Segunda-feira, 04 De Julho,2011

Da Decadência da Arte de Mentir e Outros Textos

O lugar cimeiro de Mark Twain nas letras americanas deve-se sobretudo aos romances As Aventuras de Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn, mas para a fama e proveito de que beneficiou em vida muito contribuíram as inúmeras conferências e palestras em que participou. Algumas fazem parte deste pequeno volume e refletem com fidelidade a inteligência, o humor e a capacidade de observação de Twain. O breve discurso sobre o tempo proferido na New England Society é de antologia. A frase inicial, que revela o talento de Twain para a frase curta e lapidar, obteria o primeiro lugar em qualquer campeonato de citações sobre o assunto: “Acredito sinceramente que o Criador faz tudo em Nova Inglaterra excepto o tempo.” Prossegue com um exemplo da modernidade do seu humor: “Não sei quem o faz, mas estou convencido de que devem ser aprendizes inexperientes da fábrica do tempo que vão para Nova Inglaterra realizar experiências e aprender o ofício em troca de cama, mesa e roupa lavada e que depois são promovidos e fazem o tempo para países exigentes que, se o produto não lhes agradar, vão encomendar a outro sítio.” A conclusão arrebatada demonstra a amplitude da pena de Twain, que vai da ironia ao lirismo em pouco espaço e aparentemente sem esforço. Já A História do Vendedor Ambulante é uma incursão hiperbólica no domínio do absurdo, mas que, mesmo assim, capta e caricatura os traços essenciais da personagem, um impensável vendedor de ecos. A mesma tendência para o absurdo e para o exagero, provavelmente partindo da experiência pessoal de Twain, verifica-se no texto que abre o livro, um diálogo de surdos entre um jovem entrevistador e um célebre entrevistado. Da Decadência da Arte de Mentir nem é o melhor dos textos aqui incluídos, mas é certamente o que tem o título mais sonoro. Não se espere uma defesa desenfreada e satânica da mentira. O discurso não é mais do que um elogio da mentira cortês e conveniente, “uma arte doce e adorável” que “devia ser cultivada.” A mentira de que Twain fala não é a mentira bíblica, mas a mentira suave e educada que, ao contrário da “verdade cruel”, possibilita e dulcifica a vida social. William Hazlitt e Baldassare Castiglione subscreveriam este pequeno tratado contra os excessos da sinceridade nas relações sociais. O texto em que a articulação entre arte narrativa e crítica social é mais harmoniosa é A Grande Revolução em Pitcairn, sátira a uma sociedade utópica, à demagogia dos iluminados e aos excessos da burocracia. Notas sobre Paris, que conclui o livro, brinca jovialmente com o pedantismo dos franceses, característica que basta para fazer de uma crónica qualquer um marco literário.  

publicado por Bruno Vieira Amaral às 09:47
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O Caderno Cinzento

Esta edição de O Caderno Cinzento, do catalão Josep Pla (1897-1981) é uma amostra da totalidade da obra. Das novecentas páginas do original foram seleccionadas pouco mais de duzentas, mas, não podendo jurar pela qualidade das restantes, arrisco dizer que se trata de um livro notável e que o editor não exagera quando diz que é “uma das obras imprescindíveis do século XX.” Escrito e apresentado como um diário da juventude, nos anos após a I Guerra, o autor trabalhou nele até um ano antes da sua publicação, em 1965. O resultado é um híbrido perfeito em que o detalhe do memorialista se une à maturidade do pensamento e do estilo. É provável que Pla tenha aproveitado muitas anotações da sua juventude, mas essa é apenas a base factual onde engasta reflexões originais, descrições melancólicas e críticas corrosivas. O registo diarístico tem outra vantagem: permite uma grande variedade de temas sem a solenidade de uns Pensamentos. O diarista é um observador casual, muitas vezes um flâneur, sem os espartilhos narrativos de um romancista e sem as obrigações morais do historiador, e que até se pode dar ao luxo diletante de questionar a utilidade do que escreve: “Penso durante um bom bocado neste caderno inútil.” (p. 143). É este desprendimento, e também a aparente dispersão caótica, que acaba por se revelar circular e sinfónica, que confere unidade ao livro e constitui a sua riqueza. Ao descrever um amigo, Pla diz que “é [...] um sinfónico, um espírito que integra uma infinidade de factos, emoções, alusões, sentimentos e referências” (p. 198) – dificilmente poderíamos encontrar uma definição mais acertada do autor deste livro. A Catalunha daquela época, as fábricas, os veraneios, as intrigas de província, os costumes, a educação, a gastronomia, a religião, a política, a literatura, raramente são apresentados de forma abstracta ou teórica, mas recorrendo a exemplos concretos: um bordel que só inspira tristeza, o fumo acre lançado pelas chaminés, a crítica ao poeta Jacint Verdaguer, a descrição de um funeral, uma sardinhada opípara, o arroz de peixe tão dominical quanto a missa, a apetência dos velhos pelo pão, o conflito latente entre germanófilos e francófilos que ameaça os rendimentos da avó Marieta, as tertúlias dos intelectuais de Barcelona. A par deste talento de etnógrafo, Pla demonstra uma segunda sensibilidade mais habilitada a registar as variações meteorológicas, as características de cada estação do ano, os estados de alma, os passeios inconsequentes, o tédio pessoano de aspirações vagas tão visível nestas passagens: “Queria estar em todo o lado e nunca saio de casa. Queria açambarcar tudo e, na realidade, tudo me é indiferente [...] Queria, queria...Queria o quê?” (p. 48); “Sinto-me uma larva que não acaba de se construir” (p. 84) ou “tudo é indiferente e igual” (p. 139). Na grande sinfonia que é O Caderno Cinzento há espaço para o bucólico e para o urbano, para os dias de Verão e para a chuva persistente, para o público e para o íntimo, e certamente para muito mais se nos lembrarmos que faltam aqui seiscentas páginas.

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publicado por Bruno Vieira Amaral às 09:46
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O Tesouro Escondido

A fé não é um lugar de conforto. É esta a lição que os crentes – pois é a eles que José Tolentino Mendonça se dirige – devem retirar deste livro e que o autor resume de forma feliz: “Não há parques de estacionamento espirituais” (p. 30). Mas se a fé implica movimento - “o modelo da Fé é um ancião que se torna viajante (p. 31) – desassossego, inquietação, Tolentino insta o crente a transcender-se através da oração, do silêncio e do recolhimento. Não é um desafio menor. Num mundo de ruído e de agitação, ir ao encontro de Deus na solidão e no silêncio é ir contra a corrente. Quanto Tolentino cita São João da Cruz - “a linguagem que Ele mais ouve é o amor calado” – propõe um confronto com a norma social, com o mundo. Para se aproximar de Deus, o crente deve, em primeiro lugar, encontrar-se consigo: “É precisamente quando estamos mais sós, quando somos mais nós próprios, sem subterfúgios nem evasões, que Deus se manifesta mais perto de nós” (p. 25). Vai no mesmo sentido a exaltação da oração, esse colocar-se despojado diante de Deus: “rezar é viver, com todas as nossas forças e com toda a nossa realidade, na presença de Deus.” (p. 79). A aceitação do catolicismo não-praticante transformou a prática cristã em mera mecânica, distante da experiência total em que o ser se vira para Deus. Tolentino defende uma ruptura com essa vivência religiosa invertebrada e morna que, em vez de aproximar, afasta o homem do divino.

 

Em nenhum outro episódio bíblico, a relação individual com Deus e a fé como lugar de desconforto está tão bem representada como na historia de Abraão e do sacrifício do seu filho, Isaac. Ao aceitar o desígnio de Deus, Abraão suspende toda a razão, toda a lógica, para se entregar à Razão divina, ao absoluto. É o gesto mais difícil de compreender para o descrente. O seu acto só é compreensível à luz de uma fé pura, total, que cega quem tenta apreendê-la com os olhos físicos: “A Fé em Deus sobrepõe-se a todas as convenções culturais e a todas as lógicas puramente humanas. A Fé é essa confiança pessoal colocada em Deus e que ultrapassa tudo.” (p. 37). Palavras que encontram eco no que Tolentino escreve sobre a conversão de Paulo: “Este ver não é apenas um observar com os olhos da carne; é o ser visto, é o passar a ver com os olhos da fé” (p. 111). Quando, através da fé, o homem se entrega à vontade divina, renuncia ao humano - desumaniza-se - para participar do absoluto (“amar a Deus com fé é reflectir-se no próprio Deus”, escreveu Kierkegaard). Quem não acredita está, por definição, impedido de aceder a tal mistério. Limita-se a observá-lo com “os olhos da carne”. A questão é saber quais os cristãos dispostos, não a emular Abraão, mas a aceitar o mistério de uma tal fé, a regressar a uma vivência espiritual mais pura, intensa e, de certa forma, primitiva. Num dos capítulos mais interessantes (VIII), o que começa por ser um apelo à reconciliação com a beleza, tema abordado por Bento XVI na visita a Lisboa, acaba como um regresso às raízes do catolicismo como religião do sofrimento. A beleza celebrada é aquela que fere, que não pode ser compreendida quando contemplada independentemente da dor que provoca e do sofrimento no qual se funda, que se materializa na imagem do Cristo crucificado, tão cara aos católicos. Tolentino cita Ratzinger que fala sobre a “ferida do Amor” e diz que a beleza da verdade só pode ser encontrada quando se aceita o sofrimento”; fala da Beleza de Cristo que “[nos] fere intimamente”; diz que “o nosso coração [...] é chamado a ser ferido pela Beleza pascal de Cristo”. Acrescenta: “O cristão define-se como alguém que vive “ferido” pela beleza singular de Jesus. E essa “ferida” gera em nós desejo, vontade, atracção, disponibilidade para o seguimento”. Partindo da beleza, o discurso de Tolentino segue em linha recta para o sofrimento. Um sofrimento prazeroso, o “cautério suave”, a “deleitosa chaga” cantados por São João da Cruz em Chama de Amor Viva. Do ponto de vista de Tolentino, a relação de Fé com Deus é uma relação de amante e amado, que pede, uma vez mais, o silêncio: “o que ama sabe que o que o amor lhe pede, antes de tudo, é que aprenda a guardar o segredo do que é amado” (p. 96). Aquele que ama Deus suspende a razão, quer participar da natureza divina do Outro (“Deus é infinitamente Outro”, escreve Tolentino, o Outro inantigível ao qual apenas se pode aspirar), sofre. Chegamos à conclusão que é o sofrimento, mais do que a beleza, que ocupa o lugar central na experiência cristã, tal como Ludwig Feuerbach demonstrou em A Essência do Cristianismo: “[u]ma determinação essencial do Deus feito-homem [...] é a paixão. O amor confirma-se pelo sofrimento”, “[s]e Deus como actus purus é o Deus da filosofia, por sua vez Cristo, o Deus dos cristãos, é a passio pura” ou “[a] religião cristã é a religião do sofrimento”.

 

Ao exortar o crente a um regresso à solidão, ao silêncio, à redescoberta do sentido profundo da oração, Tolentino não transige com a religiosidade postiça e maleável que transformou o catolicismo num albergue espanhol sem direito de admissão. A exigente práxis cristã implícita nas suas palavras é um desafio ao qual nem todos os católicos poderão corresponder. O Tesouro Escondido destina-se a crentes, é verdade, mas não a todos.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 09:45
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