Glória

O estilo, quando demasiado virtuoso, está sempre à beira de ganhar consciência e, como o monstro de Frankenstein, começar a obedecer aos seus próprios pensamentos. Vladimir Nabokov, um dos grandes estilistas da prosa (em russo e em inglês) do século XX, é um desses criadores em que, por vezes, o estilo parece ganhar vida própria, seguir um caminho autónomo e concentrar em si todas as atenções.

 

Glória, quinto dos nove romances russos de Nabokov escritos 1925 e 1937, é um veículo para o estilo do escritor. A história de Martin Edelweiss, um jovem russo que, juntamente com a mãe, foge do caos revolucionário da Rússia para a Suiça, é suficientemente elástica e indefinida para permitir a Nabokov uma série de exercícios verbais e técnicos que, aplicados a um enredo mais rígido, comprometeriam a sua solidez. O que temos aqui, porém, é um escritor a pedir boleia a uma personagem sem destino e a pegar no volante, para exibir a sua condução virtuosa, como se estivesse num test-drive das suas imensas capacidades descritivas. A personalidade de Martin, com os seus anseios vagos por uma glória pouco nítida, é um convite à entrada de um estilo vigoroso. Deve dizer-se, no entanto, que o estilo não empurra a personagem principal para fora do carro. Limita-se a tirar-lhe o volante das mãos. Os dois seguem juntos até ao fim.

 

Numa viagem de comboio em França, um homem, pensando que Martin é inglês, diz-lhe que os ingleses gostam de apostas e de records; Martin responde: “Sim, acertou no alvo. E no entanto, mesmo isso, mesmo le sport, não é tudo. Para além disso, há...como direi?...a glória, a ternura, o amor pela terra, mil sentimentos algo misteriosos.” Mas neste romance, le sport, se não é tudo, é fundamental. Há três momentos determinantes que representam não só as aproximações de Martin à glória, mas também a aproximação de Nabokov à glória verbal. Nas descrições de uma partida de ténis, de um jogo de futebol e de uma luta corpo a corpo, a precisão de cada movimento é transplantada para as páginas, autonomizando-se do fluxo narrativo, como aqui: “uma coordenação de todos os elementos que participam na pancada que se dá na bola branca de tal modo que o impulso iniciado com o movimento em arco ainda se prolonga após a vibração sonora das cordas tensas, passando, como passa, pelos músculos do braço até ao ombro, como a fechar o círculo suave de que, com a mesma suavidade, nasce o seguinte.” Nabokov, que anos mais tarde, em Lolita, haveria de regressar às brilhantes descrições tenísticas, faz aqui uma síntese da própria escrita como extensão do autor, movimentos que se encadeiam, suavemente, necessariamente, nos seguintes.

 

Outro dos principais traços do estilo de Nabokov é o investimento nos pormenores que constituem a filigrana do realismo. A dada altura, refere um escritor russo exilado em Berlim que, no meio de um desgosto, aproveita um pormenor da indumentária de Martin para uma personagem de um conto. Nabokov compara-o a “um hábil gatuno que seca as lágrimas com uma mão enquanto com a outra tira o relógio a um homem.” Esta é a essência dos escritores do detalhe, que em vez de de construirem suntuosos relógios de sala, divertem-se a roubar modestos relógios de bolso. Eis alguns dos relógios que o hábil gatuno Nabokov expõe neste livro: o tubo da pasta de dentes com “uma ranhura transversal, pelo que a pasta, ao ser espremida, deslizava para cima da escova não como uma minhoca, mas como uma fita”; um homem que escolhia peúgas que “garantissem decência por terem buracos no dedo gordo e não acima do calcanhar”; a mãe de Martin a meter-lhe os dedos dentro da gola “para ver se não estava muito suado depois das correrias”; “um cão malhado sentado no chão a coçar a orelha com a pata traseira”; “uma mosca doméstica com uma das pernas presa na cola da tira mata-moscas cor de mel afixada no rebordo de uma janela.” Nesta recriação da realidade, ou na criação do realismo, a abundância de pormenores ofusca o registo metafórico, por vezes descuidado: uma bétula é comparada, banalmente, a uma rapariga “que tivesse deixado pender o cabelo de um lado para ser penteada e tivesse ficado nessa posição” e um céu sem nuvens é comparado a uma “folha de papel de seda que por vezes reveste um frontispício excecionalmente vivo numa edição cara de contos de fadas”, imagem recuperada um pouco mais à frente, mas agora para descrever uma mulher: “Sobre ela, sobre aquele frontispício que, removido o papel de seda, se revelara um pouco grosseiro”.

 

Nas descrições obrigatoriamente rápidas e incisivas de personagens secundárias, Nabokov alia o pormenor à metáfora, numa técnica que consiste na justaposição de características contraditórias. Por exemplo: “Era um homenzinho velho e mirrado, com pezinhos de pombo e olhos vivos, um latinista, tradutor de Horácio e grande amante de ostras.” A solenidade do latinista e tradutor de Horácio oposta ao ridículo dos pezinhos de pombo e ao prosaísmo da preferência por ostras cria uma mistura improvável de sabores, como na cozinha de fusão, que é intensa por ser improvável. Uma técnica semelhante é aplicada a Iogolevitch, outro exilado russo, que depois de um discurso sério sobre execuções, fome e a maldade do regime, pergunta quanto é custam umas “kalochi (galochas) em Londres”. O escritor consegue dar, em poucas linhas e com um mínimo de informação, o máximo de vida às personagens.

 

Nabokov não se detém nos aspetos políticos do percurso instável de Martin. Quando pela primeira vez sente que é um exilado, “condenado a viver longe da sua terra”, eis o que o protagonista faz dessa perceção: “A palavra «exílio» tinha uma sonoridade deliciosa: Martin considerou o negrume da noite coniferina, sentiu nas faces uma palidez byrónica e viu-se de capa. [...] Foi como se Martin tivesse encontrado o tom certo para todos os sentimentos vagos, ternos e furiosos que o subjugavam.” O ambiente na Rússia revolucionária resume-se a isto: “um lado a combater pelo fantasma do passado, o outro pelo fantasma do futuro.” A questão do exílio, que seria a questão “social” do romance, é subjugada à ditadura sentimental de Martin, às suas paixões não concretizadas, ao seu desejo nebuloso de glória. E, neste romance, isso é credível porque (como Nabokov aponta no prefácio) Martin é incapaz de verbalizar as suas aspirações. Sente “uma insuportável intensificação de todos os sentidos, um impulso mágico e exigente, a presença de qualquer coisa, uma coisa por si só suficiente para que valha a pena viver”, mas que não sabe o que é, pois “vivia um estado de confusão íntima, e certas coisas despertavam nele sentimentos que ainda não compreendia bem.” Ele tem uma sensibilidade aguda mas não tem o talento para a exprimir. O narrador, como vimos, tem esse talento de sobra. Os dois, personagem e narrador, são o piloto e o navegador de uma aventura sem destino, rumo a uma glória pressentida. A estrela, essa, é o veículo: o estilo de Nabokov.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 14:22
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