O Mundo Alucinante
Para se afirmar, a identidade de um povo precisa de historiadores, de romancistas e de bons electricistas, e destes apenas para evitar que os outros percam tempo a trocar fusíveis. Um povo pode lutar e conseguir a independência, mas “o grito de Ipiranga” é apenas o meio do percurso na estrada que leva à construção de uma nação. Por este motivo, a luta dos povos americanos pela independência e o “combate” dos escritores latino-americanos, um século e meio mais tarde, pela emancipação cultural são dois momentos do mesmo caminho. A autodeterminação de um povo não fica completa sem o direito a narrar a própria história, a fundar novas mitologias e a consagrar as suas figuras e os seus heróis. Foi esse o papel da literatura latino-americana. Não como um projecto subordinado a ditames de natureza política ou estética, mas como um conjunto heterogéneo de vozes que, para benefício de todos, parecia cantar em uníssono. Daí que, mesmo uma voz marginal e rebelde, como a do escritor cubano Reinaldo Arenas (1943 – 1990), possa ser incluída no coro.
“O Mundo Alucinante”, romance publicado no auge do chamado boom da literatura latino-americana (1966), é um contributo para aquelas mitologias. Arenas pegou na figura histórica do frade mexicano Servando Teresa de Mier e compôs uma hagiografia secular, delirante, poética e surrealista. A escolha não foi inocente. Defensor da independência das colónias americanas, Frei Servando foi condenado ao desterro em Espanha por heresia. Várias vezes preso, conseguiu sempre fugir. Percorreu a Europa e deparou-se com a decadência dos costumes e a corrupção moral. Esteve em Itália, “onde os ladrões são tão abundantes que quando alguém não o é o canonizam imeditamente; em Espanha, “[...] a Roma de Nero comparada com a corte de Espanha, pareceria a casa de Deus e de todos os santos.” Tudo aquilo que viu inflamou o seu “mais forte e maior desejo”, a independência da sua pátria. “Até quando seremos considerados como seres paradisíacos e lascivos, criaturas de sol e água?...Até quando vamos ser considerados como seres mágicos guiados pela paixão e pelo instinto?” Era hora de o homem americano se libertar da canga incapacitante do “bom selvagem” e assumir as rédeas do seu destino.
Muitos anos depois, os escritores fizeram o mesmo. Reclamaram o direito de construir a sua própria genealogia. Como se pode comprovar neste livro, em que Arenas se apropria da tradição literária europeia e produz um artefacto miscigenado, distintamente americano e de fôlego universal. Não renega a herança para dar ares de “falso primitivo”. Arenas é Cervantes nas deambulações por uma Espanha desoladora e numa citação do discurso de D. Quixote sobre a liberdade. Arenas é Homero, e Servando é o seu Ulisses que regressará a Ítaca – a América idealizada - para libertar a pátria dos usurpadores. Arenas, e aqui paga o seu tributo à modernidade, também é Virginia Woolf e, “Orlando”, outra biografia atípica, a matriz que inspira o romance com o desrespeito pelas convenções narrativas. O romancista, ao contrário do historiador, não precisa de colmatar as lacunas da História com hipóteses verosímeis. Bastam-lhe a imaginação e a saudável tendência para quebrar as regras.