Uma Falsa Sensação de Segurança
Acredito que à medida que o tempo passa e nos afastamos irremediavelmente dos acontecimentos pode ser que estes percam nitidez e definição, culpa dos pormenores que vamos esquecendo, e adquiram, em compensação, um fulgor e uma renovada vividez, como uma árvore de folha caduca que, caídas as folhas, ganha uma majestade nua e límpida. É assim que vejo a viagem de comboio de há tantos anos, nas férias da Páscoa, eu e a minha avó a caminho de Montalvão, a aldeia aonde regressou meses antes de morrer. Em Santa Apolónia, apanhámos o comboio que nos levaria a Castelo de Vide. Não me recordo da semana que passámos em Montalvão, mas lembro-me da viagem: a paisagem até chegarmos a Vila Franca e a senhora sentada à nossa frente. Já a viagem ia a meio e sentimos um cheiro ácido, a lixívia morna. Incapaz de perguntar pela casa de banho e vendo que o comboio demorava a parar, a pobre senhora urinara ali mesmo. Já é de noite quando chegamos a Castelo de Vide. As poucas pessoas que saem connosco têm alguém à espera, de carro. A estação fica vazia. O silvo de ferro de animal mecânico e pesado afasta-se. Eu e a minha avó, ainda a segurar as malas, estamos à porta. A esta hora já não há camionetas para lado nenhum. Ficamos ali alguns minutos, rodeados de noite por todos os lados, a luz dos candeeiros insuficiente para nos sossegar. Somos duas criaturas vulneráveis. Na estrada em frente passa um carro. Suspiramos. Agora é apenas uma luz vermelha, cada vez mais ténue, até desaparecer numa curva. Regressamos ao interior da estação. A luz das lâmpadas fluorescentes fere a vista. Há um vago cheiro a ferro e urinol. Procuramos horários e números de telefone. Cedemos ao cansaço e sentamo-nos. De repente, sem o esperarmos, aparece o táxi que nos há-de levar a Montalvão, terra onde a minha avó nasceu e onde queria ser enterrada. A tensão desumana daquela curta espera fragilizara-nos ao ponto de a chegada inesperada do táxi nos ter emocionado e confortado. À medida que o carro avança pelas estradas ruins e estreitas, ladeadas de muros baixos de xisto, de oliveiras que se iluminam com a luz cega dos faróis para logo serem de novo tragadas pela escuridão, a trepidação do carro no asfalto remendado dá a impressão de nos deslocarmos a grande velocidade e o nosso conforto torna-se precário e por isso mais intenso, quando nos envolve, e mais desejado, quando por segundos é tragado pelas mesmas trevas que devoram as oliveiras. Para onde nos conduzirá este homem? A rádio dá notícias: tragédia num estádio inglês, muitos mortos. O condutor comenta a desgraça do mundo, lamenta que seja sempre assim, eu lembrei-me de outros mortos, noutro estádio, e a existência daquela tragédia exterior e longínqua aproxima-nos e apazigua-nos, o carro parece abrandar e é então que, depois de uma curva, se vêem os contornos nocturnos da aldeia da minha avó, as luzes das casas e das ruas, a imagem tão familiar e tão querida da torre da igreja e sabemos finalmente que vamos chegar bem. Devemos ter passado uma semana em Montalvão, aldeia em que a minha avó foi criança, mas foi tudo há muitos anos, não tenho a certeza de que tenha sido assim. Permanece a imagem da senhora sentada à nossa frente na carruagem, o cheiro adstringente a amoníaco, a chegada à estação de Castelo de Vide, eu e a minha avó, duas crianças com medo do escuro e das trovoadas, à espera de alguém que nos levasse pela mão através do escuro e das trovoadas até ao bom porto da nossa aldeia, os faróis a iluminar as oliveiras, a rádio a falar de mortos num país distante. Foi apenas isso que ficou: a majestade de uma árvore nua e límpida, que vejo hoje tão claramente como a vi há tantos anos, a silhueta familiar da nossa aldeia a aparecer-nos como um aconchego maternal no fim de um pesadelo, um lugar onde podemos enfim repousar e dormir, sabendo sempre, dolorosamente, que lá fora ainda é de noite, que uma criança e a avó ainda esperam à porta da estação, que tudo o que temos é uma falsa sensação de segurança.