Terça-feira, 26 De Fevereiro,2013

Uma Falsa Sensação de Segurança

Acredito que à medida que o tempo passa e nos afastamos irremediavelmente dos acontecimentos pode ser que estes percam nitidez e definição, culpa dos pormenores que vamos esquecendo, e adquiram, em compensação, um fulgor e uma renovada vividez, como uma árvore de folha caduca que, caídas as folhas, ganha uma majestade nua e límpida. É assim que vejo a viagem de comboio de há tantos anos, nas férias da Páscoa, eu e a minha avó a caminho de Montalvão, a aldeia aonde regressou meses antes de morrer. Em Santa Apolónia, apanhámos o comboio que nos levaria a Castelo de Vide. Não me recordo da semana que passámos em Montalvão, mas lembro-me da viagem: a paisagem até chegarmos a Vila Franca e a senhora sentada à nossa frente. Já a viagem ia a meio e sentimos um cheiro ácido, a lixívia morna. Incapaz de perguntar pela casa de banho e vendo que o comboio demorava a parar, a pobre senhora urinara ali mesmo. Já é de noite quando chegamos a Castelo de Vide. As poucas pessoas que saem connosco têm alguém à espera, de carro. A estação fica vazia. O silvo de ferro de animal mecânico e pesado afasta-se. Eu e a minha avó, ainda a segurar as malas, estamos à porta. A esta hora já não há camionetas para lado nenhum. Ficamos ali alguns minutos, rodeados de noite por todos os lados, a luz dos candeeiros insuficiente para nos sossegar. Somos duas criaturas vulneráveis. Na estrada em frente passa um carro. Suspiramos. Agora é apenas uma luz vermelha, cada vez mais ténue, até desaparecer numa curva. Regressamos ao interior da estação. A luz das lâmpadas fluorescentes fere a vista. Há um vago cheiro a ferro e urinol. Procuramos horários e números de telefone. Cedemos ao cansaço e sentamo-nos. De repente, sem o esperarmos, aparece o táxi que nos há-de levar a Montalvão, terra onde a minha avó nasceu e onde queria ser enterrada. A tensão desumana daquela curta espera fragilizara-nos ao ponto de a chegada inesperada do táxi nos ter emocionado e confortado. À medida que o carro avança pelas estradas ruins e estreitas, ladeadas de muros baixos de xisto, de oliveiras que se iluminam com a luz cega dos faróis para logo serem de novo tragadas pela escuridão, a trepidação do carro no asfalto remendado dá a impressão de nos deslocarmos a grande velocidade e o nosso conforto torna-se precário e por isso mais intenso, quando nos envolve, e mais desejado, quando por segundos é tragado pelas mesmas trevas que devoram as oliveiras. Para onde nos conduzirá este homem? A rádio dá notícias: tragédia num estádio inglês, muitos mortos. O condutor comenta a desgraça do mundo, lamenta que seja sempre assim, eu lembrei-me de outros mortos, noutro estádio, e a existência daquela tragédia exterior e longínqua aproxima-nos e apazigua-nos, o carro parece abrandar e é então que, depois de uma curva, se vêem os contornos nocturnos da aldeia da minha avó, as luzes das casas e das ruas, a imagem tão familiar e tão querida da torre da igreja e sabemos finalmente que vamos chegar bem. Devemos ter passado uma semana em Montalvão, aldeia em que a minha avó foi criança, mas foi tudo há muitos anos, não tenho a certeza de que tenha sido assim. Permanece a imagem da senhora sentada à nossa frente na carruagem, o cheiro adstringente a amoníaco, a chegada à estação de Castelo de Vide, eu e a minha avó, duas crianças com medo do escuro e das trovoadas, à espera de alguém que nos levasse pela mão através do escuro e das trovoadas até ao bom porto da nossa aldeia, os faróis a iluminar as oliveiras, a rádio a falar de mortos num país distante. Foi apenas isso que ficou: a majestade de uma árvore nua e límpida, que vejo hoje tão claramente como a vi há tantos anos, a silhueta familiar da nossa aldeia a aparecer-nos como um aconchego maternal no fim de um pesadelo, um lugar onde podemos enfim repousar e dormir, sabendo sempre, dolorosamente, que lá fora ainda é de noite, que uma criança e a avó ainda esperam à porta da estação, que tudo o que temos é uma falsa sensação de segurança.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 10:32
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Quarta-feira, 06 De Fevereiro,2013

O país do presidente

1.

Certa noite, levaram o presidente aos filmes. Dez minutos para o filme começar, irromperam uns macacos em fatos militares, uniformizados e despejaram a sala dizendo aos já pagantes que voltassem noutra sessão. Uns mais velhos gritaram, que o país estava perdido, outrora havia respeito pelos pobres e gente humilde, que era pouca vergonha, mas a ponta das espingardas assestada aos olhos tiraram-lhes ânimos protestativos e saíram dali derrotados para beber bicas nos cafés mortos da cidade. Na sala ficou só o presidente e a guarda pretoriana, todos pretos. O filme começou e o presidente, nem quarto de hora, achou tremenda merda e mandou chamar a gerência na pessoa de um sujeito fininho, amarelado, que noutros tempos teria sido intelectual, mas a quem uma inflamação crónica do intestino e uma gorda pusilanimidade política tinham empurrado para aquelas desdenhosas funções. “Senhor?” “Senhor, o caralho. Não dás para pôr outro filme?”. Que ia demorar, o projecionista estava na hora de jantar e enfim também só havia por ali filmes velhos, alguns carcomidos, incompletos, a banda sonora estragada, até a boa da actriz aparecia toda riscada, talvez noutro dia, com tempo e aviso prévio se pudesse preparar coisa à altura da majestade presidencial. Assim, era difícil. O Presidente sussurrou a um preto da guarda. “Onde está o danado?” “A jantar, senhor” “E janta aonde, o infeliz” “na cabina de projecção, senhor – mas é hora da refeição, senhor” Ainda ele falava já dois dos guardas se mandavam escadas acima rumo à cabina para surpreender o projeccionista a comer desgraçadamente de uma marmita uma esparguete fria com frango seco “Questa merda, caralho? Estou em comeres” “Estás, não, boi. Estás a levantar-te o cu e a pôr um filme para o presidente se apreciar.” “qual presidente, caralho?” O da guarda mais pequeno, nervoso, amigo do gatilho, limpava sarampos por dá cá aquela palha, destrancou logo a arma e não fosse as calmas do outro, mais velho, mais macaco, os miolos do projecionista bem que tinham ficado ali a anfeitar paredes, nomeadamente o cartaz de Casablanca, entre vários, o que teria sido infelicidade porque então o presidente ficava sem filme e miolos de ninguém lhe faziam falta nesta nocturna. “é preciso já um filme que o presidente goste ou vai haver merdas” o projecionista, Salomão, nome que lhe fora dado à pia, aprecebeu então que presidente era o que ali viera, e viu-se em fenomenais apertos e correrias, rezando avé-marias para os seus botões e correndo para trás e para diante, em grande espavento, dando ordens a ninguém porque ali, abaixo dele, ninguém havia e não havendo ninguém, não havia ninguém para lhe obedecer, posto que se viu em situação de cumprir as próprias ordens. Desencantou latas com as bobinas, e avisou, escusando-se, que montar o filme levava tempo, não muito, que ele tinha mãos as melhores do ofício, ainda assim, demorava. O guarda nervoso mantinha o dedo no gatilho, desejoso de pretextos, o outro disse-lhe que se desenrascasse, não era para demorar muito ou havia merdas. Lá em baixo, o presidente bufava e o gerente, cada vez mais diminuído, suava com abundâncias, o rosto alagado, as bochechas mordidas, a tripa que se lhe rebentava, estava prestes a desmaiar, não fosse o tremendo respeito à pátria na pessoa presidencial e a consideração das possibilidades futuras.

 

 

 

2. 

Ninguém era especializado em torturas, embora o mister fosse exercido com prazer, zelo e alegria por todos os incumbidos da tarefa. Ninguém se negava a fazê-lo e todos contribuam com sugestões que lhes vinham infantilmente do imaginar (mergulhar os pés em água fervente, apagar cigarros no escroto, enfiar agulhas nos ouvidos). Era tudo pouco profissional mas desempenhado com insuflado ânimo e a coisa funcionava assim, deixar-se estas coisas a amadores é decisão proveitosa pois não se gasta recursos em formações. Vez por outra, os excessos resultavam em mortes escusadas, enfim, danos colaterais, e lá ficava uma confissão por resultar, o que nem era grave porque as confissões geralmente tinham pouco valor, não eram verdade nenhuma, apenas a boca a pedir clemência, e porque o fim dos torturados era quase sempre o mesmo, falassem ou calassem, e mais morto menos morto, ninguém os contava, às famílias, se não se decidisse aplicar-lhes idêntica terapêutica, ninguém prestava contas, ora porque ninguém perguntava, ora porque, perguntando, ninguém respondia. Houve o caso que pôs o governo em alertas, a comunidade internacional quis saber o que era feito de um jornalista de panfletos, alma aguerrida, endireitador de tortos, corrector de desagravos, que denunciava abusos desde sempre mas que tinha vícios sodomitas. O Presidente, bem aconselhado, inventou uma pomposa Comissão de Inquérito com personalidades independentes e imparciais e isentas, umas boas cinquenta, que após aturada investigação concluíram que o pobre jornalista tinha morrido na sequência de fornicação paneleira, ou seja, rebentaram-no todo e morreu sangrado. Para evitar falatórios, a bem do bom nome da vítima e resguardo da família, dera-se sumição ao corpo.

 

Neste contexto de torturas amadoras, emergiu uma figurinha, antigo funcionário da direcção geral de saúde, muito interessado em história, leitor de clássicos latinos e apaixonado por atrocidades. O nome de guerra governamental era Leocádio. Este Leocádio era celibatário, beato e cumpridor de jejuns ortodoxos. Tinha uma imagem de São Cristóvão no bolso do casaco de fazenda já coçado de que não prescindia e, na carteira, trazia sempre uma folha com uma dezena de locuções latinas que lhe recobravam o espírito sempre que se sentia mais abatido, duvidoso espiritualmente sobre a piedade das suas acções. Na secretária do gabinete tinha um livro História da Tortura, mais que inspirador, caução histórica dos males que perpetrava como se males não fossem, antes necessidades que tornavam alcançáveis bens maiores, como a paz social e a unidade da nação. O respeito, dizia, é o pilar da comunidade. Sem respeito, nada feito, repetia, um tanto envergonhado pela rima que desemprestava dignidade à ideia. A sua ascensão ocorreu na sequência do interrogatório nº 53, cuja descrição pode ser consultada no arquivo oficial. Até então os interrogatórios eram brutais, animalescos, terríveis e os registos eufemísticos, burocráticos, repletos de “nadas-a-assinalar”. Leocádio transtornou os hábitos. Fazia descrições detalhadas dos horrores, em caligrafia bem calibrada e impecáveis sustentações histórico-filosóficas, com um nadinha de conhecimento forense, garantido sempre que o objectivo não era a morte do interrogado, mas a sua colaboração total, inequívoca e incondicional. Atingido este ponto, não havia necessidade de continuar e a morte só se justificaria como acto de misericórdia, em casos que o interrogado chegara a tais extremos de vulnerabilidade que um tiro na cabeça era mais humano que longos meses agonizantes em cama de hospital.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 14:40
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As cartas do meu pai

Nas cartas do meu pai eu não existo. Quando ele as escreveu eu não sabia que o meu pai estava vivo. As cartas que hoje leio são cartas escritas pela mão de um morto entretanto ressuscitado e devolvido ao convívio dos outros, dos que respiram. Na altura, ele estava morto. A sete de Julho de 1984, data no cabeçalho da carta, no primeiro verão antes de mim, ele estava morto e escrevia assim:

 

Querido e saudoso pai (querido e saudoso pai, escrevo eu hoje)

 

Tenho diante de mim a sua carta que me vem de chegar às mãos (diante de mim tenho a sua carta que me vem de chegar às mãos, vinda do passado e do pó, do reino dos mortos, escrevo) Já a li três vezes (tantas vezes já a li, mais do que três, escrevo eu hoje) estou bastante contente era a carta que eu esperava (ainda estou atónito e não sou bem eu e já a li tantas vezes é a carta que eu não inesperava, escrevo) e o facto de ter sido escrita à mão, me fez dobrar a alegria (e o facto de ter sido escrita à mão, pela sua mão viva, pai, me fez dobrar o espanto e a tristeza, porque para mim essa mão que, sei-o agora, também escrevia ainda segura uma faca, é e será sempre a mão que segura a faca e não a mão que escrevia Querido e Saudoso Pai) No que respeita a conselhos seus, ou sugestões como lhe queira chamar, serão sempre bem vindos (no que a conselhos seus respeita, ou sugestões como quiser, dispenso-os, esta voz, as palavras escritas na carta pela mão que segurava a faca oiço-as pela voz que me ilumina a memória “esta faca é para matar a tua avó”)...Os nossos problemas, só nos diz respeito a nós dois (os nossos problemas, quais problemas?, tenho seis anos, esta é a minha primeira bicicleta, aprendi a andar nela com o meu avô a segurar-me o banco, eu a cair, o meu avô, querido e saudoso avô, tão querido e saudoso avô, as tuas mãos rudes que escreviam mal a migar e a salgar o tomate que comíamos à sombra do sobreiro, este sabor que me lembra tanto de ti, querido e saudoso avô, como se ainda te beijasse as mãos, as mãos rudes que não escreviam mas que seguravam o banco da minha primeira bicicleta, não temos problemas, pai, não temos problemas, naquela tarde em que eu aprendo a andar de bicicleta tu ainda estás morto, só regressarás à vida numa tarde de céu baixo e plúmbeo, céu de chuva que ainda não cai, à saída do cemitério onde foste visitar a campa do teu pai, querido e saudoso pai)...e porque estou longe, porque no dia em que nos olharmos nos olhos um do outro não serão precisas mais palavras. Nós nos saberemos perdoar, embora não sejamos divinos (estou longe, estamos longe, porque no dia em que nos olharmos nos olhos um do outro, querido e saudoso pai, nesse dia em que nos encontrarmos à porta do cemitério, eu com dezasseis anos e um pai que é só aquela voz que segura uma faca, a mão que fala e diz “esta faca é para matar a tua avó”, não serão precisas mais palavras. Nós nos saberemos perdoar porque no dia em que nos encontrarmos eu serei a criança daquela fotografia, no primeiro verão antes de mim, e tu já não serás a voz que prometia a morte, mas a mão que escreve “no dia em que nos olharmos nos olhos um do outro não serão precisas mais palavras” e limparemos dos nossos olhos todas as lágrimas e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, porque já as primeiras coisas são passadas).

 

A carta prosseguia, a mão jovem e arrogante do meu pai a desenhar as letras, Quanto ao futuro: o futuro pode ser já amanhã, respondia ao meu avô que lhe deve ter falado de um futuro distante, de um futuro que o meu avô na sua boa sabedoria tinha a certeza que não iria conhecer, e que o meu pai na ignorância leve dos seus vinte e seis anos podia dizer o futuro é coisa que neste momento não me atormenta. Eu encontrei a boa via, escreve a mão do meu pai, ganho cerca de 130 contos em dinheiro português, gaba-se a mão do meu pai. Despede-se por fim pedindo ao meu avô para não estranhar se em Setembro receber alguns papéis dos Correios, é uma oferta que vos faço pelo muito que vos devo, e assina, a mão morta do meu pai a assinar a carta em que eu não existo, onde eu existia era naquela fotografia com a primeira bicicleta, é aí que eu estou e existo e sou e o meu pai não sabe.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 10:15
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Raças

E naquele tempo eram muitas as raças de homens: os flávulas e os díngeos, os artas e os préssios, os menídeos e os prântulas, os cárpios e os bráquios, os sávios e os límidas, os grálios e os sempíreos, os arbálidas e os câneos, os fláquios e os benádios, os margolos e os transvéridas, os bessíneos e os antícronos, os panvéridas e os maxínios, os linvólios e os abnídeos, os filácios e os numénicos, os trintalúmidos e os angríseos, os cruezos e os pietráquios, os numólidas e os sabíneos, os calqueus e os zeféridas, os tagórios e os môncios, os estrázios e mirteus, os vendrétios e os cristénios. Desapareceram todas sob os escombros.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 09:27
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Terça-feira, 05 De Fevereiro,2013

Beja

As nuvens podem não ter ajudado. Achei Beja uma cidade triste e feia. Era manhã de Sábado, manhãs que recordo festivas com um certo ar de arraial sarraceno, e esta era uma manhã acabrunhada, sem gente e com uma chuva tão mole que nos fazia ter pena de nós próprios. Prédios iguais aos de tantos subúrbios, com as suas pastelarias falsamente acolhedoras, simulacros ridículos de salões de chá sumptuosos, onde se comem torradas, meias de leite e chás de camomila com aquele vagar de burguesia em que assoma uma reminiscência de aristocracia velha mas não é mais do que pardacento funcionalismo público, rotundas exageradamente decoradas com obras que fulminam o olhar e o espírito do visitante, como se no meio da selva um arranha-céus irrompesse, lojas chinesas com o seu caos de bazar asiático onde tudo se encontra, universo infindável de bugigangas e inutilidades à medida das nossas magras carteiras, bombas de gasolina esquálidas onde ainda subsistem os empregados de calças manchadas. Nesta cidade até a imponente estátua de D. Leonor, esverdeada pelo tempo e pelo desmazelo, parecia triste e deslocada, como se em vez de exibir os dons que lhe deram direito à eternidade da pedra a pobre Rainha confessasse o seu desespero por não poder sair dali. Foi destarte que vi Beja. Mas a culpa pode ter sido do tempo e das nuvens.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 10:07
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