A Cor do Hibisco

“As coisas começaram a desmoronar-se em casa quando o meu irmão, o Jaja, não foi comungar (…)” O começo de A Cor do Hibisco remete-nos implicitamente para um dos romances seminais da literatura africana, Quando Tudo se Desmorona, de Chinua Achebe. No seu romance de estreia, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora do aclamado Meio Sol Amarelo, reclama a sua parte da herança e prolonga a fusão entre a literatura ocidental e as raízes africanas ou, adaptando, inglês correcto com sotaque e imaginário ibo.

 

A convivência entre as duas culturas nem sempre resultou na amálgama sólida de que é feita a literatura de Achebe e de Adichie. Neste romance, é a figura do pai de Kambili, a narradora adolescente, que representa a impermeabilidade dos dois mundos. Educado numa missão católica, o pai é “um puro produto do colonialismo”, alguém que obliterou a sua identidade africana e que exige o mesmo dos filhos, mesmo que tenha de recorrer a constantes abusos físicos e psicológicos. No entanto, este homem de uma severidade extrema é capaz dos gestos mais altruístas em benefício de estranhos e é proprietário de um jornal que denuncia corajosamente a corrupção do governo. Kambili tem dificuldade em conciliar as duas imagens do pai: o herói público e o monstro privado, que castiga os filhos com água a ferver, que espanca a mulher e que despreza o próprio pai. A ideia de pecado ensombra toda a existência de Kambili que só tem um vislumbre de uma outra vida quando vai visitar a tia. A casa de Ifeoma é um santuário de liberdade e de riso. A tia mostra-lhe que o avô não é um pecador pagão que mereça as chamas do Inferno e os olhos de Kambili abrem-se para esse novo mundo que existe para lá da disciplina paterna.

 

Para romance de estreia, A Cor do Hibisco revela uma autora surpreendentemente madura. O ponto de vista da narradora é coerente e temas que são lançados num determinado momento são recuperados mais à frente (as aparições em Aokpe, a visita ao monte Odim), criando um efeito de perfeição circular. A maturidade também se expressa nas personagens, agulhas de um sismógrafo que capta a turbulência social. A derrocada familiar é consequência dos abalos políticos. A forma como Adichie entrelaça os dois planos, sem excesso de melodrama e sem proselitismo político, é o grande trunfo do livro e um feito admirável para um primeiro romance.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:56
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