própria opinião.” A estrutura enciclopédica e o estilo expositivo desta obra, convidam o leitor a tirar as suas próprias conclusões. Será esta a melhor maneira de impedir desgraças futuras? Dificilmente. As nossas mentes saturadas do horror servido em directo pelas televisões são pouco sensíveis a lições de História. As toneladas de actos horrendos despejadas por Montefiore embatem contra espíritos moldados por uma cultura que suaviza os monstros. Para além disso, o repertório da crueldade, suficientemente vasto para fazer o tempo andar para trás, não deve ser menosprezado. Quando comparada com a barbárie primitiva do genocídio no Ruanda a sofisticação tecnológica com que os nazis implementaram a solução final parece oriunda de um futuro macabro de ficção científica. A História repete-se com ligeiras nuances, mas sempre como tragédia.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:15
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A sala de vidro

A Sala de Vidro, romance do britânico Simon Mawer, percorre 60 anos da história europeia. No centro da narrativa, uma casa. Mais do que uma casa, uma obra de arte arquitectónica. Mais do que uma obra de arte, um símbolo da crença no futuro e no progresso. Só que o futuro, quando chega, vem de botas cardadas e carregado de ódio. O futuro racional e límpido anunciado pelas linhas rectas e pelas paredes de vidro não se cumpre.

 

Na Checoslováquia, no final dos anos 20, os recém-casados Viktor e Liesel Landauer encomendam o projecto de uma casa ao arquitecto Rainer von Abt. Viktor, um industrial judeu, quer libertar-se do Romantismo e do apego ao passado e encontra em von Abt o homem certo para materializar essas aspirações. Os olhos de Viktor estão postos no futuro, num tempo em que “o facto de serem checos ou alemães ou judeus” não tenha importância. O arquitecto, por sua vez, “deseja tirar o Homem da caverna e pô-lo a flutuar no ar.” Com a invasão alemã, a família Landauer é obrigada a refugiar-se na Suiça, seguindo depois para os Estados Unidos. A casa é ocupada por cientistas alemães que aí instalam um laboratório para medição e catalogação de seres humanos. Mais tarde, após a guerra, a Casa Landauer é utilizada como ginásio para reabilitação de crianças deficientes. No final do livro, em 1990, a casa funciona como museu. Nenhuma das mudanças que o espaço sofre ao longo dos anos diminui o fascínio exercido sobre quem o visita. A Sala de Vidro, o ex-libris da casa, é dotada de uma essência que sobrevive às funções circunstanciais. Deste modo, Simon Mawer confronta Arte e História, a tranquilidade da Casa Landaeur em contraste com as convulsões do mundo exterior. Ao resistir às investidas dos acontecimentos históricos, a casa espelha as alterações políticas e sociais mas não se transforma na imagem que reflecte. Esta dimensão “teórica” do romance não é servida em bruto. Mawer dilui as reflexões (sobre arquitectura, sobre história) numa narrativa por vezes demasiado intrincada, a roçar o inverosímil, mas que consegue transmitir o essencial: a influência da sala de vidro – a personagem principal do romance – no comportamento das restantes personagens. É uma lição de arquitectura: a sala não é um mero cenário, mas um actor em interacção com os outros.

 

A Sala de Vidro foi um dos finalistas do Booker Prize de 2009. O autor fez por merecer a distinção. A prosa de Simon Mawer é quase tão translúcida como a própria casa. Mawer esforça-se para que não reparemos nele, o que é parcialmente conseguido na quinta parte do livro, que poderia ter sido escrita por Milan Kundera. A exemplo do que sucede na obra do escritor checo, passado e futuro, memória e esquecimento, são as forças magnéticas do romance de Mawer. A família Landauer caminha em direcção ao futuro, atraída pelos contornos nítidos da casa, mas vê-se obrigada a deixar tudo para trás, para fugir de um presente ameaçador, um presente com as rugas do passado. E é irónico que a casa, que começa por ser o símbolo de um novo começo, acabe como museu, o centro nostálgico que irradia uma ideia de felicidade perdida mas sempre luminosa.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:15
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As Portas do Inferno

Se as boas intenções não salvam nenhuma alma do inferno, também não chegam para fazer um grande romance. Laurent Gaudé, um dos nomes da nova literatura francesa, desceu ao inferno e voltou de lá com um livro menor nas mãos. A culpa é do pesado caderno de encargos a que se lançou: a dissolução de um casal que perde o filho, o desejo de vingança que não se concretiza por falta de coragem e um pai que se sacrifica para resgatar a alma da criança, numa recriação do mito de Orfeu. Junte-se o quarteto extravagante de personagens secundárias, que inclui um travesti de bom coração e um padre subversivo, e o resultado é uma espécie de viagem ao inferno de Dante, com Almodóvar no lugar de Virgílio.

 

Pippo, o filho de Giuliana e Matteo, é atingido mortalmente por uma bala perdida durante um tiroteio entre clãs da Camorra. Para mitigar a dor, Matteo vagueia pelas ruas de Nápoles como uma sombra sem destino nem consistência. É a vontade de vingança alimentada pela mulher que o traz de volta à realidade. Na impossibilidade de reaver o filho, Giuliana exige a Matteo que encontre e mate o assassino de Pippo. Mas quando finalmente tem oportunidade de o fazer, Matteo acobarda-se e regressa a casa sem o sangue do carrasco. Desesperada com a fraqueza do marido, Giuliana abandona-o. A sua forma de lidar com a dor é através do esquecimento. Esquecer o marido, a vida que teve e o filho que perdeu. Matteo regressa às deambulações nocturnas e é então que conhece o grupo de personagens excêntricas que, inesperadamente, acaba por guiá-lo ao inferno e à redenção.

 

A combinação entre o real e o fantástico, entre as ruas de Nápoles e as profundezas do Reino dos Mortos, entre a monstruosidade física de Grace (o travesti) e a amargura silenciosa de Matteo, requer versatilidade. Mas a solução de Gaudé passa por empilhar, sem grande subtileza, blocos de mitologia solene, realismo visceral e tragédia familiar, sepultando a verosimilhança e as boas intenções. De todas as personagens, incluindo as que não se distinguem de uma caricatura grosseira, é a de Giuliana a que corporiza os defeitos do livro. As manifestações da sua dor – as imprecações revoltadas, os bilhetes que coloca entre as pedras das igrejas e a auto-mutilação – são artificiais e quase burlescas no arremedo de pathos bíblico. “Quando voltares, lavarei a tua roupa suja de sangue” e “Restitui-me o meu filho, Matteo. Restitui-mo ou, se não puderes fazê-lo, entrega-me pelo menos aquele que o matou!” são falas que colocam o leitor a salvo de qualquer ameaça de compaixão. Em vez de demonstrar o desespero de uma mãe enlutada, Gaudé encena o sofrimento com requintes litúrgicos, como se a personagem não fosse mais do que uma múmia literária a simbolizar o arquétipo da mater dolorosa. Não convence, nem comove.

 

Sempre demasiado explicativo, Gaudé vai arriscando alguma filosofia ao longo do livro: a vida pode ser um verdadeiro inferno; a dor pode transformar um homem numa sombra; esquecer os que partiram é condená-los a uma segunda e definitiva morte. Boas intenções, misticismo sofrível. Por vezes, o melhor é deixar os mortos em paz.

 

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:14
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Conversa n'A Catedral

Quarenta anos depois da publicação de Conversa n’A Catedral, o magistral romance de Mario Vargas Llosa, a pergunta que surge logo na primeira página ainda ecoa como senha do desencanto: “Em que altura se tinha fodido o Peru?” É o Abre-te, Sésamo que dá acesso à autópsia de uma sociedade sob o jugo da ditadura. Uma nação falhada é um cadáver gigantesco composto por milhares de fracassos individuais, de ricos e de pobres, de intelectuais e de camponeses, de brancos, de negros e de mestiços. E há sempre os vermes para os quais o corpo putrefacto é um festim.

 

Apesar de retratar uma ditadura, Conversa n’A Catedral não se insere no género latino-americano de romance de ditadores. Aqui, o ditador (o General Odría que governou o Peru entre 1948 e 1956) é uma sombra tutelar, uma ausência omnipresente. Odría é a emanação provisória do regime e dos interesses que o sustentam: “Bom, enquanto conseguirem mantê-los satisfeitos, eles apoiarão o regime. Depois arranjam outro general e põem-nos fora. Não tem sido sempre assim no Peru?” Vargas Llosa desvia-se do tema do exercício solitário do poder absoluto e centra-se na descrição da ditadura enquanto sistema. O fundamental é a descrição dos mecanismos de controlo e repressão, dos bastidores onde se unem as pontas soltas dos interesses, das encenações em que o poder se celebra. Um ambiente propício ao cínico, pragmático e maquiavélico Cayo Bermúdez, cérebro e Cerbero do regime, eminência parda que rapidamente se transforma na peça essencial do jogo do poder. Enquanto Bermúdez, homem endurecido pela miséria e pelo orgulho, nunca teve ilusões, Santiago Zavala, outro dos personagens centrais do romance, perdeu-as antes de chegar aos 30 anos. Menino bem, filho de um dos apoiantes e cúmplices do regime, Zavalita renuncia aos privilégios de classe e à protecção da família para também ele falhar, apenas com o parco consolo de o fazer pelos próprios meios. É Zavalita que, anos mais tarde, conversa n’A Catedral, uma tasca de Lima, com o negro Ambrosio, ex-motorista do pai e de Cayo Bermúdez. Juntos, tentam perceber o que os levou até ali. Essa longa conversa, que atravessa todo o romance, é a trave mestra da assombrosa obra de engenharia narrativa que é Conversa n’A Catedral. Ao leitor é exigida uma participação atenta na construção do enredo e da complexa teia com dezenas de personagens, constantes saltos temporais e diálogos que se cruzam numa dinâmica caleidoscópica.

 

A cidade de Lima, mortiça e suja, surge como sinédoque da sociedade peruana: dos bairros finos aos bairros de lata, dos palácios do poder às tascas esconsas, dos clubes reservados às casas de má fama, tudo sob a mesma cacimba mole que leva Zavalita a concluir que, como tudo o resto, “até a chuva estava fodida neste país; se ao menos chovesse a cântaros”. E a pergunta inicial fica sem resposta. O que separa a descoberta do amor da desilusão conjugal, os ideais revolucionários da resignação política, o curso de Direito de um trabalho medíocre, as virtudes públicas dos vícios privados, um país próspero de uma nação miserável, não é um único momento isolado. É a vida. Triste. Cinzenta. Fodida.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:13
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O albatroz azul

Há várias maneiras de um escritor, escreva bem ou mal, se destacar: uma polémica, um prémio, a morte. Felizmente, a fama de João Ubaldo Ribeiro no nosso país deve-se apenas às duas primeiras. Pela via de uma polémica de hipermercado ou pela via do Prémio Camões, o que interessa é chegar à obra de Ubaldo Ribeiro, um dos maiores prosadores da língua portuguesa. O Albatroz Azul serve de confirmação.

  

Livro entre um começo e um fim, este romance é uma reflexão sobre a continuidade, sobre aquilo que herdamos e aquilo que nos preparamos para deixar aos que vêm depois de nós. A história começa no dia do nascimento do neto de Tertuliano Jaburu, um velho sereno “que goza de familiaridade com os seres, visíveis e invisíveis.” Tertuliano é o único que sabe, contra todas as evidências e augúrios, que vai ter um neto homem. Este futuro avô vê o nascimento do neto como uma derradeira oportunidade concedida pelo destino: a sua missão é “preparar as glórias do seu grande neto, o que em si, já continha sua própria glória” e garantir que nenhuma imprudência na hora do parto comprometa o futuro do neto, que antevê glorioso. Após o nascimento auspicioso da criança, que até nasce de rabo virado para a lua, Tertuliano sente-se renovado. Porém, uma conversa com um amigo, que o recorda de acontecimentos nefastos que marcaram a sua vida, lança nuvens no dia radioso. Então, numa longa analepse, ficamos a conhecer a história da família de Tertuliano e da ferida funda que, ao longo dos anos, aprendeu a domar mas que nunca soube cicatrizar. E, no tempo que vai do júbilo pelo nascimento ao doloroso remoer das memórias, Tertuliano adquire a certeza pacífica de que a sua hora final está prestes a chegar.

 

Ubaldo Ribeiro faz um elogio da sabedoria popular e das suas expressões: tradições, superstições, crenças e provérbios. Por exemplo, o saber empírico da parteira Altina, que havia pilotado mais de três mil partos, é mais valorizado do que a ciência de “medicastros de merda”. Tertuliano pensa que o “saber coisas demais termina por prejudicar a noção” e apesar de acreditar em Deus nunca foi “de igreja, nem de padre, nem de freira, nem de missa.” Os anos de convívio simples e atento com as coisas do mundo ensinaram-lhe mais do que os livros, os latinórios dos padres e as manhas dos advogados. Nenhum deles pode ensiná-lo a ouvir uma pedra. Dentro deste conceito de filosofia natural, deste panteísmo tropical, quase caeiriano, a linguagem das personagens desempenha um papel fundamental. É ela que, ao mesclar arcaísmos, regionalismos e expressões populares, define as personagens.

 

Ubaldo Ribeiro aproveita os matizes populares para caracterizar as personagens, mas a sua prosa é pródiga em recursos que denotam um conhecimento profundo da variante literária da língua, do Padre António Vieira a Guimarães Rosa. Do estilo mais directo dos dois romances anteriores (A Casa dos Budas Ditosos e O Diário do Farol) Ubaldo Ribeiro passa para um barroquismo elegante, numa demonstração da amplitude do seu talento. Um talento que merece estar acessível a todos os leitores, inclusive os de hipermercado.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:12
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A Nuvem de Smog e A Formiga Argentina

Referir a nacionalidade de alguns escritores, como é o caso do italiano Italo Calvino, é um mero acto de competência geográfica ou de zelo patriótico. As obras que lhe granjearam admiração universal provêm de um outro lugar de coordenadas imprecisas, que por comodidade poderemos designar por Literatura, nomeadamente da sub-região do Fantástico. O poder criativo de Calvino, refreado pelo rigor matemático da linguagem, nunca resvala para o devaneio. As Cidades Invisíveis são o exemplo maior dessa arte em que uma imaginação prolífica se alia a uma prosa geométrica. O estilo do autor impõe-se sem esforço aos códigos dos géneros literários.

 

O mesmo acontece nos dois contos que constituem este livro: A Nuvem de Smog e A Formiga Argentina. Embora tenham sido escritos numa época (1958 e 1952, respectivamente)  em que o neo-realismo ainda era a corrente dominante e mesmo que possam ser classificados de “realistas”, afastam-se de qualquer cartilha literária. O primeiro é a história de um jornalista que decide aceitar o lugar de redactor num pequeno jornal. Obedecendo a um desejo de apagamento (“não suporto chamar a atenção”; “queria sentir-me alguém de passagem”), muda-se para um quarto acanhado na nova cidade. Nesse sentido, a perpétua nuvem de smog que envolve a cidade e os seus habitantes deveria ser uma ajuda. No entanto, a visita da namorada, uma mulher bela e optimista lembra-o da possibilidade de uma vida diferente do beco cinzento e empoeirado que escolheu. O segundo conto passa-se num ambiente rural. Um jovem casal com um filho aluga uma casa. A esperança de aí encontrarem a tranquilidade que amenize as dificuldades quotidianas rapidamente se desvanece. Os terrenos em volta da casa estão infestados de formigas nada preocupadas em proporcionar sossego aos habitantes. Quando procuram saber como é que os vizinhos evitam as formigas, percebem que, mais do que uma ameaça, os insectos são parte integrante do seu modo de vida.

 

Tal como são apresentados nesta edição, os contos foram publicados em 1965, embora já estivessem incluídos no Livro Quarto da colectânea dos Racconti, de 1958. O autor considerava que estes contos estavam ligados por uma “afinidade estrutural e moral”. As ressonâncias são óbvias e o cruzamento de ambos permite uma leitura mais rica. O retrato de ambientes distintos (uma cidade industrial e uma aldeia) e a natureza oposta das “ameaças” (o smog e as formigas) esvaziam a dimensão neo-realista. A angústia não é classista, nem é um mal exclusivo dos centros urbanos e do progresso. Porém, é selectiva: ataca aqueles que não se adaptam. O casal e o jornalista partilham as dores da inadaptação a um novo meio. Aquilo que é um incómodo para eles é, para os adaptados, um factor de coesão social e até de cumplicidade conjugal. As semelhanças entre ambos os finais, em que os protagonistas se distanciam dos problemas e contemplam paisagens despoluídas e desinfestadas, elucidam-nos quanto ao sentido metafórico que Calvino atribui ao smog e às formigas: o da rotina que nos envolve, como a nuvem de smog, e que entra pelas nossas casas sem pedir licença, como as formigas.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:11
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Caim

O Deus do Antigo Testamento não é muito simpático. Não é preciso ser exegeta para o saber. Basta ver os “highlights”. E eles estão todos, ou quase, no último romance de José Saramago. A expulsão do Éden, a torre de Babel, o sacrifício de Isaac, o bezerro de ouro, Sodoma e Gomorra, a queda das muralhas de Jericó, o suplício de Job. A escolha não é fortuita. A intenção é denunciar o carácter vingativo e arbitrário de um Deus egoísta e que não admite concorrência. No negócio da adoração o segredo é ter o monopólio. Em oposição a este Deus tirânico temos, no canto vermelho, Caim, o primeiro homicida da história. Condenado a errar pelo mundo e pelo tempo (graças a Deus e ao não menos omnipotente narrador), Caim testemunha vários episódios do Antigo Testamento, cada vez mais revoltado com os desmandos do Senhor. O trajecto de Caim é a confirmação de que o Homem é dotado de um “inato sentido moral da existência” independente dos mandamentos de qualquer divindade.

 

Depois do consenso que recebeu A Viagem do Elefante, Saramago quis fazer polémica. Saiu-lhe uma aula de catequese às avessas, uma releitura do original com algum humor pelo meio (o leitor ficará a saber como é que o unicórnio perdeu a boleia na Arca de Noé). A prosa não traz novidades: Saramago encontrou a sua voz muitos livros atrás. Enquanto alegoria universalista, uma especialidade do autor, “Caim” também nada acrescenta. É, acima de tudo, a história do conhecido desentendimento de Saramago com Deus. Um assunto que talvez se resolva quando o escritor abdicar das vestes de profeta menor de um Deus em que não acredita.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:10
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Indignação

Indignação, vigésima-sétima obra de Philip Roth, começa e acaba no sangue. Começa no sangue ritual num talho judeu de Newark e acaba no sangue de um soldado na guerra da Coreia. No início, a distância entre ambos é enorme, mas através de uma sucessão de acasos vai sendo progressivamente eliminada até ao trágico desfecho.

 

O narrador é Marcus Messner, um jovem judeu de comportamento irrepreensível. Apesar de ser um óptimo aluno e de ajudar os pais no negócio do talho, Marcus começa a ser vítima da paranóia do pai, que vive aterrorizado com a possibilidade de acontecer uma desgraça ao único filho. O pai Messner está convencido de que “o mais pequeno passo em falso pode ter consequências trágicas”. Ironicamente, o conflito entre os dois está na origem da tragédia, como se, em vez de a travar, o receio do pai servisse de alavanca à engrenagem do destino. Para se libertar da severa jurisdição paterna, Marcus decide ir para Winesburg, uma pequena universidade no conservador Ohio.

 

Com o país mergulhado numa guerra distante que custa a vida a milhares de jovens, o campus é o seguro de vida de uma juventude privilegiada. A guerra da Coreia é o rio da História. Marcus caminha em segurança pela margem. O romance, que segue essa linha, vai sendo pontuado por pequenos incidentes: a má relação de Marcus com os colegas de quarto, a iniciação sexual com uma rapariga que afinal sofre de distúrbios psiquiátricos, o confronto filosófico-religioso com o deão dos alunos e até uma prosaica apendicite. Cada um destes eventos representa um pequeno desvio no rumo traçado por Marcus, escolhos no caminho que provocarão o passo em falso de consequências trágicas. Ao fugir do pai, o “herói” cai inadvertidamente num ambiente que lhe é moral e socialmente hostil. Refém da vaga de emoções que nascem da auto-descoberta e constrangido pela pressão da “autoridade”, Marcus toma decisões aparentemente inócuas que se revelam fatais. A sua propensão juvenil para a mais bela palavra da língua inglesa, a que dá o título ao livro, trai as suas boas intenções.

 

Em Indignação, Philip Roth abandona os temas do envelhecimento e das urgências sexuais na terceira idade que marcam o seu período azul-viagra. No entanto, insiste no tema da proximidade da morte, que tinge de cores outonais este romance de iniciação. Roth também prossegue o seu estudo sobre a tensão política e moral entre as duas Américas. Uma tensão sempre pronta libertar-se por meio de uma guerra longínqua, de um inesperado fellatio ou de uma invasão das residências femininas numa pacata universidade.

O trabalho de Roth em Indignação, tragédia que expõe as fraquezas do indivíduo perante a sociedade (família, escola, religião), que esmaga as ilusões pueris do “herói” em relação ao amor, ao sexo e à morte, é quase o de um tecelão minucioso a unir os fios do acaso. É como síntese desse labor, e não como advertência moral, que a última frase do livro deve ser lida. É na arte do romance, e deste romance em particular, que “as opções de uma pessoa, mesmo as mais banais, fortuitas e até cómicas, têm o resultado mais desproporcionado”.

 

 

 

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:08
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2666

 

O maior desafio de escrever um romance de mil páginas é o de se conseguir manter a unidade. Foi essa a grande proeza de Roberto Bolaño. São mil páginas de domínio da mão e da narrativa, de obstinação e, em alguns momentos, de génio, mas também, é forçoso reconhecê-lo, de longos períodos de masturbação livresca e de meta-literatura estéril.

 

Em 2666 há uma unidade geográfica, a ficcional cidade de Santa Teresa, no México, palco de dezenas de assassínios de mulheres, mas sobretudo atmosférica. As cinco partes do livro e as personagens principais confluem para o deserto de Sonora, na fronteira com os EUA, atraídas por um íman de morte e de loucura. Chegadas a Santa Teresa mergulham num mar de irrealidade, uma névoa onírica que nunca se dissipa ao longo do romance. Seja no cenário desolador de uma Europa devastada pela II Guerra Mundial, seja no deserto de Sonora, cujo tempo é assinalado pelo “gotejar incessante” de cadáveres, as personagens movimentam-se como fantasmas perdidos num limbo de sonhos e de aparências, que evocam o conto de Borges, “As Ruínas Circulares”, cujo protagonista compreende “que ele próprio também era uma aparência, que outro estava a sonhá-lo”. Há a criança que quer viver no fundo do mar, os presos que parecem seres de outro planeta, os soldados que caminham como zombis, os loucos internados em manicómios e as crianças bêbedas que jogam à bola: presenças voláteis que flutuam num meio ambiente hostil, como peixes no deserto.

 

2666 é um território do medo, da loucura e da incerteza. “No México uma pessoa pode estar mais ou menos morta”, mas os mortos aparecem e os suspeitos evaporam-se. A vida é sonho e só a morte é real. Os investigadores são incapazes de resolver o mistério dos crimes, de desfazer o novelo da realidade. Também eles caminham em círculos, tal como os académicos que, na primeira parte do livro, procuram sem sucesso o escritor alemão Benno von Archimboldi, a personagem central do romance. Frustrados por não chegar a conhecer o homem a cuja obra dedicaram as suas vidas, entregam-se à indolência mexicana e passam os dias como sonâmbulos ou detectives drogados. A identidade do autor dos crimes e do perpetrador dos livros permanece oculta sob os alçapões de uma realidade inapreensível.

 

A estrutura narrativa de 2666 é o que Vargas Llosa define de “boneca russa”. Histórias dentro de histórias que, ao partilharem os motivos, criam um efeito hipnótico de continuidade. Não são material enxertado à força no corpo do romance, são órgãos que pertencem ao mesmo corpo, reconhecíveis apesar dos diferentes cenários, tempos e personagens. Ao chegarmos ao final da terceira parte, a parte dos crimes, temos a impressão de que Bolaño poderia ter continuado a narração ad infinitum, numa teia interminável de sonhos e assassínios.

 

Entre tantas outras coisas, 2666 é também um manifesto estético contra as correntes que aprisionaram a literatura latino-americana: o sentimentalismo poético de Neruda e o realismo mágico. Não há na escrita de Bolaño vestígio de cedências ao lirismo sentimental nem ao anedótico do realismo mágico. Há outros pecados, como o exibicionismo erudito sub-borgeano, mas não aqueles.

 

Roberto Bolaño escreveu 2666 consciente de que “todo o livro que não seja uma obra-prima é carne para canhão”. À angústia da criação artística, aos medos que assombram o escritor – o medo de ser mau, o medo de escrever livros que fiquem esquecidos na floresta da literatura, nas valas comuns onde acabam tantas obras menores – Bolaño respondeu com um livro de uma ambição desmesurada. Um livro contra o esquecimento que, nas suas qualidades e nas suas imperfeições, é uma profissão de fé no poder da literatura. A prova de que, ao contrário do que é dito no livro, pode não se acreditar em Deus e, ainda assim, acreditar num livro. Bolaño acreditou.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:07
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Cartas de Amor

Comecemos por reconhecer a audácia da edição portuguesa ao juntar “amor” e “Henry Miller” num local público. Henry Miller e Anaïs Nin conheceram-se em Paris, em 1931. Ela tinha 28 anos e ele quase 40. Ele era um furacão de vida e um escritor reconhecido apenas o suficiente para não morrer à fome. Ela tinha aspirações literárias e um casamento que lhe assegurava as doses burguesas de conforto financeiro e insatisfação intelectual. Cada um tinha para dar aquilo de que o outro precisava: Anaïs, cheques e a sua predisposição para adular Miller; Miller, a sua predisposição para ser adulado e Henry Miller. Tornaram-se amantes.

 

As primeiras cartas oscilam entre considerações literárias e definições genéricas das relações entre homens e mulheres. Anaïs percebeu rapidamente o que Miller representava para a sua vida: “Um homem que domina é um homem que não ama”. Dias mais tarde, descreve o primeiro encontro entre os dois: “Vi uma boca que era em simultâneo inteligente, animal e suave”. Estas palavras, escritas por uma mulher inteligente e sensual, foram um bálsamo para o ego gargantuesco de Miller. Ela aceitava a submissão e concedia-lhe o direito de ser o artista mas também o “animal sexual”. Miller agradeceu: “Faz-me tremendamente feliz em ver-me indiviso...em deixar-me ser o artista, como sou, e mesmo assim não esquecer o homem, o animal, o amante esfomeado, insaciável”. Nem só de Dostoievski vive o homem.

 

As cartas prosseguem num crescendo de intensidade: Anaïs teorizando sobre a avalanche de sensações através de uma linguagem concisa e penetrante; Miller escrevendo torrencialmente, em estado de permanente excitação. Anaïs afirmava que Miller era um homem “cuja vida o tornou ébrio” e ele não queria ficar aquém do epíteto: “tudo o que posso dizer é que estou louco por ti”, “ estou maluco esta noite”, “ouve, estou muito bêbedo”, “estou excitadíssimo agora”, “provocas-me um cio incrível”, “estou sentado, a escrever-te com uma erecção tremenda”, etc. A resposta de Anaïs a este festival milleriano de erecções e loucura é quase clínica, submetendo o instinto ao crivo do pensamento: “Ia escrever ontem muito mais sobre a ideia de «excitação», mas a carta tinha de ser posta no correio antes das oito”. Anaïs raramente corrigia uma frase. O seu estilo tinha a precisão económica de um conta-gotas. Miller, pelo contrário, era um exaltado, uma mangueira de alta pressão que debitava frases, esperando que, por obra do seu génio, alguma ideia surgisse dos destroços.

 

As cartas, escritas durante um período de 20 anos, foram um longo processo de sublimação dos respectivos estilos e personae literárias. Assumindo uma postura sacrificial, Anaïs “queria parir Henry Miller”, o escritor. Para tanto sustentou-o com dinheiro e elogios. Infelizmente, o talento de Miller era mais modesto que o seu ego e o parto conheceu algumas complicações. À medida que a possibilidade de uma vida em conjunto se esfumava, a crença fanática de Anaïs nos méritos de Miller deu lugar ao cepticismo condescendente. Anaïs tinha conseguido dar à luz uma criança que nunca deixaria de o ser: egoísta e fascinada com a descoberta das partes íntimas.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:06
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Beloved

 

Há bandas que procuram a canção pop perfeita. Os romancistas norte-americanos procuram o grande romance americano. O Santo Graal das letras americanas teria de ser um grande fresco de toda a história americana; mítico mas que projectasse o homem comum; exemplar dos valores americanos, inspirador e escrito na língua telúrica das pedras e da paisagem, a língua de Whitman, de Twain e de Faulkner. Um romance onde coubesse toda a América, um romance que fosse a América.

 

Por esse motivo, pode parecer estranho que um livro escrito por uma mulher negra, sobre a vida de uma escrava e da sua luta para se reconstruir em liberdade, que decorre em meados do século XIX, seja talvez o mais próximo que os escritores americanos estiveram daquele grande romance. É o relato de uma experiência minoritária, sobre uma das páginas negras da história americana e, no entanto, Beloved ultrapassa claramente esses limites. Em vez da construção épica de um país, temos a história de Sethe, mulher, negra e escrava em fuga de uma plantação, Sweet Home, rumo à liberdade. Privado de desejos e vontade própria, o escravo não tinha autorização para se apegar aos seus porque nada lhe pertencia. O seu corpo, animalizado, brutalizado e violado, não lhe pertencia. Para não sofrer mais, o escravo nem sequer se podia afeiçoar aos filhos, porque “não valia a pena memorizar feições que nunca veria transformarem-se em adultas”, “assim protegíamo-nos e amávamos pouco”. Para o escravo, a liberdade era mais do que a carta de alforria, o soldo pago pelo suor do rosto, era “chegar a um lugar onde se podia amar tudo aquilo que se escolhesse - sem precisar da autorização para o desejo”. Quando Sethe se vê novamente sob a ameaça de perder o que conquistou com a fuga, recusa-se a aceitar que os filhos voltem para o lugar escuro de onde escaparam e degola a própria filha. E o que é mais chocante no sacrifício é a necessidade que subjaz ao acto aparentemente tresloucado. Tal como Abraão ouve a voz de Deus e não hesita em sacrificar o seu único filho, Sethe está disposta a matar os filhos para os poupar à não-vida da escravidão. O que parece loucura é, afinal, amor. Depois de conhecer a liberdade, Sethe não quer que os filhos sintam na pele a mesma árvore de carne viva que ela carrega às costas. A memória do sofrimento não se cinge às cicatrizes físicas. Beloved é também uma história de fantasmas que não se podem esquecer (o fantasma da criança morta assombra a casa de Sethe e encarna nessa criatura vinda de lado nenhum que se chama Beloved), de passados que não se podem exorcizar.

 

O Nobel que Toni Morrison recebeu deve-se sobretudo a este seu quinto romance, publicado em 1987. E o lugar de Beloved na galeria dos grandes romances americanos releva da sua ressonância bíblica, que lhe confere o carácter mítico, e do poder evocativo da tradição oral, que lhe garante a força telúrica e o enraizamento popular. É a história da libertação de um povo e do sangue derramado nesse caminho. É sobretudo a história de uma mulher e do seu êxodo particular rumo à Terra Prometida que cada ser humano livre traz no seu coração.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:05
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Balas de prata

Narcotráfico, violência urbana e corrupção: a realidade mexicana oferece a dose certa de ingredientes para um bom romance policial. Talvez lhe falte um Rubem Fonseca. Embora menos visceral do que o escritor brasileiro, Élmer Mendoza (n. 1949) consegue, com mestria, trazer aqueles elementos para a literatura. Edgar, o Canhoto, Mendieta, o anti-herói do romance, é um polícia que detesta policiais. É compreensível. Enquanto que nos maus romances do género há sempre um crime que liberta o caos e um detective que, ao descobrir a verdade, repõe a ordem, em Balas de Prata o detective é uma peça do caos. Mendieta não tem ilusões. “Não acredito que me tenha feito polícia para proteger os fracos e fazer justiça; queria ganhar dinheiro e sair daqui o mais rápido possivel. Contudo ficaste. Uma pessoa acostuma-se a tudo” (pp. 12-13). A vida desarrumada de Mendieta é moldada pela inércia. Uma desarrumação na qual se pode encontrar um sentido heróico a posteriori. A incorruptibilidade de Mendieta não é de natureza ética. É meramente circunstancial. Tornou-se inimigo de quem poderia enriquecê-lo e abandonou a Brigada de Narcóticos, abdicando dessa forma “da riqueza fácil e expedita” (p. 70). Quando recusa um suborno, Mendieta não o faz em nome da virtude, mas em nome do desprendimento que o leva a dizer que “não há nada que deseje tanto como ver esta vida acabada” (p. 129). Existirá virtude na imobilidade? Élmer Mendoza escolheu para epígrafe uma frase de Einstein: “Não é por causa dos homens que fazem o mal, mas dos que ficam sentados a ver o que acontece que a vida é perigosa”. Edgar Mendieta combina a inércia dos desiludidos (“Os culpados é que me descobrem a mim” p. 99) com a atitude provocadora do homem que nada tem a perder, que o escritor James Baldwin definia como “a criação mais perigosa de qualquer sociedade”. Por causa do abuso de que foi vítima na infância e das feridas recentes de um amor falhado, a coragem de Mendieta está despida de qualquer idealismo. O seu anti-heroísmo é feito de obstinação trágica. Aos poderes que o tentam “arrumar”, pôr na ordem, responde com a recusa em desimpedir o caminho. Estar parado pode ser um acto de resistência. Por esse motivo, Mendieta é um perigo para esses poderes que afronta, o narcotráfico e a corrupção instalada, e um perigo ainda maior para ele próprio.

 

O policial pede a frase curta, ir direito ao assunto. Na escrita de Élmer Mendoza, os cortes sucessivos, como na montagem televisiva, e a referência telegráfica aos espaços e aos ambientes (Sala de Espera. Clarabóia. Silêncio. Penumbra) não servem apenas uma economia descritiva; plasmam o ritmo acelerado da cidade e intensificam os perigos da investigação. Embora dentro das regras e (alguns) clichés do género (crime, investigação, desfecho, sexo, violência, mulheres fatais), Balas de Prata não se reduz a um policial de intriga escorreita e final tranquilizador. A descoberta da verdade e a punição, à margem da lei, do culpado não têm um efeito terapêutico. Resolve-se o caso mas não o caos. Porque a ordem é o grande engano do poder, mas isso é outra história.

 

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:05
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Errata: revisões de uma vida

Pode um crítico literário, ensaísta e professor de literatura comparada em Oxford ser uma celebridade fora dos círculos académicos? Pode, mas convém que se chame George Steiner. Nos tempos da celebração do efémero, a sabedoria livresca de Steiner (n. 1929) é, paradoxalmente, a razão do seu reconhecimento. A sociedade que pressente a importância dos clássicos, mas que não tem tempo para os ler, precisa de um sábio de outras eras que se dedique a essa tarefa, que seja o guardião da sabedoria universal. Os seus leitores, mesmo os de uma obra tão exigente como Antígonas, viajam a reboque pela cultura ocidental, deslumbrados com as pontes entre Homero e Shakespeare, entre Sófocles e os grandes romancistas russos do século XIX. A resposta da academia a esta erudição monumental com uma veia pedagógica balançou entre a condescendência e o menosprezo. Para os micro-especialistas, pós-doutorados com teses sobre os cavaleiros do lago de Paladru, a dispersão apaixonada de Steiner, o temerário desafio de se lançar aos grandes “titãs”, são encarados como diletantismo inconsequente ou exibicionismo pedante. Errata: revisões de uma vida, sendo uma súmula dos “vícios” e “virtudes” intelectuais do autor, é também, por esse motivo, uma resposta aos seus detractores. Mais do que uma autobiografia, é um ensaio com “gatilhos” autobiográficos. Steiner nunca se expõe e contorna sem esforço as incursões ostensivas na intimidade. Em que outra autobiografia poderíamos encontrar um capítulo consagrado ao mistério da música, onde Steiner conclui, entre o fascínio e a decepção, que “face à música, as maravilhas da linguagem são também as suas frustrações” (p.83)? É como se a máscara pública de Steiner escondesse uma réplica idêntica, com a qual partilha o nome e as perplexidades. Em Errata, Steiner volta a questões como o convívio aparentemente contraditório entre a alta cultura e a barbárie ou os limites da linguagem para circunscrever todos os fenómenos da experiência humana, que já aprofundara nos seus ensaios sobre o Holocausto e que são indissociáveis da sua condição judaica. Filho de judeus austríacos que, prevendo os tempos sombrios que se aproximavam, emigraram para França, Steiner foi educado no ambiente do judaísmo secularizado. É essa a origem da “reverência hipertrofiada pelos clássicos”, do multilinguismo e da submissão do impulso criador à hermenêutica, características sem as quais a sua obra e a sua “persona” não são concebíveis. O conservadorismo clássico de Steiner e a sua rejeição veemente do pós-modernismo e do “caos relativista” implicaram, por outro lado, uma cegueira obtusa perante expressões artísticas modernas, como o cinema ou a música popular. Entre várias lamentações – uma especialidade judaica – Steiner assume, porém, a sua devoção aos clássicos e ao ensino, a sua verdadeira vocação. Até na autobiografia, um género mais propenso ao memorialismo ou à romantização, a vontade de partilhar significados e o prazer de ensinar sobrepõem-se ao resto. É isso que faz de George Steiner, mais do que uma celebridade académica, um mestre no sentido clássico da palavra.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:04
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Barroco Tropical

Aldous Huxley escreveu que “um livro sobre o futuro não pode interessar-nos, a não ser que as suas profecias tenham a aparência de coisas cuja realização se pode conceber”. Barroco Tropical, sétimo romance do angolano José Eduardo Agualusa, não corre o risco de não nos interessar porque para conceber o futuro imaginado pelo escritor basta saber um pouco sobre o presente de Angola. A acção decorre no ano de 2020, em Luanda, mas ao longo das 339 páginas do livro, Agualusa mantém o leitor em 2009. A culpa talvez seja de um país onde, como diz um dos personagens, “até o futuro é arcaico”. O oxímoro, e não há escassez de oxímoros no livro, capta a essência contraditória da sociedade angolana. Opulência e miséria, tradição e futuro, realidade e ficção são elementos que, ao invés de se anularem, se potenciam. Do oxímoro à hipérbole, a figura de estilo do barroco, é um pequeno passo. Um excesso que Agualusa não desaproveita, nem sempre com os melhores resultados. Os bons contadores de histórias, e Agualusa é dos melhores da nossa língua, têm uma fraqueza: desperdiçar uma história é um acto contranatura. Sobram personagens excessivos em Barroco Tropical, um mal ampliado pela estrutura do livro que tem um capítulo dedicado à apresentação dos personagens secundários. Mesmo com uma epígrafe que se socorre da compreensão metaliterária do leitor, o capítulo 3 não deixa de ser uma solução que expõe demasiado a estrutura. São 40 páginas em que o “engenheiro” substitui o romancista ou, para recorrer a uma imagem do livro, em que a lagarta irrompe da borboleta. O escritor parece não ter resistido quer à própria imaginação, quer “ao alfobre de personagens insólitos” que é Luanda. Quando se olha a realidade de fora, e o olhar de Agualusa sobre Angola é o de um “estrangeirado”, tem-se a virtude de ver o que os outros não vêem. Por outro lado, o olhar exterior pode ser afectado pela “síndrome do turista”, que consiste no fascínio pueril pelo pitoresco e pelo superficial. O observador perspicaz pode tornar-se o guia de uma visita à Disneylândia do Terceiro Mundo, com os seus pobres, os seus curandeiros e os seus Ratos Mickey. É o principal risco de se descrever uma sociedade em que o absurdo invade o quotidiano ao ponto de não se distinguirem. Um risco presente desde o início do romance em que, numa inversão gravítica do episódio mais célebre do “realismo mágico”, uma mulher cai do céu. Esta profusão tropical de personagens e situações é temperada pelo estilo enxuto de Agualusa. A linguagem é sóbria, à procura da palavra certa, e evita exibições grandiloquentes de virtuosismo que transformariam o livro num pleonasmo de barroco, um exagero exagerado. O facto de o narrador principal ser um escritor permite o recurso a artifícios como as reflexões sobre a estrutura do romance, os apartes etimológicos e as referências a outros escritores (Coetzee, Manoel de Barros, Augusto Monterroso e até uma piada sobre Paulo Coelho), que apelam ao leitor mais cínico. Livro sobre o futuro de Angola, Barroco Tropical é também, implicitamente, um livro sobre o futuro da língua portuguesa. A escrita de José Eduardo Agualusa, que se desloca com elegância entre as diferentes variantes do idioma, navega esse futuro que se pode designar de “português transatlântico”.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:03
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Em busca da identidade

Vivemos em Democracia mas não vivemos a democracia no dia-a-dia, no exercício das nossas liberdades, na rejeição das pequenas tiranias que nos sufocam e paralisam. Aceitamos tudo porque só assim nos podemos queixar de tudo. São essas as nossas armas: a queixa, a inveja e a arte de viver nas fendas que é o chico-espertismo. “Em Busca da Identidade – o desnorte”, o filósofo José Gil atribui à doença da identidade, ao excesso de identidade, a nossa paralisia social e cívica. “Somos portugueses antes de sermos homens” (p.10) e o peso dessa identidade afecta os percursos individuais e degrada o espaço público. O excesso de identidade conforta e imobiliza, somos o que somos e isso desculpa-nos, exime-nos do debate, protege-nos do conflito e empurra-nos para o queixume. Transferindo “mecanismos psicanalíticos para o colectivo”, José Gil detecta traços neuróticos nos portugueses durante o Estado Novo como, e cita Ferenczi, “a atenuação do sentimento de responsabilidade”, “o adiamento de todas as acções” e “a crença na realização das ideias só porque são pensadas”. Estes traços permanecem no português do pós-25 de Abril como estratégia de sobrevivência, de adaptação a uma realidade que não era imediatamente dada, que tinha de ser construída. A liberdade colocou problemas de identidade, que levaram a que os portugueses se refugiassem em “antigos moldes que forneciam segurança e paz interior”. Décadas de salazarismo não só afastaram os portugueses do espaço público de debate mas também criaram uma identidade avessa ao conflito e à discussão. A identidade do português não estava preparada para a realidade democrática, para o exercício da cidadania, para a expressão livre. Para José Gil, este conflito entre a identidade e a realidade explica “a nossa dificuldade actual em nos desviarmos de uma via única”. É a nostalgia da ordem salazarista, de um sossego existencial característico dos regimes ditatoriais, de uma paz claustrofóbica que vai respirando pelo tubo do “queixume delirante”. José Gil desmonta a retórica da “via única” do primeiro-ministro José Sócrates, do discurso reformista que, quando embate com a realidade, prefere a cosmética à transformação dessa realidade. É a institucionalização do chico-espertismo. As tácticas de sobrevivência quotidiana que constam do manual do chico-esperto são, enfim, consagradas pelo próprio Estado. A vontade de mudança permanece como “aspiração flutuante”, impossível de satisfazer, enquanto que, na prática, prevalecem truques como o estudo da OCDE que não era da OCDE. A propaganda da “via única” também procura contornar o conflito ou, quando ele é inegável, desinscrevê-lo do real. A atitude do governo relativamente à contestação dos professores é disso o melhor exemplo. Reconhece-se o direito à manifestação mas retira-se-lhe qualquer significado político, como se 120.000 professores, zombies ou couves fossem a mesma não-coisa. “Assim começa a interiorização da obediência” no país do respeitinho, onde, como afirma José Gil, “estamos ainda longe de praticar a democracia”.

 

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publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:01
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Estrela Distante

Sempre que aparece um escritor latino-americano a tendência é saber se é filho de Borges ou de García Marquez. Recorrendo à feliz formulação de José Eduardo Agualusa, trata-se de saber se o autor vem da biblioteca ou da bananeira. Se o símbolo heráldico é o tigre mental de Borges ou o papagaio festivo do realismo mágico. Estes eucaliptos literários confinaram a possibilidade de se discutir a literatura latino-americana aos limites das respectivas obras, como se antes deles nada houvesse e como se depois deles nada de novo pudesse surgir. O chileno Roberto Bolaño (1953-2003) não escapou ao processo de filiação e, após testes de ADN, confirmou-se: Bolaño era da família literária de Borges. Em Estrela Distante, publicado em 1996, há referências explícitas a Borges e, ainda mais frequentes, alusões ao que designamos de universo borgesiano: mapas, duplos, xadrez, filologia, conjecturas e bibliografias falsas. Mas a família de Bolaño é mais alargada e nela cabem Cortázar, Perec, Calvino e o grupo OuLiPo. Aos exercícios de erudição (na mesma página fala-se de Nicanor Parra, Sylvia Plath e Elizabeth Bishop) junta-se o aspecto lúdico, pós-moderno, que se equilibra entre a paródia e o absurdo (no que lembra Gómez de la Serna). A acção do livro inicia-se nas vésperas do golpe que derrubou Allende e acompanha um grupo de jovens estudantes e poetas. Desse grupo fazem parte o narrador e um autodidacta, Alberto Ruiz-Tagle, um corpo estranho de pragmatismo num meio de entusiasmados com a literatura e com a política. Após o golpe de Pinochet, a repressão atinge os membros do grupo. Alguns desaparecem, outros são presos e o enigmático Ruiz-Tagle reaparece como Carlos Wieder, um piloto da Força Aérea chilena, que escreve poemas e versículos bíblicos nos céus de Santiago. Wieder é também o responsável pela morte de alguns dos antigos companheiros. Na última parte, já nos anos 90, o livro adquire contornos de policial em que um detective é pago para encontrar Wieder. Desta forma, Bolaño junta “alta” e “baixa” cultura, o erudito e o popular. Ruiz-Tagle/Wieder é o elemento central do livro. Como é sugerido desde o início, com a comparação entre a sua casa e a casa dos vizinhos satânicos do filme A Semente do Diabo, Wieder é uma encarnação do Mal, uma espécie de anti-consciência negra do regime de Pinochet. É um sádico para quem a arte é meramente funcional e utilitária. A sua poesia megalómana na forma e pobre no conteúdo seria a emanação artística e involuntária da essência da ditadura, uma espécie de braço artístico do regime. Estrela Distante pode ser visto como uma ponte de passagem entre o Bolaño poeta e da narrativa curta para o romancista atípico que alcançou a consagração com Os Detectives Selvagens e com o póstumo, ainda por publicar em Portugal, 2666. É este papel de transição que desculpa o excesso de digressões eruditas e lúdicas que parecem ter sido escritas mais para ajudar o escritor a suportar os rigores do ofício do que para acrescentar valor à narrativa. Estrela Distante vale como exercício de aquecimento para os romances que se seguiram.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 00:59
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Órfãos do Eldorado

A novela Órfãos do Eldorado é a continuação por outros meios das obsessões do escritor brasileiro de ascendência libanesa Milton Hatoum (n. 1952). Em três romances (Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte), todos distinguidos com o prestigiado Prémio Jabuti, Hatoum delimitou um território privado na ficção brasileira. No cenário físico da Amazónia e no cenário cultural da comunidade de emigrantes libaneses, construiu um mundo de estranhos num local estranho. Com estas coordenadas geográficas e culturais, o leitor incauto pode entrar na obra de Hatoum à procura de tucanos e velhos patriarcas orientais a fumar narguilé. Sairá desiludido. Não que os não haja, mas Hatoum não se deixa prender pelas armadilhas do exotismo amazónico e de um certo oriente idealizado. Os conflitos familiares e os mitos que os envolvem são o seu tema. Através de uma linguagem escorreita e de um conceito clássico de narrativa, Hatoum resgata as suas personagens do pântano do exótico e coloca-os no palco dos temas universais. É isso que acontece em Órfãos do Eldorado, novela que foi convidado a escrever para incluir na colecção Mitos. Respeitando a dinâmica narrativa da novela, o autor integra o mito do Eldorado na história da ascensão e queda da família Cordovil, na primeira metade do Século XX. É a história clássica de um pai “forte” que constrói fortuna e reputação e de um filho fraco que deita tudo a perder. O que lhe confere a aura de tragédia é o facto de o pai ser, de várias maneiras, o responsável pela “fraqueza” do filho. Culpa-o pela morte da mãe (“Tua mãe te pariu e morreu”), entrega-o para ser criado no meio dos mitos que lhe inflamam a imaginação e que acabam por lhe moldar o carácter errático e, sem que o saiba, coloca no caminho do filho a mulher que será a causa da sua perdição. À boa maneira grega, é no caminho para a glória que se lançam as sementes da desgraça. Hatoum semeia presságios (“vais morrer afogado”; “ela não vai ser tua mulher”; vais voltar com o demónio no coração”), carrega os nomes de simbolismo (Arminto, Amando, Edílio, Azário) e incorpora subtilmente mitos de outras paragens. O Eldorado real, o barco do qual depende a fortuna dos Cordovil, naufraga porque o comandante se desvia da rota para ir ver uma amante, talvez atraído pelo canto da sereia. A teia narrativa é arquitectada pela memória do narrador, o filho pródigo Arminto. Com este recurso, Hatoum trabalha uma vez mais a questão da memória enquanto alicerce da sua obra ficcional e, mais importante, dá à novela uma ambiguidade que enriquece a leitura. Contada pelo homem que a viveu e que é considerado louco, a história funde-se com o seu narrador numa amálgama de realidade e de lenda. Órfãos é um transplante bem sucedido para os limites da novela de um universo que, até agora, Hatoum apenas explorara em romances. O maior mérito, porém, não é a coerência, uma característica que pode justificar os mais entediantes monumentos. Hatoum não faz mais do mesmo. Aprofunda e refina aquilo que o distingue: retratos de família universais com a Amazónia em fundo.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 00:58
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Norte

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) continua a ser um nome controverso na história da literatura do séc. XX. Formado em Medicina, conquistou a celebridade literária com o primeiro romance (Viagem ao Fim da Noite, 1932), uma obra em que a sua experiência pessoal durante a I Guerra e nos anos seguintes foi transferida para o narrador, o seu alter-ego Ferdinand Bardamu. Escrito num estilo próximo da oralidade, inovando no recurso ao calão e a neologismos, o livro teve a bênção simultânea da crítica e do público. O segundo romance, Morte a Crédito, publicado em 1936, não teve o mesmo sucesso. Mas foram os panfletos anti-semitas e a colaboração com a Alemanha nazi que lançaram sobre Céline o anátema de escritor maldito que perdura até hoje.

 

Em 1944, a libertação da França pelas tropas aliadas obrigou-o a procurar refúgio na Alemanha. 2ª parte de uma trilogia que inclui os romances Castelos Perigosos e Rigodon, Norte é o relato dessa viagem ao fim da noite alemã. Acompanhado pela mulher, pelo gato e por um amigo, Céline relata sem ilusões a sua condição de refugiado e de colaboracionista. A traição à pátria obriga-o a partilhar o destino de uma Alemanha derrotada sem o consolo moral de ser alemão: “Somos malditos em toda a parte”; “só queriam uma coisa, ver-se livres de nós”. Apesar da desconfiança com que são recebidos, apesar das privações e das indignidades sofridas, para Céline tudo é preferível a ter ficado em Paris: “Quando as hienas vêm atrás de nós, saltar para a boca do lobo é apesar de tudo uma pequena vingança...”. A lucidez com que avalia a sua situação é a mesma que utiliza para descrever o que era então uma sociedade à beira do colapso. Céline compõe um quadro onde, num contexto de destruição geral, as intrigas palacianas, as depravações sexuais, as denúncias fúteis e as burlescas sessões de cartomancia de aristocratas desesperados formam um conjunto de coerência absurda, como na estranha lógica de um pesadelo ou de uma alucinação. Como no resto da sua obra, Céline aproxima uma lupa das suas personagens, expondo com a mesma precisão clínica a decadência física e a corrupção moral. O resultado é a humanidade retratada sem piedade num tom que vai do grotesco ao humor negro.

 

Por tudo isto, e apesar da narração na primeira pessoa e da persona do autor, Norte não é um panfleto em que um pária vocifera as suas memórias. Norte é um romance. É o autor, e não o homem, que se revela nestas páginas. O seu estilo recria os ritmos do discurso oral, não o transcreve. As imprecações e o calão, as onomatopeias e as reticências não são, ao contrário do que convém à lenda satânica, ejaculações de ódio de um louco anti-semita. São as ferramentas de um escritor para dominar uma locomotiva que apenas não segue os carris académicos. A música celineana não é uma melodia agradável. É uma sinfonia através da qual o escritor exorciza o ódio pelo qual ainda hoje é julgado.

 

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publicado por Bruno Vieira Amaral às 00:57
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