Quarta-feira, 02 De Novembro,2011

A Cidade das Palavras

Este pequeno conjunto de ensaios do escritor Alberto Manguel pode ser resumido como uma apologia da função socialmente positiva da literatura e da importância desta como argamassa das sociedades humanas, da “cidade”. Na introdução, o escritor argentino alerta que as questões que irá tratar nos ensaios poderão não encontrar respostas satisfatórias. O que é natural, dada a magnitude de questões como, por exemplo, “de que forma a própria linguagem determina, limita e aumenta a nossa imaginação do mundo?” ou “como é que as histórias que contamos nos ajudam a compreendermo-nos e aos outros?” Num ensaio em que arrasa a retórica de George Steiner, o crítico James Wood aponta a formulação de questões para as quais o próprio Steiner não tem resposta como um dos seus principais defeitos, como se o facto de não haver respostas satisfatórias valorizasse por si o acto de se fazer aquelas perguntas. “Ele está fascinado pelo glamour do inefável”, diz Wood. A cultura e a erudição de Manguel (tal como as de Steiner) não estão em causa. Manguel passa de Arthur C. Clarke para Montaigne, de Alfred Döblin para Jack London, de Robert Louis Stevenson para Jorge Luis Borges sem ser hermético, exemplificando, numa sincera tentativa de chegar nas condições ideais de legibilidade ao outro, ao leitor. Mas algumas asserções, ainda que não possam ser consideradas falsas, tresandam a senso comum, como as repreensões moderadas de um pai amoroso. Eis um exemplo: “Ler é um trabalho de memória que nos permite, através das histórias, desfrutar da experiência passada de outros como se fosse nossa. Em certas condições, as histórias podem ser-nos úteis. Por vezes podem curar-nos, iluminar-nos e mostrar-nos o caminho.” (p. 19). Como pensador, Manguel é sofrível. Como leitor e intermediário entre a literatura e os restantes leitores, é excelente. É quando faz uso da sua erudição, sobrepondo imagens de obras de diferentes épocas, estabelecendo relações entre autores consagrados e outros quase esquecidos, detectando paralelismos improváveis, que Manguel é, paradoxalmente, mais original. Nenhuma das teses é revolucionária (a literatura como forma de compreendermos o outro e o mundo), mas a colagem hermenêutica de materiais diversos – o verdadeiro talento de Manguel – ajuda-nos a ler melhor. Sabendo que a grande vantagem da literatura é “o facto de não constituir dogma” (p. 30), o ensaísta não a empurra para o domínio do religioso e do inefável. Aproxima-a do nosso mundo e dessacraliza-a sem minimizar a sua importância. Quando diz que nem mesmo as melhores histórias nos podem salvar da nossa própria loucura, Manguel lembra-nos que a literatura, embora seja fundamental na construção das identidades, não é uma panaceia, não é uma alternativa secular às religiões que explicam, prometem e exigem tudo. Ao dizê-lo, presta o seu melhor serviço à literatura e aos leitores.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:22
link do post
Segunda-feira, 31 De Janeiro,2011

Dr. Vargas e Mr. Llosa?

Em ensaio dedicado a Mario Vargas Llosa, “O Fotógrafo Cego” [No Bosque do Espelho, Dom Quixote, 2009], o escritor Alberto Manguel atribui à “individualidade política” do peruano “o espantoso fracasso do seu romance de 1993, Lituma nos Andes.” Manguel considera-o um romance racista que fracassa “porque o seu racismo impede Vargas Llosa de escrever bem – isto é, impede-o de dar aos seus personagens, mesmo àqueles que abomina, uma alma [...].” Lituma nos Andes, sem dúvida um romance menor, seria um ajuste de contas literário pela derrota de Vargas Llosa nas eleições presidenciais peruanas de 1990, que o escritor perdeu para Alberto Fujimori. Na opinião de Manguel, há dois Vargas Llosa: um é o autor de romances “ambiciosos, sábios, arrogantes, espansivos”, o outro é “o seu incompetente leitor”, o Vargas Llosa político que transbordou para a literatura naquele romance falhado. Esta separação é, por várias razões, desadequada e injusta. Na análise de Manguel, Vargas Llosa é um Dr. Jekyll literário que à noite se transforma num Mr. Hyde reaccionário. Esta é uma visão superficial. Os romances do escritor peruano têm uma dimensão política - embora estejam muito longe de se esgotar aí - que não convida a destrinças maniqueístas. A justificação certeira da Academia Sueca para a atribuição do Nobel a Vargas Llosa (“pela sua cartografia das estruturas de poder e pelas suas imagens incisivas da resistência, revolta e derrota do indivíduo.”) capta a polpa política de uma obra que é também um dos cumes da literatura mundial do século XX. A política é tratada de forma mais directa em Conversa n’A Catedral, A Guerra do Fim do Mundo ou A Festa do Chibo, mas estes romances partilham com A Cidade e os Cães, O Elogio da Madrasta, Os Cadernos de Dom Rigoberto, A Tia Júlia e o Escrevedor e O Paraíso na Outra Esquina o tema da utopia da liberdade individual e da luta solitária do indivíduo contra as estruturas que o anulam. Os protagonistas enfrentam obstáculos que os afastam da bolsa de liberdade onde as únicas regras válidas são as suas e os únicos fins são o prazer e a realização pessoal. Este individualismo nunca é patológico ou misantrópico. É a defesa natural de quem procura manter o espaço privado a salvo de interferências externas. O herói típico de Vargas Llosa não foge do mundo, mas precisa de um refúgio que o ajude a manter a sanidade necessária para se relacionar com esse mundo. Isto é política num sentido amplo e faz do exercício de determinar onde acaba o Vargas Llosa “bom” e onde começa o Vargas Llosa “mau” uma inutilidade que só pode ser explicada pela discordância (legítima) de Manguel em relação a posições políticas, stricto sensu, de Vargas Llosa.

 

Roger Casement, o centro de O Sonho do Celta, é mais um naquela linhagem de heróis llosianos. Casement, figura histórica da luta irlandesa pela independência, foi condenado à morte por traição e executado em 1916. Anos antes, enquanto representante da Coroa britânica, denunciara as atrocidades cometidas no Congo, então sob domínio belga, e nas explorações de borracha na selva amazónica peruana. Dedicou-se depois à causa da emancipação irlandesa e, durante a I Guerra Mundial, procurou o apoio da Alemanha para combater os ingleses. No meio de inúmeras peripécias, Casement, que regressava à Irlanda para tentar impedir os seus correligionários de avançarem para uma empresa suicida, foi preso e condenado à forca. Simultaneamente, foi levada a cabo uma campanha de difamação baseada nos diários de Casement. Homossexual, nos seus diários descrevia telegraficamente muitos dos seus encontros sexuais, reais ou imaginados. As contradições de Casement foram a sua glória e a sua ruína. Dos crimes colonialistas que testemunhou em África e na Amazónia inferiu a necessidade de libertação da Irlanda do jugo britânico. Donde a transformação: da defesa dos valores universais e dos direitos humanos passou para um patriotismo fervoroso, quase fanático, embora distante da via messiânica e sacrificial preconizada por outros líderes. Ao mesmo tempo, Casement criou uma redoma não contaminada por esta dimensão política, por estas noções de dever, através da ficção sensual dos seus diários, os seus paraísos privados. E com isto inscreve-se na tradição dos heróis llosianos: obrigados a fazer cedências no mundo real, estes heróis constroem mundos interiores, oásis de liberdade individual. Os diários de Casement são o equivalente dos cadernos de Dom Rigoberto e das loucas ficções de A Tia Júlia e o Escrevedor.

 

É lícito vermos em Roger Casement não só uma criação típica do seu autor, mas também um argumento em defesa deste. Quem foi, afinal, Roger Casement? Um humanista ou um patriota fanático? Um corajoso defensor de causas nobres ou, como o acusaram os seus inimigos, um pervertido? Ou tudo isto ao mesmo tempo? Talvez seja esta a visão mais justa e válida do próprio Vargas Llosa que, quer enquanto romancista, quer na sua aventura política, sempre teve o mérito de nunca se ter escondido. Críticas como as que Alberto Manguel lhe dirige são o preço a pagar por essa exposição, por essa coragem de enfrentar o mundo fora do trono do seu estatuto literário. Como muitas das suas personagens, ao sair da literatura para entrar no combate político, Vargas Llosa prescindiu do ideal, da cátedra moral dos livros, para negociar no purgatório do possível. Os dois são o mesmo; não se anulam, engrandecem-se. E mesmo quando avaliada sob o ângulo estreito da política ou em função de um romance menos conseguido, a qualidade literária e a dimensão humana e universal da obra são inquestionáveis. Qualidade que é reforçada com este O Sonho do Celta. Não tem, é certo, o arrojo estrutural de Conversa n’A Catedral, ou a exuberância verbal e de imaginação de A Tia Júlia e o Escrevedor. O tom é mais neutro, factual, jornalístico, mas o domínio dos tempos narrativos continua perfeito, embora exibido de forma menos radical. O Sonho do Celta é um romance de uma segurança só possível num escritor que já nada tem a provar e em absoluto acordo com a sua condição de clássico contemporâneo.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:03
link do post

mais sobre mim

pesquisar

 

Março 2013

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

tags

todas as tags

blogs SAPO


Universidade de Aveiro