Balas de prata

Narcotráfico, violência urbana e corrupção: a realidade mexicana oferece a dose certa de ingredientes para um bom romance policial. Talvez lhe falte um Rubem Fonseca. Embora menos visceral do que o escritor brasileiro, Élmer Mendoza (n. 1949) consegue, com mestria, trazer aqueles elementos para a literatura. Edgar, o Canhoto, Mendieta, o anti-herói do romance, é um polícia que detesta policiais. É compreensível. Enquanto que nos maus romances do género há sempre um crime que liberta o caos e um detective que, ao descobrir a verdade, repõe a ordem, em Balas de Prata o detective é uma peça do caos. Mendieta não tem ilusões. “Não acredito que me tenha feito polícia para proteger os fracos e fazer justiça; queria ganhar dinheiro e sair daqui o mais rápido possivel. Contudo ficaste. Uma pessoa acostuma-se a tudo” (pp. 12-13). A vida desarrumada de Mendieta é moldada pela inércia. Uma desarrumação na qual se pode encontrar um sentido heróico a posteriori. A incorruptibilidade de Mendieta não é de natureza ética. É meramente circunstancial. Tornou-se inimigo de quem poderia enriquecê-lo e abandonou a Brigada de Narcóticos, abdicando dessa forma “da riqueza fácil e expedita” (p. 70). Quando recusa um suborno, Mendieta não o faz em nome da virtude, mas em nome do desprendimento que o leva a dizer que “não há nada que deseje tanto como ver esta vida acabada” (p. 129). Existirá virtude na imobilidade? Élmer Mendoza escolheu para epígrafe uma frase de Einstein: “Não é por causa dos homens que fazem o mal, mas dos que ficam sentados a ver o que acontece que a vida é perigosa”. Edgar Mendieta combina a inércia dos desiludidos (“Os culpados é que me descobrem a mim” p. 99) com a atitude provocadora do homem que nada tem a perder, que o escritor James Baldwin definia como “a criação mais perigosa de qualquer sociedade”. Por causa do abuso de que foi vítima na infância e das feridas recentes de um amor falhado, a coragem de Mendieta está despida de qualquer idealismo. O seu anti-heroísmo é feito de obstinação trágica. Aos poderes que o tentam “arrumar”, pôr na ordem, responde com a recusa em desimpedir o caminho. Estar parado pode ser um acto de resistência. Por esse motivo, Mendieta é um perigo para esses poderes que afronta, o narcotráfico e a corrupção instalada, e um perigo ainda maior para ele próprio.

 

O policial pede a frase curta, ir direito ao assunto. Na escrita de Élmer Mendoza, os cortes sucessivos, como na montagem televisiva, e a referência telegráfica aos espaços e aos ambientes (Sala de Espera. Clarabóia. Silêncio. Penumbra) não servem apenas uma economia descritiva; plasmam o ritmo acelerado da cidade e intensificam os perigos da investigação. Embora dentro das regras e (alguns) clichés do género (crime, investigação, desfecho, sexo, violência, mulheres fatais), Balas de Prata não se reduz a um policial de intriga escorreita e final tranquilizador. A descoberta da verdade e a punição, à margem da lei, do culpado não têm um efeito terapêutico. Resolve-se o caso mas não o caos. Porque a ordem é o grande engano do poder, mas isso é outra história.

 

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:05
link do post