Órfãos do Eldorado
A novela Órfãos do Eldorado é a continuação por outros meios das obsessões do escritor brasileiro de ascendência libanesa Milton Hatoum (n. 1952). Em três romances (Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte), todos distinguidos com o prestigiado Prémio Jabuti, Hatoum delimitou um território privado na ficção brasileira. No cenário físico da Amazónia e no cenário cultural da comunidade de emigrantes libaneses, construiu um mundo de estranhos num local estranho. Com estas coordenadas geográficas e culturais, o leitor incauto pode entrar na obra de Hatoum à procura de tucanos e velhos patriarcas orientais a fumar narguilé. Sairá desiludido. Não que os não haja, mas Hatoum não se deixa prender pelas armadilhas do exotismo amazónico e de um certo oriente idealizado. Os conflitos familiares e os mitos que os envolvem são o seu tema. Através de uma linguagem escorreita e de um conceito clássico de narrativa, Hatoum resgata as suas personagens do pântano do exótico e coloca-os no palco dos temas universais. É isso que acontece em Órfãos do Eldorado, novela que foi convidado a escrever para incluir na colecção Mitos. Respeitando a dinâmica narrativa da novela, o autor integra o mito do Eldorado na história da ascensão e queda da família Cordovil, na primeira metade do Século XX. É a história clássica de um pai “forte” que constrói fortuna e reputação e de um filho fraco que deita tudo a perder. O que lhe confere a aura de tragédia é o facto de o pai ser, de várias maneiras, o responsável pela “fraqueza” do filho. Culpa-o pela morte da mãe (“Tua mãe te pariu e morreu”), entrega-o para ser criado no meio dos mitos que lhe inflamam a imaginação e que acabam por lhe moldar o carácter errático e, sem que o saiba, coloca no caminho do filho a mulher que será a causa da sua perdição. À boa maneira grega, é no caminho para a glória que se lançam as sementes da desgraça. Hatoum semeia presságios (“vais morrer afogado”; “ela não vai ser tua mulher”; vais voltar com o demónio no coração”), carrega os nomes de simbolismo (Arminto, Amando, Edílio, Azário) e incorpora subtilmente mitos de outras paragens. O Eldorado real, o barco do qual depende a fortuna dos Cordovil, naufraga porque o comandante se desvia da rota para ir ver uma amante, talvez atraído pelo canto da sereia. A teia narrativa é arquitectada pela memória do narrador, o filho pródigo Arminto. Com este recurso, Hatoum trabalha uma vez mais a questão da memória enquanto alicerce da sua obra ficcional e, mais importante, dá à novela uma ambiguidade que enriquece a leitura. Contada pelo homem que a viveu e que é considerado louco, a história funde-se com o seu narrador numa amálgama de realidade e de lenda. Órfãos é um transplante bem sucedido para os limites da novela de um universo que, até agora, Hatoum apenas explorara em romances. O maior mérito, porém, não é a coerência, uma característica que pode justificar os mais entediantes monumentos. Hatoum não faz mais do mesmo. Aprofunda e refina aquilo que o distingue: retratos de família universais com a Amazónia em fundo.