Santa Maria do Circo

Após uma zanga entre os proprietários, os irmãos Alejo e Ernesto, o Circo Mantecón divide-se em dois. Don Ernesto parte com os artistas talentosos, enquanto Don Alejo fica com a tenda e o resto da trupe, incluindo a mulher barbuda e o anão. O livro acompanha a chegada deste último grupo a uma cidade-fantasma, nos confins do México. Os colonizadores baptizam o lugar com o nome de Santa Maria do Circo e esforçam-se por se adaptar a uma vida sedentária, completamente diferente daquela que conhecem. Habituados a viver em função da itinerância e do público, a paragem involuntária confronta-os com a decadência física ou com a falta de talento, com o estigma de um defeito ou com um amor não correspondido. A única solução que encontram para ordenar a realidade é inventar um espectáculo sem espectadores e sem números, e em que cada um assume um determinado papel social: o homem-bala é promovido a militar e o Hércules da companhia é relegado para a função de prostituta. O circo morre e nasce o reality show.

 

À excepção das efabulações genealógicas do anão Natanael, Santa Maria do Circo é um romance muito distante do realismo mágico e aproximá-lo desse universo é uma manobra que só se pode compreender no autofágico mercado anglo-saxónico. Publicado em 1998, este livro do mexicano David Toscana é uma alegoria da existência humana enquanto palco para toda a sorte de inadaptados. Tão premente como a procura de água é a necessidade de combater o absurdo dando um nome ao lugar e definindo uma nova ordem social. Como se a sobrevivência se jogasse mais no plano simbólico – o papel que tem de se representar – do que no plano material – aquilo que cada um tem de fazer. Figuras unidimensionais dentro dos limites do circo (“Se não fosse a minha estatura, ninguém diria que sou anão.”), os artistas não concebem a vida de outra forma. Por isso, fora do circo e longe dos espectadores, aqueles homens e aquelas mulheres – uma estranha família de Noé que simboliza a humanidade – precisam ainda assim de novas máscaras e de rituais no lugar dos sentimentos.

 

Se o romance tem o travo agridoce da desolação mitigada pelo humor, o final capta-o na perfeição: a assimetria de um anão e de um gigante lado a lado, enquanto o circo abandona a cidade.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:51
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