Quarta-feira, 20 De Abril,2011

Um Encontro

A componente ensaística dos romances do escritor checo Milan Kundera é uma das suas imagens de marca. Dentro de cada romance é possível encontrar pedaços de ensaios sobre história, filosofia, música e literatura. Kundera sempre teve mais a dizer do que aquilo que é esperado de uma ficção convencional. A veia de ensaísta expressou-se de forma cabal em A Arte do Romance, publicado em 1984, uma reflexão sobre a história e as possibilidades do romance. Neste Um Encontro, conjunto de ensaios sobre os seus temas de sempre, Kundera também reflecte sobre a arte do romance. Numa carta publicada no Los Angeles Times, em 1998, e dedicada ao aniversariante Carlos Fuentes, o romancista checo expõe, em poucas linhas, a sua crença na arte do romance enquanto modelo narrativo, salientando que a evolução do romance “pós-proustiano” teve dois epicentros: um, durante os anos vinte e trinta, na Europa Central (Kafka, Musil, Broch); outro, dos anos cinquenta aos setenta, na América Latina (Rulfo, Carpentier, Vargas Llosa, García Márquez). Esta constatação simples significa que o romance, ao contrário do que defendiam as teorias vanguardistas, não esgotara as suas possibilidades e não estava definitivamente ultrapassado. A evolução do romance passava por outras latitudes, por sociedades noutras fases de desenvolvimento histórico, por países que conheciam situações políticas muito distintas das do eixo Paris-Nova Iorque. No entanto, esta reinvenção do romance também teve o seu auge e confrontou-se com os seus limites. É essa a conclusão do curto ensaio O Romance e a Procriação, no qual Kundera aponta a coincidência de os protagonistas dos grandes romances não terem filhos (Pantagruel, Dom Quixote, Tom Jones, Werther) e estabelece uma comparação com esse festival de procriação que é Cem Anos de Solidão: “o centro de atenção já não é um indivíduo, mas uma sucessão de indivíduos.” Para Kundera, “este romance, que é uma apoteose da arte do romance, é ao mesmo tempo um adeus à era do romance.”

 

Os ensaios sobre romances (Dostoievski, Céline, Philip Roth, Juan Goytisolo) são meros pretextos para que o escritor reflicta sobre temas recorrentes na sua própria obra: o riso, o envelhecimento, o erotismo, a memória, o exílio. Esse é o ponto mais interessante destes ensaios, porque se trata de um diálogo entre criadores, e não de uma leitura exclusivamente teórica. Algo que também é válido quando Kundera dirige a sua sensibilidade para outras áreas da criação artística (pintura, música e cinema).

publicado por Bruno Vieira Amaral às 23:57
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Pássaros na Boca

Samanta Schweblin é apresentada como uma das grandes promessas da literatura latino-americana. Pássaros na Boca, colectânea de alguns dos seus melhores contos, ajuda a perceber a razão do entusiasmo. O território destes contos é familiar. Tal como acontece nos contos do seu compatriota Julio Cortázar, Schweblin introduz elementos fantásticos nas suas descrições realistas do quotidiano, produzindo um efeito de choque que não teria o mesmo impacto se a atmosfera fosse nitidamente sobrenatural. As súbitas alterações no enredo, os acontecimentos repentinos que surpreendem o leitor obrigando-o a pôr em causa o que leu, funcionam como pequenos sismos de absurdo que abalam as certezas das personagens. O protagonista de O Cavador, que ao arrendar uma casa fica a saber que tem ao seu serviço um homem cuja única função é a de cavar um buraco, é um exemplo da forma estranha como as personagens integram o insólito nas suas experiências: como se o mundo fosse assim desde o início. Mas o melhor exemplo é o do conto que dá o título ao livro. Pássaros na Boca é a história de um pai divorciado que descobre que a filha desenvolveu o hábito de comer pássaros vivos. Esse hábito incomum é rapidamente incorporado na rotina daquela família. Por outro lado, os rituais, as tarefas rotineiras e sistemáticas, são expostos como comportamentos maníacos através dos quais as personagens procuram compensar a falta de sanidade. No conto A Medida das Coisas, o protagonista encontra-se num processo de regressão para a infância. O seu trabalho numa loja de brinquedos consiste em organizar a disposição destes por critérios cromáticos. As vendas da loja disparam. Ao mesmo tempo, Enrique é obsessivo no cumprimento de tarefas básicas e não se cansa de repetir “já fiz a cama” ou “acabei de varrer.” É no seu comportamento normal que Enrique revela as suas perturbações, provocadas, neste caso, por uma mãe dominadora e autoritária. Em vários contos, os desequilíbrios familiares são o tema central: Conservas – história de uma gravidez ao contrário – e O Meu Irmão Walter – sobre um deprimido crónico que é o talismã da felicidade do resto da família são, nesse aspecto, os mais conseguidos.

 

Mesmo quando se aproximam do realismo urbano (Matar um Cão), as atmosferas criadas por Schweblin nunca deixam de ser inquietantes, quer pelo grau de violência (Cabeças Contra o Asfalto), quer pelo manejo perfeito do suspense e até do terror (Na Estepe). Entre o onírico e a capacidade cirúrgica de desconstruir o real, Samanta Schweblin é uma voz forte e autêntica do novo panorama literário latino-americano.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 23:54
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A Guerra do Fim do Mundo

O romance está morto. O narrador omnisciente é uma antiguidade novecentista, uma fraude. Estas teorias, que atingiram o auge da popularidade nos anos sessenta, nem sequer arranham as paredes da fortaleza clássica que é A Guerra do Fim do Mundo. Publicada em 1982, a obra de Mario Vargas Llosa ignora essas discussões teóricas, remetendo-as para o baú das excentricidades intelectuais que marcam o declínio da cultura francesa. Perante este romance, o nouveau roman, os exercícios literários sem personagens e sem intriga, dissolvem-se no ar, esfumam-se, inexistem.

 

A Guerra do Fim do Mundo reconstitui acontecimentos históricos do final do século XIX, quando, numa pequena localidade do nordeste brasileiro, Canudos, uma seita milenarista, liderada pelo profeta António Conselheiro, desafiou o poder da então jovem república brasileira. Os fanáticos, um grupo heterogéneo composto por ex-cangaceiros e jagunços, beatos e pobres, rejeitavam medidas políticas como o casamento civil, o sistema métrico, os recenseamentos e os impostos. Acreditavam que, quando fossem atacados pelas autoridades, D. Sebastião e o seu exército viriam em seu socorro. No meio da disputa entre republicanos e monárquicos, o movimento religioso de Canudos tão incompreensível fora da grelha política tradicional que era impossível acreditar que se tratasse de um movimento popular, espontâneo e místico. Os republicanos viam-no como uma manobra dos fazendeiros da Baía, dos adversários do novo regime e dos ingleses. Só essa incapacidade para compreender as motivações de um inimigo que não temia a morte explica que as primeiras três expedições enviadas pelo exército tenham sido derrotadas por camponeses munidos de alguma artilharia, mas sobretudo de machetes, foices, paus, pedras e de uma convicção sobrenatural na natureza da sua missão.

 

Neste romance total, de uma estrutura narrativa impressionante, Vargas Llosa esquadrinha todas as dimensões da sociedade, dos pobres aos poderosos, da política à religião, da guerra à intimidade, da morte ao amor. Barões, criminosos, coronéis, padres, jornalistas, índios, revolucionários, comerciantes, mendigos, aberrações de circo: a humanidade no seu esplendor múltiplo, na sua interminável busca pela felicidade, pela justiça, pelo amor e guiada por ideais tão diversos quanto Deus, a República ou a Justiça, por valores, como a honra, e impulsos, como o desejo primitivo, que transcendem todas as barreiras sociais. A grandeza deste livro só se percebe se dissermos que é um dos maiores romances do século XIX.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 23:52
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