Filho de Jesus

Na última história de Filho de Jesus (1992), uma das personagens pergunta aos seus companheiros nos Alcoólicos Anónimos: “Alguma vez andaram [...] sentindo que carregam uma carroça de pecados atrás de vocês, e alguma vez vos ocorreu: Atrás destas janelas, atrás destas cortinas, as pessoas vivem vidas normais e felizes?” É como se espreitasse para as casas de um romance de Updike (aqui recenseado na semana passada) e se sentisse à margem da felicidade que imagina existir ali. Filho de Jesus é sobre a multidão de derrotados nas margens do sonho americano. Denis Johnson (1949) traz a América on the road para este livro que soa a canção melancólica sobre heroína, vidas desperdiçadas, corpos gastos sem amor para dar, gente sem destino que vive de esquemas. O fundo é religioso, mas da religiosidade poeirenta das estradas e das pequenas epifanias da droga. A salvação não é uma questão da eternidade; é urgente como acordar e sentir a alegria estúpida de se estar vivo: “Senti-me doido de felicidade por não estar morto.” (p. 39); “Nada importava excepto estarmos vivos.” (p. 78). Nestes momentos, a vida ganha alguma definição, contrasta com os sonhos e com a realidade imaterial e nauseante tal como percebida por um drogado. No meio deste êxodo sem direcção multiplicam-se as associações bíblicas: “Parecia o momento anterior à chegada do nosso Salvador” (p. 45); “A sua mão esquerda não sabia o que a sua mão direita fazia” (p. 46); “A Criação deve ter sido semelhante” (p. 54); “O céu está azul e os mortos vão regressar” (p. 63); “os anjos desciam de um Verão brilhante e azul, os seus enormes rostos iluminados pela luz e plenos de misericórdia.” (p. 66); “O peito dele era como o peito de Cristo. Provavelmente era Cristo em pessoa.” (p. 77).

 

No seu pior, as onze histórias, todas narradas pelo protagonista que conhecemos apenas como Cabeça de Merda, estão marcadas pelo lirismo duvidoso e auto-indulgente que normalmente resulta do cruzamento entre consumo de drogas e produção poética. Denis Johnson dá-nos corações cobardes, mulheres que querem comer o coração do homem, lágrimas de um cão, belezas e almas à espera de nascerem, casas e pessoas refulgentes e visões entre Ziggy Stardust e Lucy in the Sky with Diamonds. Fragmentos que apenas servem para embelezar a derrota. E é quando Johnson nos mostra a derrota sem rodeios que o livro é mais autêntico e a sua arte mais pungente.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:40
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