A Questão Camus
No seu ensaio Os Cadernos de Camus (1963), Susan Sontag afirma que “a sua [de Camus] obra, vista unicamente como realização literária, não [é] suficientemente grande para suportar o peso da admiração que os leitores lhe querem tributar” e que o juízo que se faz de Camus “é simultaneamente pessoal, moral e literário”. Sontag reconhece que Camus foi amado como poucos escritores e que a sua morte foi sentida como uma perda pessoal por todo o mundo literário. Enquanto que, para Sontag, Kafka inspirava piedade e temor, Joyce, admiração, Proust e Gide, respeito, Camus era o único que inspirava amor. Que espécie de amor é este? Quais as qualidades de Camus que o fizeram tão amado pelos leitores ainda que Sontag considere que a sua obra se encontra num patamar inferior ao de outros escritores do século XX? A explicação mais óbvia será a personalidade de Camus, o último dos justos, as suas participações cívicas, as suas opiniões políticas, até a sua imagem atraente, cinematográfica. Mas este é um julgamento que projecta na obra as virtudes pessoais do autor e que acaba inevitavelmente na sobrevalorização. Considerando que nem todo o amor que lhe tributaram teria origem nas qualidades pessoais de Camus, é na obra que teremos de encontrar as virtudes morais e literárias que atearam sentimentos que normalmente reservamos para os que nos são próximos. Para Sontag, a causa desse amor é somente moral (no sentido literário) e pouco se deve aos méritos exclusivamente literários. Logo no início do ensaio, coloca Camus no campo dos “maridos” literários, em oposição ao dos amantes. Camus seria amado por oferecer qualidades expectáveis no “marido” e particularmente valorizadas num tempo em que a maior parte dos escritores quer ser o “amante”. É o primeiro dos presentes envenenados de Sontag, porque, recorrendo a uma metáfora burguesa, arruma Camus na prateleira da convenção. E não é inocente que a metáfora jogue com as qualidades pessoais, e com os preconceitos de “marido” e de “amante”. Subtilmente, continuamos no plano das qualidades pessoais, ainda que utilizadas como metáfora para as qualidades literárias. O segundo presente envenenado de Sontag é quando se refere à beleza moral da obra de Camus. É mais um presente envenenado porque Sontag não diz que se trata de uma obra bela e, ao mesmo tempo, moral, mas que a única beleza que lá se encontra é de fundo moral, logo, uma beleza inferior. Para Sontag, a beleza da solução moral proposta (se assim se pode dizer) por Camus está desligada da forma como o escritor expressa a solução, é esteticamente neutra, é uma emanação de bom senso literário, correspondente à ideia mansa de “marido”. No fundo, Sontag considera que Camus falha a excelência literária mas atinge uma espécie de santidade profana que encontrou eco nos leitores mais necessitados de coordenadas espirituais e morais do que de rasgos estéticos (como os do nouveau roman, tão apreciado por Sontag) . Daí que, hoje em dia, seja comum a opinião segundo a qual Camus é um escritor para adolescentes, para leitores à procura de orientação. O consolo moral que os seus livros proporcionam também não é bem visto por uma época em que apenas o consolo estético é admissível. Esta postura é sintetizada por Sontag da seguinte forma: “Partindo das premissas de um niilismo popular, conduz o leitor – unicamente graças ao poder da tranquilidade da sua voz e do seu tom – a conclusões humanistas e humanitárias que de nenhum modo estavam implícitas nas premissas. Este salto ilógico por cima do abismo do niilismo é o dom pelo qual os leitores estão gratos a Camus.” (p. 81) Camus seria, então, mais do que um escritor, um flautista de Hamelin que leva os ratos (os ratos, claro) para fora da cidade, um encantador que no seu tom monocórdico e hipnótico, mas pobre do ponto de vista artístico, seduz as massas. Como no caso do flautista, pouco interessam os seus dotes de intérprete, mas o carácter funcional da música. A frase citada é outro dos presentes envenenados de Sontag. Os adjectivos “popular” e “ilógico”, a forma como passa do “humanismo” para o “humanitarismo”, a tranquilidade da voz e, por fim, a gratidão do leitor para com o escritor: Sontag, de modo gracioso, encosta Camus às cordas de uma espécie de literatura de auto-ajuda sofisticada. A violência vem depois: “Não há em Camus nem arte nem pensamento de altíssima qualidade.” É então que fala da beleza moral. No entanto, para aceitarmos a ideia de uma beleza moral independente da sua expressão estética, teríamos de aceitar a beleza de qualquer obra moral e a fealdade de qualquer livro imoral. O que acontece é que as qualidades estéticas valorizadas por Sontag não se encontram na obra de Camus, e não se podem encontrar nas obras dos “maridos”.
O estilo de Camus (a tranquilidade da sua voz) não é apenas o veículo de uma proposição moral, é também uma afirmação estética. A música celineana (e Céline é um óptimo anti-Camus), o calão, a pontuação epiléptica, as imprecações, é apenas estilo? Como não ver no tumulto linguístico de Céline o pessimismo antropológico, a descrença no homem, a doença do homem, a podridão, a corrupção, a mesquinhez, a falta de esperança? O estilo só serve para transportar a (ou a falta de) moral? Ou é a moral que pede o estilo? Uma coisa é certa: é injusto ver o propósito estético nos gritos e nos urros de Céline e negá-lo na voz serena e nítida de Camus, apenas porque esta nos fala de uma esperança no homem. Falando de uma arte que é pura forma, podemos perguntar-nos como Lukács, citado por George Steiner, se haverá um único compasso de Mozart que exprima um mal intrínseco e, se não há, em que é que tal diminui a grandeza artística de Mozart. A tranquilidade, a serenidade, a limpidez da prosa de Camus não são uma emanação das virtudes humanas do autor, da mesma forma que a escrita de Céline não é uma ejaculação arbitrária de ódio. São as ferramentas dos respectivos processos artísticos: um que se estriba no rigor e na secura do verbo, outro que os estilhaça.
A questão que Sontag nunca coloca de forma aberta, mas que percorre todo o ensaio, é a de saber se ainda é desejável, necessária ou aceitável uma literatura moral; uma literatura, como a de Camus, que proponha o problema moral aos seus leitores. É verdade que, com o tempo, aquilo que é moral corre o risco de ser lido como moralista, a padecer do que Sontag chama de sentenciosidade ou inoportunidade. Porque uma moral é sempre uma resposta ao mundo, um guia nas trevas, um manual de conforto e isto choca com a ideia de uma literatura que nos interroga, que nos provoca, que nos inquieta. Este conforto que a obra de Camus proporciona é precisamente o que incomoda Sontag que vê aí a convenção, o prosaísmo e todas as qualidades burguesas do “marido”: estabilidade, inteligibilidade, generosidade e decência. Esquece-se de que não há no estilo Camus qualquer excesso proselitista, qualquer vocação sermónica. Não há uma vontade de melhorar o leitor, e isso faz toda a diferença porque é o que separa o romance moral do romance moralista. Há um rigoroso controlo da ênfase e da sintaxe. A temperança, a mediocritas, o nunca elevar a voz acima do exigido para se fazer ouvir, o não confundir estridência com razão, o não substituir a convicção pela retórica são opções estéticas onde a firmeza moral se alicerça. Como não admirar a concisão estética, a beleza moral desta frase: “il y a dans les hommes plus de choses à admirer que de choses à mepriser”? Esta frase não pode ser julgada de um ponto de vista meramente literário. A literatura não chega, a arte é insuficiente para tudo o que esta frase nos diz. Não haverá beleza no Sermão do Monte e nos diálogos platónicos? Não são as parábolas de Cristo cristalizações literárias de uma moral? Não é o oferecer a outra face um dos maiores desafios morais na violência filosófica e literária da sua imagem? O que seria então da Antígona, da Odisseia, do Dom Quixote, da Divina Comédia, se apenas as discutíssemos como obras de arte e não como visões do mundo, expressões de uma moral? A resposta à pergunta que abre este parágrafo é que continua a ser necessária uma literatura moral; é dos moralistas que não precisamos. O poder de um livro como A Estrada, de Cormac McCarthy, vem da sua natureza moral. A questão que coloca é próxima do universo da obra de Camus: é possível um comportamento moral num mundo sem Deus e sem esperança? Sontag considera que os imperativos morais propostos por Camus – amor, moderação – eram demasiado genéricos, abstractos e retóricos para os dilemas históricos e metafísicos que enfrentavam. De um ponto de vista filosófico talvez seja assim, mas de um ponto de vista humano, religioso e dramático, não. O amor pode não resolver todos os dilemas, mas é, tal como a solidariedade, um caminho, uma estrada.
No seu dicionário filosófico, Fernando Savater confessa o receio de, ao reler Camus, o achar atrasado, ou brando, ou sacristanesco, logo ele, que “foi tão amado.” De seguida, conforta-nos: “Camus não tem uma única ruga. Mais nosso que nunca: mais equânime, mais valente, mais tonificante e lúcido que nunca.” E acrescenta: “Face aos excessos por vezes impiedosos da liberdade que projecta e desfaz, defendeu os valores cálidos da vida que conserva e consola”. A crítica de Sontag dirige-se a este conservadorismo, que politicamente lhe valeu inimizades, e que artisticamente (e que é o que Sontag trata) se manifestava na sua voz também ela cálida, humana, como se do outro lado não estivesse um profeta nem um demagogo, antes o nosso semelhante. Sobre a Peste escreve Savater: “Este grande livro deixa igualmente insatisfeitos os puros estetas e os intransigentes do moralismo, os sublimes da perfeição sem compromissos e os mais preocupados em punir do que em fazer justiça; decepciona sintomaticamente aqueles que exigem a utopia de qualquer absoluto, mas é o mais limpo manifesto de “aqueles a quem basta o homem, e o seu pobre e terrível amor”” (p. 59).
Camus sofreu, e continua a sofrer, o facto de ter sido muito lido e muito amado. Outros, como Joyce, Proust, Woolf, Faulkner e, em menor grau, porque mais lidos, Kafka e Borges, beneficiaram do facto de serem menos lidos mas continuamente admirados à distância que separa o crente do altar, que separa o leitor do mistério que não lhe é acessível: quantos dos que não hesitam em falar da genialidade de Joyce, Proust e Woolf leram Ulisses, Em Busca do Tempo Perdido ou As Ondas? A legibilidade de Camus foi o seu grande pecado. Era demasiado acessível para que não fosse treslido, apoucado, menosprezado. Mas os seus livros estão aí, resistem a esse ataque que desdenha da beleza e da moral (e também da beleza moral) simples das suas palavras e das suas ideias. Literariamente, se isolarmos a estética, se isolarmos a literatura da atmosfera moral que respira, temos de reconhecer que outros escritores quebraram regras, foram muito mais longe do que Camus. Mas nenhum outro se aproximou mais do coração do homem, do seu centro moral. Cabe-nos a nós, seus leitores e admiradores, adolescentes de alma, perpetuar a sua voz, demonstrar que continua a fazer sentido, que continuamos a reconhecê-la como nossa, que permanece válida e importante não só na nossa relação com os livros mas na nossa relação com o mundo, na nossa relação com os outros, porque, a partir do momento em que a ouvimos pela primeira vez, inscreve-se no mundo, no mundo onde todos nós somos estrangeiros.