Quinta-feira, 26 De Janeiro,2012

Um Mundo Iluminado

A proposta de Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly, dois professores de filosofia, é demasiado apetecível para uma época da qual a experiência do sagrado se parece ter evaporado ou, pelo menos, migrado para fenómenos menores ou de importância circunscrita (eventos desportivos, espectáculos musicais, etc.). Pegar nos clássicos da literatura e da filosofia e procurar neles um sentido para as nossas vidas seculares, desprovidas de transcendência, soa a receita mágica, à combinação ideal entre o deleite estético e a utilidade prática. No entanto, o resultado final está próximo da prescrição de um politeísmo suave, que, por um lado, não desampara o homem e que, por outro, não o deixa sob o jugo de um tirano omnipotente. Reconhece a existência de múltiplos significados, mas assegura que esses significados não se anulam. Não obriga o homem a dar um sentido às coisas, mas incentiva-o a descobrir esse sentido, a estar atento, a abrir-se ao mundo. Prega a reconciliação com o corpo (uma crítica à tradição judaico-cristã). Recomenda que nos deixemos levar em comoção coletiva perante as coisas boas (um discurso de Martin Luther King, um desportista de excelência) e que nos isolemos perante as más (um discurso de Hitler, por exemplo). Para Dreyfus e Kelly, o homem moderno – filho de uma linhagem que vai de Ésquilo a Nietzsche, passando por Santo Agostinho, Dante, Kant e Descartes – é vítima da sua ilusória autossuficiência. Se só o homem pode dar sentido ao mundo, então não há fuga possível quando não consegue atribuir-lhe um sentido. Só resta a angústia e o desespero.

 

Este, de acordo com os autores, é não só o mundo dos romances de David Foster Wallace, mas o mundo do próprio escritor americano que, em 2008, após anos de depressão, se suicidou. No entanto, o suicídio de DFW não é interpretado como uma resposta a um problema filosófico (ao que Albert Camus, na famosa frase inicial de O Mito de Sísifo, considerou o único problema filosófico verdadeiramente sério). Os autores deste livro estão mais interessados em mostrar a obra literária de DFW como enunciação desse problema ou, para ser mais exato, como manifestação do problema do niilismo. Camus definiu como central a questão de avaliar se a vida vale a pena ser vivida, ou seja, se o homem – solitário e órfão do divino – será capaz de encontrar um sentido que torne a vida digna de ser vivida. No seu romance inacabado e publicado postumamente, The Pale King, DFW ilustra esta questão de uma forma radical. As personagens do romance são funcionários que passam as oito horas do turno a examinar declarações de impostos. É uma encenação quase caricatural da condição do homem moderno com todo o peso entediante da burocracia. Porém, e ao contrário do que se poderia imaginar, DFW apresenta uma saída, um caminho para a felicidade com o nome de Mitchell Drinion, personagem que vence o tédio, a falta de sentido e de noção de fim das suas tarefas, com o recurso à força de vontade e ao autodomínio. DFW descreveu a personagem desta forma: “Drinion é Feliz.” Dreyfus e Kelly consideram desumana esta confiança nietzscheana na vontade individual para impor o sagrado ao quotidiano em vez de o descobrir. Um comportamento semelhante exigiria de cada indivíduo um esforço tal, uma obstinação tão violenta, uma concentração tão absoluta, que anularia de imediato qualquer possibilidade de felicidade. Este esforço consciente – e humanamente insuportável – no sentido da excelência e da beatitude contrasta com o mundo de Homero, no qual, segundo os autores, reina “a intuição de que o importante já nos foi dado, e de que a vida melhor é aquela que consegue entrar em sintonia com isso.” (p. 76). O reconhecimento de que as nossas ações escapam ao nosso controlo e nem sempre são determinadas pela nossa vontade inspirava nos gregos antigos um sentimento de gratidão perante os acontecimentos. Para Dreyfus e Kelly, a gratidão grega contraria a noção moderna “de que um agente humano é a fonte única das suas próprias acções” (p. 94). Uma vida digna, no mundo de Homero, era aquela em que o homem se deixava ligar “aos estados de espírito que um deus definia para cada situação.” (p. 99), estados por natureza transitórios. Estamos, pois, no paraíso da irresponsabilidade individual e da amoralidade (de que é exemplo Helena de Tróia), que os autores parecem apreciar. Deixarmo-nos levar por estados de espírito transitórios, sejam eles sugeridos por deuses ou por outras entidades, é excelente material para a literatura mas uma receita infalível para a catástrofe social.

 

Depois de descreverem o processo filosófico e literário que uniu os dois extremos – o politeísmo benigno de Homero e o niilismo angustiado de Foster Wallace – Dreyfus e Kelly apontam como meio-termo ideal a cosmovisão de Herman Melville, em Moby Dick. Resumindo a ideia, trata-se de “aceder a tantas formas de responder ao sagrado quantas nos for possível.” Não devemos imitar o capitão Ahab, à procura da verdade derradeira e universal, nem, a exemplo de Pip, enlouquecer na profusão de interpretações e significados. O resultado do dogmatismo monomaníaco – que não encontra a resposta –  e do relativismo estéril – que se confronta com demasiadas respostas – é o mesmo: o niilismo. A solução é sermos capazes de “aceitar todos os significados com um idêntico olhar.” (p. 195). Como todas as soluções de compromisso, a proposta de Dreyfus e Kelly parece-nos excelente quando observada à distância e confrangedoramente pobre quando ponderamos a sua aplicação prática. Somos exortados a experimentar um sentimento homérico de gratidão, mas não nos podemos esquecer que, sem os alicerces religiosos dos gregos antigos, a nossa gratidão seria uma farsa, uma gratidão estética desligada de uma necessidade interior de a expressar e sem uma referência concreta a quem a dirigir. Quando citam as palavras de Ismael, o narrador de Melville, de que “o homem deve diminuir, ou pelo menos deslocar, a ideia que faz da felicidade a que pode aceder”, não assumem que alterar a medida da felicidade exige também um esforço da vontade individual. Quando recomendam ao leitor que se alegre “com o pensamento de que [as alegrias e tristezas do politeísmo] conferem um sentido ao nosso mundo” estão, na verdade, a pedir ao leitor que dê um sentido a essas alegrias e tristezas, uma ideia sensata mas que sobrevive sem a dispensável retórica politeísta.

 

Por muito que isso tenha contribuído para a infelicidade do homem moderno (isto partindo do princípio que as personagens de Homero representam fielmente os seres humanos do seu tempo e que estes eram todos igualmente recetivos aos estímulos dos deuses, a seguir o que estes lhes diziam e a viver num perpétuo estado de gratidão) é inegável que a ideia de responsabilidade individual pelas nossas ações, a emancipação do homem, é um dos grandes triunfos do pensamento ocidental. Depositou sobre o homem um enorme peso – inerente à responsabilidade moral e à necessidade de encontrar um sentido ex nihilo – mas esse é o preço a pagar pela liberdade. Para Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly este legado tornou o homem num escravo de si mesmo, um servo da sua própria autonomia. Para se libertar desta auto-escravatura, propõem que o homem esqueça o que aprendeu, abdique do que conquistou e reencene um homem primitivo, pré-moral, a sintonizar-se com o mundo, com os deuses e com as tábuas de madeira (à guisa dos velhos artesãos), garantindo que “este mundo politeísta contemporâneo será um lugar maravilhoso de coisas sagradas e plenas de luz.” Por aqui, pensamos de maneira diferente: vale mais a liberdade nas trevas do que a felicidade fácil num mundo iluminado.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:29
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Keith Richards - Life

A autobiografia de Keith Richards é um longo e divertido manual de sobrevivência ao facto de se ser Keith Richards. Há quem imagine a vida do guitarrista da maior banda de rock do mundo como uma montanha-russa de gravações, concertos, mulheres deslumbrantes e cocktails de drogas. Estão enganados; é muito mais do que isso: rusgas, conflitos com Mick Jagger, quedas aparatosas, discussões com Mick Jagger, confrontos com as autoridades, afirmações do laço inquebrável com Mick Jagger, uma receita de salsichas e puré e uma capacidade quase sobre-humana de deflagrar incêndios. A constante do livro é, no entanto, a luta entre o espírito autêntico do rock e as concessões necessárias para se sobreviver durante décadas na indústria, e a conciliação do amor genuíno pela música com a marca Rolling Stones ou, por outras palavras, como vender a alma ao diabo e não entregar a mercadoria.

 

Keith Richards nasceu a 18 de dezembro de 1943, em Dartford, arredores de Londres, mas a história que interessa começou em 1961 quando, numa versão barulhenta de Breve Encontro, de David Lean, deu de caras com Mick Jagger na estação de comboios de Dartford. Os dois já se conheciam da escola mas nesse dia descobriram que partilhavam a adoração pelos blues. As condições para se tornarem bluesmen, a exemplo dos seus ídolos de Chicago, não eram as ideais: eram miúdos, ingleses e brancos. A seu favor tinham o tempo livre que dedicavam a ouvir discos e a aprender os truques dos maiores: “éramos promotores não remunerados dos blues de Chicago.” Formaram a banda, vieram os concertos, as gravações, o sucesso e, quando deram por isso, eram uma banda pop, “coisa que desprezávamos”. O sistema absorvera os rapazes rebeldes. Ao mesmo tempo, perceberam que tinham mais a ganhar se trabalhassem precisamente a imagem de rapazes rebeldes, de anti-Beatles, porque afinal “não havia coisa mais fácil do que manipular os meios de comunicação e fazíamos deles o que queríamos” (p. 174). Porém, nos anos seguintes nem tudo foi marketing. Richards e Jagger fundaram uma das mais produtivas e bem-sucedidas parcerias da história do rock, conheceram o sucesso global e puseram os americanos a ouvir música americana, mas os problemas reais com as autoridades sucediam-se, o guitarrista Brian Jones morreu afogado numa piscina e Keith mergulhou a fundo nas drogas pesadas. Experimentar, fosse novas drogas ou novos sons, era a palavra de ordem. Richards descreve assim a sua experiência com ácido: “a coisa mais espantosa de que me lembro sob o efeito do ácido foi ver pássaros a voar – pássaros que não existiam, bandos de aves-do-paraíso que não paravam de voar à minha frente.” (p. 210). Na mesma altura, descobre o open tuning, a “afinação em cordas soltas” – um conceito relativamente simples de explicar a um músico e que, para um leigo, tem o som incompreensível da gramática islandesa -, que lhe revolucionou a forma de tocar guitarra e de entender a música. Tudo isto tendo como pano de fundo traições pessoais, ameaças de ruptura e uma história rocambolesca a envolver uma rusga policial, Marianne Faithfull (na altura, namorada de Mick Jagger e que também terá passado pelos braços de Keith) e uma misteriosa barra de chocolate Mars que lhe teria servido de dildo.

 

Por mais de uma vez, os Stones estiveram à beira do fim, mas conseguiram sempre dar a volta. O motivo da lendária resistência da banda tem de ser encontrado naquela que é a verdadeira história de amor – e ódio – do livro: a conturbada relação entre o guitarrista e o vocalista, os dois pilares dos Stones. E, nesse aspeto, o velho pirata não poupa o grande pantomineiro e chega a referir-se, num passo pouco gracioso, à sumária masculinidade de Jagger. “Eu desci aos meandros do cavalo e ele subiu à esfera do jet set” é uma boa síntese das divergências entre os dois. Jagger assumiu as rédeas e, mesmo depois de Richards ter deixado as drogas, nunca pareceu disposto a abdicar delas. Uma atitude muito natural para quem, como o próprio companheiro reconhece, se habituara a trabalhar por dois, enquanto ele se “injectava por dois.” As manias de celebridade de Jagger, o que Richards chama de SV (síndrome do vocalista), ameaçaram a estabilidade do grupo porque “[p]ara ele, os Rolling Stones eram o Mick Jagger e os outros.” Foi a “faísca electromagnética” entre os dois, a química humana e musical, que os manteve unidos. A guerra aberta acabou por não resultar numa destruição total e, num clima de hostilidade latente após tentativas de carreiras a solo com pouco sucesso, voltaram a erguer a incansável máquina dos Stones, que dura e fatura até hoje: “porque as pessoas querem é ouvir os cabrões dos Rolling Stones, é ou não é?”

 

Keith Richards é o exemplo perfeito de como é possível cultivar uma imagem de rebeldia e inconformismo sem ficar completamente preso a essa imagem, acabando como uma caricatura de si próprio, e sem sucumbir aos excessos, acabando afogado numa piscina ou no próprio vómito. O próprio Keith não tem muitas certezas em relação à primeira: “Já nem sei até que ponto não protagonizei eu o papel que outros me destinaram. (...) É impossível não te transformares numa paródia daquilo que julgavas ser.” No entanto, ao fim de quase cinquenta anos, Keith Richards ainda anda por aí, sempre acompanhado pelo outro “Keith Richards”, com “o anel com a caveira, o dente partido, a maquilhagem negra em torno dos olhos.” O segredo? Uma boa herança genética e uma respeitável dose de sorte. Durante vários anos, Keith ocupou o primeiro lugar de uma lista do New Musical Express das estrelas rock com mais probabilidades de morrer em breve. Sobreviveu. E com ele a aura de eterno revoltado. Para se perceber por que raio o guitarrista dos Rolling Stones é tão cool convém distinguir entre uma estrela e uma vedeta. As vedetas precisam que os holofotes estejam sobre elas. As estrelas irradiam uma luz própria, como se não tivessem de fazer um esforço sobrenatural para brilharem. Keith Richards é uma estrela. As rugas jurássicas e a magreza dos duros, como se o corpo fosse um mapa dos excessos e da trajetória da banda, ajudam-no. Há ali qualquer coisa que não cedeu ao conforto, às mansões gigantescas e aos milhões de dólares. O corpo de Richards é um manifesto vivo da filosofia do rock, no andor dos mitos que lhe inventaram e que ele nunca se preocupou em desmentir. Aquilo que ele nos conta não é uma lição. É a vida. Neste caso, a life.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:28
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A Livraria

Para o leitor que queira saber mais sobre a verdadeira natureza do humor britânico, aconselha-se a leitura deste pequeno romance de Penelope Fitzgerald, finalista do Booker Prize de 1978. O humor não é servido em doses abundantes, e essa é a razão da sua eficácia e a primeira prova da sua origem distintamente britânica. Também não é um humor que se queira desesperadamente fazer notar – é essa a razão da sua imponência e a segunda prova da sua origem. Finalmente, é um humor miniaturista, de observação social plácida mas contundente, avessa à caricatura e ao grotesco, mas sempre atenta às particularidades dos outros – por isso estabelece uma afável cumplicidade com os leitores. Tudo isto é muito mais notável porque A Livraria não é um romance que se possa catalogar como humorístico. Inicialmente, a história parece seguir em sentido único rumo à banhada delicodoce.

 

Contra todas as indicações do bom senso e do gerente do banco, uma viúva de meia-idade, Florence Green, decide abrir uma livraria numa pequena vila do leste de Inglaterra. É um ponto de partida aterrador que faz prever uma fantasia de bibliotecária cinquentona com declarações balofas de amor aos livros. Mas Fitzgerald é rápida a trocar-nos as voltas. A protagonista, apesar da teimosia ingénua e de uma fraca preparação contabilística, é mais uma diletante (a “fraqueza por coisas belas”) à procura de ocupar o tempo do que uma fanática dos livros pronta a evangelizar a população ignara. A atitude corajosa de abrir uma livraria serve apenas para revelar a força dos atavismos sociais. Em contrapartida, Fitzgerald não oferece nada que se pareça com uma redenção pelo poder esclarecedor dos livros. Enquanto narra a ascensão e declínio de um sonho difuso, Fitzgerald diverte-nos com a sagacidade das suas observações, os seus remoques desapaixonados mas extraordinariamente certeiros a captar peculiaridades das personagens tornadas ridículas pela sua excessiva pompa. Eis alguns exemplos: “O seu marido, o General, abria gavetas e armários com o objectivo de não encontrar nada, tendo assim uma desculpa para vaguear de divisão em divisão”, “Mrs. Keble acrescentou que estaria de volta dali a meia hora. Achava sempre que as coisas demoravam cerca de meia hora” ou este exemplo acabado de humor fleumático “A meia-idade serôdia, para a classe média-alta de East Suffolk, marcava uma crise após a qual a maioria se tornava aguarelista e pintava paisagens. Não teria tanta importância se pintassem mal, mas todos o faziam bastante bem.” Entre a melancolia agreste da paisagem e o calor vivo da inteligência da escrita, entre a solidão da protagonista e a proximidade amigável da voz que narra a história, A Livraria é um pequeno guia sobre o humor, que é como quem diz o espírito (e há mesmo um espírito no romance), britânico.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:27
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Um Tigre nas Florestas da Noite

Imagine o leitor a história de uma relação amorosa entre uma criança de sete anos e um homem de cinquenta. Imagine que esta história é narrada em retrospetiva na primeira pessoa pela criança, agora mulher. O exercício é quase inconcebível porque estica ao máximo a “suspensão da incredulidade” e, ao mesmo tempo, os limites da imaginação moral do leitor. Agora, em vez de suspender a incredulidade, ative a credulidade, porque Um Tigre nas Florestas da Noite não é ficção, são as memórias da autora, Margaux Fragoso.

 

Um livro de memórias, apresentado enquanto tal, estabelece um contrato tácito com o leitor. Diz-lhe que os factos narrados, ainda que diluídos pelas impressões subjetivas da memória, são reais. A este contrato o escritor pode adicionar umas cláusulas que têm por objetivo desestabilizar a perceção do leitor. As cláusulas são a estrutura narrativa e a linguagem que pertencem ao domínio da ficção. Não se trata de fraude ou má-fé (acrescentar factos fictícios a uma autobiografia, por exemplo), mas da exposição dos factos num quadro narrativo associado à ficção. Digamos que é um pequeno e admissível truque a que o memorialista recorre para levar o leitor para um território híbrido e que alguns ficcionistas utilizam de forma inversa, narrando ficções como se fossem factos históricos (pensemos, para não gastar mais tempo, na abertura de O Nome da Rosa, de Umberto Eco). A narradora de Um Tigre nas Florestas da Noite Fragoso vive numa espécie de indecisão camuflada, de cuja verdadeira intenção nos vamos apercebendo ao longo do livro. Vejamos este exemplo logo nas primeiras páginas: Fragoso transcreve, em discurso direto, uma história que o pai lhe contou há muitos anos; recorda-se de todos os pormenores (“Fez uma pausa para beber um gole de cerveja e continuou.”). Na mesma página, conta uma das brincadeiras que fazia com Peter (o homem de cinquenta anos) e confessa ao leitor “Não me lembro bem da história”. No primeiro momento, quem nos conta a história é a narradora omnisciente que se lembra de todos os detalhes de uma conversa tida há anos. A seguir, é a memorialista sincera que se dirige ao leitor admitindo as limitações da memória. Saltamos da tirania do narrador omnisciente para a humildade do memorialista falível.

 

Em que é que ficamos? Partimos, como sempre, das condições contratuais determinadas pela própria escritora. Fragoso quer que a sua história – as suas memórias - seja lida desta forma. Cabe-nos perceber as razões de uma estrutura narrativa tão oscilante, tão arriscada, cujo maior risco é o de parecer uma tentativa de envernizar os factos, de embelezar as memórias, de pegar em migalhas dispersas pelo tempo para compor um bolo comemorativo. Mas não é o que acontece aqui. A estrutura está intrinsecamente ligada à matéria sensível relatada (o abuso continuado de uma criança, a própria autora) e à vontade de expor o comportamento de um pedófilo de um modo que não seja condicionado pelo juízo moral imediato, de um modo que permita que ele se revele gradualmente. A “humanização” do monstro, aqui, não é mais do que deixá-lo, narrativamente, à vontade para que o possamos observar em ação, sem que à partida olhemos para ele como um monstro. Porque os abusos deste género nem sempre são cometidos com recurso à violência ostensiva, nem sempre parecem abusos. Aliás, o estratagema de um pedófilo como Peter é esse: o de fazer passar um abuso por uma relação amorosa consentida (daí a escolha de palavras no início deste texto), entre iguais, escolhendo alvos suficientemente vulneráveis para entrarem nesse universo. O pedófilo constrói uma fantasia à volta do abuso e – este é o seu trunfo – tem a capacidade de a impingir às vítimas. É uma teia pacientemente tecida com a finalidade de o abuso não parecer abuso, de o agressor não parecer agressor e de a vítima não se sentir vítima.

 

Em vez de gritar a sua dor, em vez de escrever um livro-choque, Margaux Fragoso recorreu a uma trama narrativa que desmonta, com idêntica paciência, a teia do agressor. A crueza explícita das cenas de sexo descritas pela narradora e a colaboração ativa da criança/adolescente nas fantasias do agressor não são uma exploração sensacionalista, nem uma culpabilização da vítima. São uma demonstração do funcionamento da teia, do quão persuasivo consegue ser um pedófilo, da sua capacidade de distorcer a realidade e de a impor aos outros. A dada altura, a vítima cai numa violenta dependência emocional do agressor: “Sem Peter para me ver, para me adorar, como é que eu poderia existir?” (p. 255); “Jamais trairia a única pessoa no mundo que se preocupava verdadeiramente comigo” (p. 265); “eu era a droga de Peter e ele era a minha droga” (p. 286). A fantasia “suave, afável, insinuante” impõe-se brutalmente com toda a sua força destrutiva. Da mesma forma, a verdade implacável dos factos e da memória emerge da estrutura narrativa oscilante que a autora escolheu para a revelar.

 

Considerada esta informação, será, pois, legítimo fazer uma avaliação literária da obra? Sim, porque Fragoso escolheu um edifício literário para alojar as suas memórias, porque assumiu, tal como um romancista, as liberdades no discurso (direto e indireto) e também porque a sua linguagem introduz elementos cujo efeito não é o de reforçar a veracidade dos factos mas o de produzir “realismo”: desde a típica observação realista, quase neutra “A luz que entrava pelas janelas refletia-se nas tábuas do soalho” à sequência de metáforas neste excerto: “Enroscava a boca à volta dele, como uma cascavel sem presas devorando um rato vivo. (...) Depois, tratava das veias, da pele brutalmente esticada, cheia de estrias, retesada e saliente ao mesmo tempo, aquela pele lá em baixo que parecia a pele de alguém que sofrera uma queimadura grave, encrespada tal como a pele da nossa mão ficaria se a aproximássemos das chamas para logo a retirarmos.” Sendo incursões literárias meramente competentes (qualquer comparação com Lolita, de Nabokov, é delírio) não comprometem, contudo, a estabilidade factual da história (aquilo que em termos ficcionais designamos por verosimilhança). É um livro das memórias dolorosas de feridas infligidas sob o disfarce do afeto. O mérito de Margaux Fragoso é conseguir desmascarar esse arremedo de afeto e deixar visíveis as feridas sem demasiado verniz literário.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:26
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Não Humano

No prólogo de Não Humano o narrador descreve três fotografias de um homem: em criança, como estudante e, na última, de idade indefinida. São todas monstruosas porque o rosto não tem indícios de humanidade, tão inexpressivo quanto o de um macaco. O livro consiste nos três cadernos de memórias desta personagem, Yozo, um homem incapaz de se ligar à humanidade, de sentir empatia pelos outros ou de sequer compreender as motivações alheias. No entanto, ao contrário de outros notáveis sociopatas e alienados literários (Raskolnikoff, Meursault ou K.), Yozo encontra uma forma de conviver em sociedade sem levantar suspeitas sobre o seu grau de afastamento em relação aos seus semelhantes. E essa forma é através da farsa, daquilo a que ele chama as suas palhaçadas. Yozo não tem “a mais pequena ideia de como ou quão extensas possam ser as angústias dos demais”, pensa que é “completamente diferente do resto” e confessa que sempre tremeu “com medo diante de humanos”, mas esse abismo entre ele e o resto do mundo não o incita a uma rebelião homicida: “Durante o curso da minha vida desejei inúmeras vezes ser vítima de uma morte violenta, mas nem uma vez ansiei por matar alguém.” O seu niilismo é virado para o interior, para o apagamento do eu e não para a eliminação do outro: “vou ser nada, o vento, o céu.” Todos os esforços são aplicados na construção de uma máscara que, no fim, acaba por ficar colada ao rosto. Yozo é um subhomem com consciência da sua estranheza melancólica. Mesmo nos momentos mais negros da sua existência está mais próximo da farsa do que da tragédia. Quando tenta suicidar-se com uma rapariga, ela morre mas ele sobrevive; toma dez comprimidos laxantes convencido que eram soporíferos; quando, sem saber bem como, se envolve nas atividades clandestinas dos comunistas depara-se, por acaso, numa posição de destaque (Kafka mas assumidamente burlesco). A sucessão de farsas, relações falhadas e episódios de degradação alcoólica ilustra o sentimento de auto-destruição da máscara que esconde o ser não-humano que Yozo sempre foi. Quase no final diz: “Deixara então de ser um humano”, mas desde o início reconhece que carrega com ele o peso da desumanidade.

 

Não Humano foi o último livro de Osamu Dazai (1909-1948), escritor japonês que conheceu grande sucesso na primeira metade do século XX. Supostamente autobiográfico, o livro continua a ser vendido no Japão, o que demonstra que, embora muito pessoal, as cordas da solidão e da despertença que Dazai tocou continuam a ressoar até hoje.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:24
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Memória do Fogo – 1. Os Nascimentos

Os Nascimentos é o primeiro volume da trilogia Memória do Fogo, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, conjunto de textos breves sobre a história do continente americano, desde as mitologias pré-colombianas às ditaduras militares do século XX. Este primeiro livro começa nas narrativas cosmogónicas dos povos indígenas e vai até 1700, universos separados por milhões de mortos, guerras, pestes, conquistas, traições, enriquecimentos, autos-de-fé, revoltas, ídolos queimados, templos e livros destruídos, conversões forçadas, tráficos de escravos, Deus e deuses. Desfilam os que marcaram a fogo a conquista e os que receberam essas marcas na pele: Cortés e Pizarro, Moctezuma e Túpac Amaru. A nenhum é negado o direito a ter voz, seja o imperador Carlos V, seja o escravo rebelde Hernando Maravilha. Cada um é parte de um todo múltiplo, contraditório, miscigenado e sincrético. A América é retratada como um lugar imenso de prodígios e selvajarias, de cidades de ouro nunca encontradas e de selvas repletas de cadáveres, de utopias tentadas e de intolerâncias assassinas, de atos de heroísmo e de atos de crueldade, de homens movidos pelo ideal e de homens atiçados pela ganância, do amor cristão deturpado a ponto de levar um chefe índio a escolher as chamas do inferno aos refrigérios do céu, por ser este a morada eterna dos cristãos.

 

Este último episódio foi recriado por Galeano a partir da Brevíssima Relação da Destruição das Índias, de Bartolomé de Las Casas. Em cada um dos textos, o autor refere sempre as obras de referência consultadas e a data e o local do acontecimento. Apesar disso, Memória do Fogo não é uma recolha histórica ou uma coletânea antropológica. Parte de uma base documental, é certo, mas tempera os factos no fogo da linguagem. Faz da história morta uma memória viva, poética, ardente. Neste sentido, o livro faz parte de uma das grandes conquistas culturais dos povos da América Latina: a narração da própria história através da literatura. Os autores latino-americanos têm-no feito de formas muito diferentes, uns mais próximos da herança europeia, outros reinventando tradições ainda mais antigas, quase todos aliando à criação artística individual o refazer de uma identidade coletiva estilhaçada. Contar histórias é contar a História. Salvar um homem do esquecimento é a pedra angular do edifício da memória, até da memória vasta de todo um continente. Não interessa, portanto, saber com que linguagem e em que género literário o escritor mergulha as mãos no tempo. O próprio Galeano ignorava a que género pertencia “esta voz de vozes.” Interessam somente essas vozes resgatadas de séculos de escuridão e de sangue e oferecidas ao leitor em palavras de fogo contra a amnésia.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:24
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Segunda-feira, 12 De Dezembro,2011

Sofia Tolstoi

Ser mulher de escritor é profissão ingrata. O génio irradia luz mas o lugar da mulher é à sombra. O talento do escritor é celebrado, mas os esforços da mulher em providenciar-lhe as condições ideais para a escrita são esquecidos. A ideia de colaboração não cabe na mitologia da criação artística.

 

Durante muitos anos, Sofia Tolstoi foi, aos olhos do mundo, a megera que enfraqueceu os poderes demiúrgicos de Lev Tolstoi. A biografia de Alexandra Popoff, que teve acesso a documentos até agora inéditos, é mais do que uma tentativa de promover Sofia ao cargo seráfico e passivo de mártir. É um esforço sério de demonstrar o papel crucial que desempenhou na produção de obras-primas absolutas como Guerra e Paz e Ana Karenina e de clarificar a forma como a própria entendia o seu lugar de mulher de um gigante das letras. Popoff demonstra que Sofia Tolstoi nem sempre sentiu o seu papel como um fardo, porque a “escrita dele conferia-lhe um sentido de missão” (p. 101). Tinha consciência do génio do marido, da magnitude da obra e era feliz por participar naqueles que podem ser considerados os empreendimentos literários mais ambiciosos da literatura oitocentista. Não só através da organização da vida familiar, mas também da colaboração direta na feitura da obra. Sofia copiava os capítulos dos romances e sentia justificadamente essa tarefa como um privilégio. No entanto, as gravidezes consecutivas (dezasseis), a educação dos filhos e a dimensão da obra do marido obrigaram-na a deixar para segundo plano os seus próprios interesses artísticos e Sofia, sobretudo na última fase da vida, lamentava-o.

 

Não era fácil lidar com a personalidade avassaladora do marido e com as suas incoerências. A diferença de idades e o estatuto de Tolstoi eram o suficiente para que Sofia se culpasse quando as coisas não corriam bem: “Sempre que discutiam, Sofia tornava a sentir-se «como um demónio perante um santo»” (p. 43). Porém, enquanto a santidade de Tolstoi se cingiu a uma esfera simbólica, o casamento funcionou. Enquanto a literatura foi a religião do marido, Sofia realizava-se no apoio total que lhe dava. A partir do momento em que Tolstoi, marcado pela culpa das riquezas que acumulara, decidiu que a santidade literária não lhe chegava, o idílio conjugal terminou. À procura de um sentido espiritual profundo, renegou as obras que o mundo admirava e enveredou parcialmente por uma via crística de ascetismo e desprendimento material. Dizemos parcialmente porque, segundo Popoff, Tolstoi nunca se privou de alguns caprichos dispendiosos (a criação de cavalos, por exemplo) e porque o abandono ia apenas ao ponto de se furtar às responsabilidades de ordem prática (familiares e patrimoniais) que, fatalmente, recaíam sobre os ombros de Sofia, que via com desgosto o marido abdicar da sua obra literária para se emaranhar num misticismo ambíguo do qual era o profeta embora nem sempre o melhor seguidor.

 

Sofia não estava disponível para acompanhar o marido nesta inflexão existencial, quer por razões práticas (a educação dos filhos), quer por motivos religiosos - Tolstoi aspirava a um cristianismo puro não corrompido pela igreja, o que era uma afronta para a mulher, que para além disso considerava que a generosidade do marido para com os necessitados não servia para outra coisa que não fosse a delapidação do património, dado que não resolvia os problemas da miséria alheia e deixava a família em apuros.

 

A interpretação de Popoff é a de que Sofia queria a todo o custo proteger o talento do marido e que encarava com ânimo os sacrifícios exigidos pela obra, mas não os sacrifícios em nome da deriva metafísica de Tolstoi. Aquele não era o homem que Sofia amava e pelo qual estava disposta a imolar-se. Popoff situa aqui o início da lenda negra de Sofia Tolstoi. Com o marido rodeado de um séquito de admiradores e fiéis que disputavam ferozmente as atenções do profeta, Sofia viu o laço de cumplicidade e de comunhão de interesses quebrar-se. O autor de Guerra e Paz passou a ser um homem apostado em transformar o mundo, em extrair a verdade última dos evangelhos. Quando, a exemplo de Ana Dostoievski, Sofia se aventurou no negócio da edição, para publicar as obras completas do marido, teve de enfrentar as recriminações constantes deste, que a censurava por se preocupar com o dinheiro. Sofia defendia-se: “Estou velha, tenho os nervos em franja e não tenho tempo a perder com ideias.” (p. 204) e “não posso permitir que os meus filhos, que Deus me concedeu, se tornem patifes embrutecidos, para poder beneficiar desconhecidos.” (p. 205). Para Tolstoi, as preocupações com a família eram assuntos menores. Afinal, ele tinha a humanidade inteira para amar e educar. Levando à letra os ensinamentos de Cristo, o escritor tornado profeta, amava a humanidade e desprezava a família.

 

Embora o faça com intenções hagiográficas e num contexto de reabilitação da mulher de Tolstoi, Popoff vai assinalando as contradições da própria Sofia. Era feliz por fazer parte da vida de um homem célebre e admirado por milhões mas queixava-se que essa era uma vida de “trabalho e mais trabalho” (p. 135). Ao ler a peça O Poder das Trevas, reconhece que devia tratar o marido “com mais cuidado e consideração, poupando-o para que possa dedicar-se mais ao seu trabalho” (p. 186), mas mais tarde confessaria estar “farta de ser mulher de um homem famoso” (p. 236), porque para ela o marido era muito mais do que uma celebridade, “é toda a minha existência” (p. 296). A falta de reconhecimento dos sacrifícios a que se sujeitava em nome do génio trazia-lhe insatisfação: “Tenho de trabalhar em alguma coisa minha, ou a minha alma acabará por murchar [...] Cumpro o meu dever para com ele e isso traz-me alguma felicidade mas, por vezes, anseio por fazer alguma coisa diferente e nutro outros desejos.” (p. 274). O que era uma alegria transforma-se, então, num fardo: “suprimir eternamente esse desejo [de ter uma vida intelectual própria], para servir um génio, é um grande infortúnio.” (p. 299) Marido e mulher teciam as respetivas narrativas de martírio à volta do mesmo eixo: o génio dele. Naturalmente, a do escritor era mais convincente: “Aos olhos do mundo, ele não tem defeitos por ser um grande escritor.” (p. 280)

 

Era este o drama crucial da vida de Sofia Tolstoi. Os seus sacrifícios nunca poderiam ser devidamente reconhecidos, porque o génio absorvia todos os méritos e ser mulher de um era tido como recompensa mais do que suficiente. Em vez de um ser autónomo, com sentimentos e aspirações próprios, a sofrer pela morte de vários filhos, a carregar a culpa pelas desconsiderações do marido, Sofia era vista como um apêndice, um dano colateral da obra, uma nota de rodapé marginal ou, na lenda negra, como a responsável pelos tormentos espirituais do escritor. É possível que Sofia Andreevna tivesse conhecido uma existência mais feliz, mais realizada, sem Tolstoi. Por outro lado, dificilmente estaríamos a ler a sua biografia, um documento cujo interesse prova que só as histórias das famílias infelizes nos atraem.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:43
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Quarta-feira, 02 De Novembro,2011

A Cidade das Palavras

Este pequeno conjunto de ensaios do escritor Alberto Manguel pode ser resumido como uma apologia da função socialmente positiva da literatura e da importância desta como argamassa das sociedades humanas, da “cidade”. Na introdução, o escritor argentino alerta que as questões que irá tratar nos ensaios poderão não encontrar respostas satisfatórias. O que é natural, dada a magnitude de questões como, por exemplo, “de que forma a própria linguagem determina, limita e aumenta a nossa imaginação do mundo?” ou “como é que as histórias que contamos nos ajudam a compreendermo-nos e aos outros?” Num ensaio em que arrasa a retórica de George Steiner, o crítico James Wood aponta a formulação de questões para as quais o próprio Steiner não tem resposta como um dos seus principais defeitos, como se o facto de não haver respostas satisfatórias valorizasse por si o acto de se fazer aquelas perguntas. “Ele está fascinado pelo glamour do inefável”, diz Wood. A cultura e a erudição de Manguel (tal como as de Steiner) não estão em causa. Manguel passa de Arthur C. Clarke para Montaigne, de Alfred Döblin para Jack London, de Robert Louis Stevenson para Jorge Luis Borges sem ser hermético, exemplificando, numa sincera tentativa de chegar nas condições ideais de legibilidade ao outro, ao leitor. Mas algumas asserções, ainda que não possam ser consideradas falsas, tresandam a senso comum, como as repreensões moderadas de um pai amoroso. Eis um exemplo: “Ler é um trabalho de memória que nos permite, através das histórias, desfrutar da experiência passada de outros como se fosse nossa. Em certas condições, as histórias podem ser-nos úteis. Por vezes podem curar-nos, iluminar-nos e mostrar-nos o caminho.” (p. 19). Como pensador, Manguel é sofrível. Como leitor e intermediário entre a literatura e os restantes leitores, é excelente. É quando faz uso da sua erudição, sobrepondo imagens de obras de diferentes épocas, estabelecendo relações entre autores consagrados e outros quase esquecidos, detectando paralelismos improváveis, que Manguel é, paradoxalmente, mais original. Nenhuma das teses é revolucionária (a literatura como forma de compreendermos o outro e o mundo), mas a colagem hermenêutica de materiais diversos – o verdadeiro talento de Manguel – ajuda-nos a ler melhor. Sabendo que a grande vantagem da literatura é “o facto de não constituir dogma” (p. 30), o ensaísta não a empurra para o domínio do religioso e do inefável. Aproxima-a do nosso mundo e dessacraliza-a sem minimizar a sua importância. Quando diz que nem mesmo as melhores histórias nos podem salvar da nossa própria loucura, Manguel lembra-nos que a literatura, embora seja fundamental na construção das identidades, não é uma panaceia, não é uma alternativa secular às religiões que explicam, prometem e exigem tudo. Ao dizê-lo, presta o seu melhor serviço à literatura e aos leitores.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:22
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A Evolução de Deus

“Deus tomou o seu lugar no conselho divino; no meio dos deuses ele faz o seu juízo.” Proferida no interior de uma religião monoteísta esta frase tem uma ressonância herética. Seria mais adequada à mitologia de religiões antigas e de cultos pagãos, mas na verdade pode ser encontrada no Salmo 82. A versão oficial diz-nos que o monoteísmo surgiu do nada, que o Deus Todo-Poderoso foi uma revelação (e revolução) súbita no monte Sinai e fez tábua rasa de todas as religiões e deuses falsos que o precederam. Preceder não é o verbo correcto porque, para todos os efeitos, Iavé, o deus dos israelitas, é o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim. E é assim que aqueles que acreditam num Deus único gostam de o ver. A possibilidade de que o seu Deus tenha emergido de um caldo variado de divindades é quase uma blasfémia. Pouco preocupado com as sensibilidades dos crentes, Robert Wright demonstra que a origem do monoteísmo é mais politeísta do que se pensa. A ideia, expressa no título, é que o conceito de divindade, como qualquer criação da mente humana, evolui, adapta-se e está sujeito a influências mundanas. Sintetizando: “As circunstâncias mudam e Deus muda com elas” (p. 242).

 

No longo e sinuoso trajecto que vai dos deuses tribais, antropomórficos e vingativos à ideia de um Deus universal, abstracto e compassivo, a eclosão do monoteísmo é o que mais se aproxima de uma revolução, de uma mudança brusca de paradigma. Mas é exactamente a transformação “revolucionária” que torna mais fiável uma teoria “evolucionista”. É impossível acreditar que sociedades politeístas tenham, de um momento para o outro, curvado a espinha perante um deus ex machina, totalmente alheio às suas crenças e desvinculado das suas tradições. A hipótese de Wright, a de que o monoteísmo resulta de um processo de selecção cultural, feito de avanços e recuos, partindo do politeísmo e passando por uma fase intermédia de monolatria, é bem mais plausível. A própria evolução de Iavé ao longo das Sagradas Escrituras é um argumento a favor da tese de Wright. Se, por hipótese, excluíssemos a teoria da evolução da divindade, nenhuma solução permitiria reconciliar o Deus vingativo que promete destruir os adversários de Israel com o Deus misericordioso que nos exorta a amar os nossos inimigos. Há aqui uma evolução nítida um crescimento moral, que Wright explica com recurso às condições políticas, externas e domésticas, do berço de Iavé, Israel. Como diz Régis Debray no seu Deus: Um Itinerário (Âmbar), Iavé começou por ser “um deus local entre outros” (p. 89). Numa época em que identidade nacional e religiosa não se distinguiam, as alterações no quadro político tinham uma influência directa na esfera do divino (“uma política cá de baixo projectada no mundo do alto”, Debray, p. 53). Permanentemente acossada e, por vezes, humilhada pelas grandes potências regionais (Assíria e Babilónia), a nação de Israel forjou uma identidade na adversidade, ancorada na ideia de um Deus único, de tal forma poderoso que utilizava os exércitos inimigos para demonstrar o seu ponto de vista. O que começou como um negócio local evoluiu para uma multinacional do divino (metáfora sobreutilizada por Wright), derrotando a concorrência quer através de fusões inteligentes (Iavé herdou muitas das características dos seus rivais), quer através da simples aniquilação. O destino deste trajecto foi o ponto em que Iavé não era apenas o mais importante dos deuses, mas o único a que era reconhecido o direito de existência. Todos os outros foram empurrados para a categoria das mitologias primitivas, dos contos de fadas. Para esse desfecho, a ajuda de alguns reis israelitas (como o monólatra Josias) foi fundamental.

 

Saber se foi a política a influenciar a teologia ou se foi a teologia a encaminhar a política para o monoteísmo, não é fundamental dado que as duas dimensões eram praticamente indissociáveis. O que Wright afirma é que o monoteísmo foi uma opção mais ou menos consciente que, em determinada altura, cimentou o poder político e beneficiou a facção religiosa que o defendia (os sacerdotes não eram, na altura, anjos apolíticos e desinteressados, até porque a religião não era entendida como a vemos hoje, uma dimensão autónoma da sociedade. Wright menciona que o antigo hebraico não tinha uma palavra para definir religião.) Este raciocínio não atira a religião para uma função meramente instrumental, sem agenda ou interesses próprios, e não exclui a teologia como motor das alterações, mas é inegável que acentua o lado estratégico das crenças em detrimento da sua natureza teológica. Wright vê no triunfo do cristianismo (uma invenção do apóstolo Paulo) um exemplo perfeito desta lógica. Na óptica do investigador, Paulo é mais um empresário à procura de expandir o seu negócio (neste caso, a religião) do que um doutrinador ou teólogo. O amor universalista (embora para Wright seja menos universal do que habitualmente se pensa) pregado por Paulo não seria o resultado de uma filosofia do amor, mas a melhor forma de manter a coesão da Igreja num contexto de rápido crescimento no interior do Império Romano. Wright entende o sucesso do cristianismo paulino como a prova de que as suas características foram definidas tendo o sucesso em vista, numa lógica  empresarial, como se a promessa de vida depois da morte fosse o equivalente religioso das promoções dos hipermercados. O risco deste tipo de leitura é o de atribuirmos intenções em função dos resultados. Que a religião existe para suprir necessidades espirituais e morais dos seres humanos é um facto. Como essas necessidades variam de época para época, temos de admitir que a religião (o conceito de divindidade, aquilo que oferece em troca aos crentes) evolui ao ritmo dessas mudanças, mas sem exagerar na metáfora do mercado (Wright descreve Maomé “como um homem que teve o génio de preencher um nicho espiritual” p. 443). Quando Fílon de Alexandria conciliou Atenas e Jerusalém (capítulo 8), a ciência e a religião, através do Logos, não o terá feito por pensar que isso resultaria no crescimento da religião, mas provavelmente porque estava a tentar resolver um dilema interior, natural num homem que cresceu entre dois pólos aparentemente antagónicos. A solução que encontrou teve sucesso porque o dilema que enfrentava era partilhado por uma parte significativa da sociedade, ou seja, a sua proposta revelou-se socialmente útil.

 

A redução da evolução de Deus a uma lógica mercantilista, a uma questão de oferta e de procura – que tem alguma utilidade analítica – põe em segundo plano comparações, que não devem ser desdenhadas, com a filosofia e a literatura. Se é possível ver o apóstolo Paulo como um empresário no negócio da religião, também é possível vê-lo como um filósofo na bolsa de valores das ideias ou um escritor no mercado das narrativas. Aquela, como vimos, é a perspectiva de Wright, e explica que foi o sucesso a orientar a doutrina de Paulo. As outras privilegiam o lado filosófico e literário. Um filósofo não pensa em função da eventual popularidade das suas teorias, tal como um verdadeiro escritor não escreve para ter sucesso. Podem desejar o sucesso, mas não é isso que os move para o pensamento e para a escrita. São conceitos como a verdade e a beleza que os motivam. Conceitos que estão mais próximos da religião do que o conceito de troca comercial. Algumas orientações religiosas estão relacionadas com as expectativas dos seus seguidores (pensemos na discussão sobre o celibato dos padres ou a ordenação de mulheres) e, concomitantemente, com a sobrevivência de determinada religião. Mas o instinto de sobrevivência não é património exclusivo do mundo empresarial, daí que o cinismo implícito naquela metáfora a torne apenas parcialmente eficaz. Podemos dizer que, neste ponto, Wright leva longe de mais a sua tentativa de drenar o absoluto da religião, uma tarefa que leva a bom porto na maior parte do livro. Se tivéssemos de escolher uma frase drástica para resumir a “tese orientadora” de Wright seria: a religião não tem nada de absoluto. A história ensina-nos que a religião não tem de ser boa ou má, beligerante ou tolerante; não é, numa palavra, determinista. A religião existe para responder às necessidades dos homens. O seu aparecimento, de uma ou de outra forma, em todas as sociedades prova que existem determinadas questões comuns a toda a humanidade, mas que não conferem à religião um carácter ahistórico e transcendente. Para Wright, a religião obedece sempre aos factos no terreno, adequa-se aos interesses circunstanciais dos seus seguidores: “Os deuses falam através dos seus seguidores, portanto, quando mudam as interpretações maioritárias de um deus, o próprio carácter do deus muda” (p. 245). Para os fiéis, esta absoluta contingência da religião e da divindade, a ideia de que Deus pode ser o que quiserem que ele seja, é difícil de aceitar. Para os restantes, que olham de fora os conflitos religiosos do nosso tempo mas que são afectados por eles, é uma mensagem de esperança ambivalente: Deus existe e o seu futuro está nas mãos dos que nele acreditam.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:21
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Domingo, 18 De Setembro,2011

Flores Azuis

Flores Azuis pode ter ganho a Copa de Literatura Brasileira, mas a exibição não convence. O romance de Carola Saavedra começa com a carta de uma mulher ao ex-amante cheia de tua-boca-na-minha-boca e será-que-te-lembras?-não-não-te-lembras. O leitor impaciente pode sentir-se tentado a deixar a personagem entregue ao seu onanismo epistolar. Seguem-se mais oito cartas intercaladas pela história do homem que, acidentalmente, as recebe. Na ressaca de um divórcio, Marcos, o novo inquilino do apartamento onde vivia o amante da mulher que escreve as cartas, não resiste à tentação de as ler. E naquelas palavras encontra uma promessa de mulher totalmente diferente das que conhece: a ex-mulher, a actual namorada e até a própria filha de três anos, que é menos uma criança do que uma incubadora de defeitos femininos. As personagens femininas são um autêntico auto-golo. A namorada e a ex-mulher são como a frente e o verso de uma figura de cartão, sem outra função que não seja a de levar Marcos a concluir que “o mundo das mulheres é um mundo fechado[...], um mundo à parte” (p. 69). “Mulheres-vampiro”, belas e exigentes, são meros acessórios narrativos sem qualquer espessura dramática. E quando as personagens são frágeis, a fé do leitor vira-se para a prosa, embora a de Carola Saavedra não chegue para salvar o livro da mediania. Há uma intensidade lírica, sobretudo no formato epistolar, feita de reiterações e dupla adjectivação (“mas você aí, alheio, mudo” p. 6; “o teu rosto tenso, apreensivo” p. 7; “Eu fiquei ali, imóvel, muda” p. 39; “teu jeito dócil, indefeso” p. 59), que corteja o género de impressionismo vago que desconhece o conceito de mot juste. A prosa poética é sempre uma linha magra entre o sublime e o sentimentalismo pueril. Noutros momentos, acontece aquilo que os brasileiros chamam pisar na bola. “As crianças deveriam vir com um manual de instruções” (p. 15) e “todas as mulheres eram assim, exigiam atenção, segurança e uma expectativa que ele não sabia qual era” (p. 101) soam a banal psicologia de revista de domingo.

 

A melhor jogada do livro é a ideia wittgensteiniana segundo a qual os limites de uma relação são os limites da linguagem que a descreve. Ao revisitarem o momento da separação, as cartas prolongam a relação, como se esta não pudesse terminar enquanto as palavras a reinventassem. A., a autora das cartas, quer salvar através das palavras aquilo que foi destruído pelas palavras, pelos mal-entendidos. Como as cartas são um trabalho de reconstituição da relação, dispensam o destinatário, bastam-se a elas próprias (“sou apenas eu, eu tudo, o desejo, a escrita, a leitura” p. 21). O amor, o ódio, a violência, o sexo, um punho que entra no corpo da mulher, não acontecem no momento em que acontecem. Acontecem depois, inteiros e nítidos, nas palavras. Terá sido o suficiente para levar a Copa para casa, mas, tal como o Brasil dos dois trincos, o conjunto não encanta.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 23:00
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