Uma Biografia dos Diabos

Ler a História Política do Diabo como um trabalho historiográfico pode ser demasiado exigente para o leitor incréu. Publicado em 1726, quando Daniel Defoe, autor de Robinson Crusoé, abandonara a ficção, o livro também não é uma sátira, não obstante o humor e a crítica social e religiosa que se encontram em algumas passagens. Para ser filosofia tem tudo, só lhe falta a filosofia a sério. Então, o que é este livro? O objectivo de Defoe seria o de provar que a crença na existência do Diabo não era uma questão de fé e que não implicava uma adesão a uma ideia folclórica da figura, que o próprio rejeitava. O Diabo não andava por aí a deixar um rasto de enxofre e a esconder o pé de bode, mas andava por aí a exercer o seu domínio sobre o mundo e a levar a cabo a sua vingança contra a humanidade. O livro teria a utilidade de mostrar aos leitores “aquilo que ele é e aquilo que ele não é” e “onde ele está e onde ele não está”, partindo da premissa que “aqueles que não conhecem o mal, não conhecem o bem”. A primeira parte da obra é, pois, dedicada a uma releitura dos sucessos do Diabo tal como os encontramos relatados no Antigo Testamento. Desde a tentativa falhada de putsch celestial aos acontecimentos no Jardim do Éden, da forma como Caim matou o irmão à desgraça pós-diluviana de Noé, da destruição de Sodoma e Gomorra ao sofrimento infligido a Job, Defoe analisa, interpreta, fabula (pp. 117-124), verseja (pp. 44-46; 73-75), traça o perfil criminoso de Satã e, en passant, arrasa John Milton e o seu Paraíso Perdido. Neste último ponto, História Política do Diabo pode ser lido como uma obra-prima de humor involuntário. Milton é acusado de ter escrito um bom devaneio poético “porém não baseado nas Escrituras ou na filosofia” (p. 85). Um dos seus pecados teria sido o de confundir anjos e santos, colocando estes últimos em acção antes da criação do Homem. Não é o mesmo que discutir o sexo dos anjos mas anda suficientemente perto para que classifiquemos a questão como bizantina e, a não ser que tenhamos a caridade de a ler como sátira, inequivocamente estulta. Quando não está a refazer o percurso do Diabo ou a espancar Milton, Defoe levanta questões filosóficas importantes, como a da natureza e origem do Mal (“como puderam as sementes do crime florescer na natureza angelical?” p. 72), embora nunca providencie respostas. O que lhe interessa é identificar as características do Diabo (como a incapacidade deste para prever o futuro, algo que Defoe repete quase a cada página) e as estratégias por ele utilizadas para atacar a humanidade. Esta primeira parte, na qual o autor revela um amplo conhecimento do Antigo Testamento, serve de longo intróito à segunda parte em que Defoe procura demonstrar, com vários e polémicos exemplos, que o Diabo continuava a agir, embora o fizesse de uma forma dissimulada, in tenebris. Defoe larga o osso de Milton e lança-se, mais coisa, menos coisa, às canelas do resto da humanidade: governantes, a Europa católica, muçulmanos e até mesmo aqueles protestantes que tinham afrouxado a adoração e o rigor no culto, mas também o homem comum, os bêbados e os caluniadores, as videntes e os astrólogos, todos seriam agentes, mais ou menos conscientes, ao serviço do verdadeiro monarca universal. Ao contrário do que acontecera nos tempos antigos, as tarefas do Diabo eram agora desempenhadas em out-sourcing, o que muito contribuía para a sua eficácia.

 

Os maus livros de História têm uma grande virtude: dizem-nos sempre mais sobre quem os escreveu e a época em que foram escritos do que sobre o eventual objecto de estudo. História Política do Diabo diz-nos muito sobre a mentalidade e os debates de uma época em que o Iluminismo começava a impor a sua luz às trevas do fanatismo e da superstição. Para Defoe, quer as superstições, quer o racionalismo, serviam os propósitos diabólicos. As primeiras transmitindo uma imagem errada do Diabo, o segundo negando a sua existência. Para os contrariar, criou uma prodigiosa arma de arremesso que ataca, de um só golpe, superstição e razão. Que a fonte historiográfica seja a Bíblia e que a análise dos factos seja condicionada pelo preconceito do autor, desacreditam o carácter pseudo-científico da obra, mas não lhe diminuem a importância enquanto documento histórico. Não é por Plínio descrever dragões que a sua História Natural é um documento menos relevante. O mesmo se pode dizer da obra de Defoe. Um clássico, sem dúvida, ainda que por razões não previstas pelo autor.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:47
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