A Cidade das Palavras

Este pequeno conjunto de ensaios do escritor Alberto Manguel pode ser resumido como uma apologia da função socialmente positiva da literatura e da importância desta como argamassa das sociedades humanas, da “cidade”. Na introdução, o escritor argentino alerta que as questões que irá tratar nos ensaios poderão não encontrar respostas satisfatórias. O que é natural, dada a magnitude de questões como, por exemplo, “de que forma a própria linguagem determina, limita e aumenta a nossa imaginação do mundo?” ou “como é que as histórias que contamos nos ajudam a compreendermo-nos e aos outros?” Num ensaio em que arrasa a retórica de George Steiner, o crítico James Wood aponta a formulação de questões para as quais o próprio Steiner não tem resposta como um dos seus principais defeitos, como se o facto de não haver respostas satisfatórias valorizasse por si o acto de se fazer aquelas perguntas. “Ele está fascinado pelo glamour do inefável”, diz Wood. A cultura e a erudição de Manguel (tal como as de Steiner) não estão em causa. Manguel passa de Arthur C. Clarke para Montaigne, de Alfred Döblin para Jack London, de Robert Louis Stevenson para Jorge Luis Borges sem ser hermético, exemplificando, numa sincera tentativa de chegar nas condições ideais de legibilidade ao outro, ao leitor. Mas algumas asserções, ainda que não possam ser consideradas falsas, tresandam a senso comum, como as repreensões moderadas de um pai amoroso. Eis um exemplo: “Ler é um trabalho de memória que nos permite, através das histórias, desfrutar da experiência passada de outros como se fosse nossa. Em certas condições, as histórias podem ser-nos úteis. Por vezes podem curar-nos, iluminar-nos e mostrar-nos o caminho.” (p. 19). Como pensador, Manguel é sofrível. Como leitor e intermediário entre a literatura e os restantes leitores, é excelente. É quando faz uso da sua erudição, sobrepondo imagens de obras de diferentes épocas, estabelecendo relações entre autores consagrados e outros quase esquecidos, detectando paralelismos improváveis, que Manguel é, paradoxalmente, mais original. Nenhuma das teses é revolucionária (a literatura como forma de compreendermos o outro e o mundo), mas a colagem hermenêutica de materiais diversos – o verdadeiro talento de Manguel – ajuda-nos a ler melhor. Sabendo que a grande vantagem da literatura é “o facto de não constituir dogma” (p. 30), o ensaísta não a empurra para o domínio do religioso e do inefável. Aproxima-a do nosso mundo e dessacraliza-a sem minimizar a sua importância. Quando diz que nem mesmo as melhores histórias nos podem salvar da nossa própria loucura, Manguel lembra-nos que a literatura, embora seja fundamental na construção das identidades, não é uma panaceia, não é uma alternativa secular às religiões que explicam, prometem e exigem tudo. Ao dizê-lo, presta o seu melhor serviço à literatura e aos leitores.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:22
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