Memória do Fogo – 1. Os Nascimentos

Os Nascimentos é o primeiro volume da trilogia Memória do Fogo, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, conjunto de textos breves sobre a história do continente americano, desde as mitologias pré-colombianas às ditaduras militares do século XX. Este primeiro livro começa nas narrativas cosmogónicas dos povos indígenas e vai até 1700, universos separados por milhões de mortos, guerras, pestes, conquistas, traições, enriquecimentos, autos-de-fé, revoltas, ídolos queimados, templos e livros destruídos, conversões forçadas, tráficos de escravos, Deus e deuses. Desfilam os que marcaram a fogo a conquista e os que receberam essas marcas na pele: Cortés e Pizarro, Moctezuma e Túpac Amaru. A nenhum é negado o direito a ter voz, seja o imperador Carlos V, seja o escravo rebelde Hernando Maravilha. Cada um é parte de um todo múltiplo, contraditório, miscigenado e sincrético. A América é retratada como um lugar imenso de prodígios e selvajarias, de cidades de ouro nunca encontradas e de selvas repletas de cadáveres, de utopias tentadas e de intolerâncias assassinas, de atos de heroísmo e de atos de crueldade, de homens movidos pelo ideal e de homens atiçados pela ganância, do amor cristão deturpado a ponto de levar um chefe índio a escolher as chamas do inferno aos refrigérios do céu, por ser este a morada eterna dos cristãos.

 

Este último episódio foi recriado por Galeano a partir da Brevíssima Relação da Destruição das Índias, de Bartolomé de Las Casas. Em cada um dos textos, o autor refere sempre as obras de referência consultadas e a data e o local do acontecimento. Apesar disso, Memória do Fogo não é uma recolha histórica ou uma coletânea antropológica. Parte de uma base documental, é certo, mas tempera os factos no fogo da linguagem. Faz da história morta uma memória viva, poética, ardente. Neste sentido, o livro faz parte de uma das grandes conquistas culturais dos povos da América Latina: a narração da própria história através da literatura. Os autores latino-americanos têm-no feito de formas muito diferentes, uns mais próximos da herança europeia, outros reinventando tradições ainda mais antigas, quase todos aliando à criação artística individual o refazer de uma identidade coletiva estilhaçada. Contar histórias é contar a História. Salvar um homem do esquecimento é a pedra angular do edifício da memória, até da memória vasta de todo um continente. Não interessa, portanto, saber com que linguagem e em que género literário o escritor mergulha as mãos no tempo. O próprio Galeano ignorava a que género pertencia “esta voz de vozes.” Interessam somente essas vozes resgatadas de séculos de escuridão e de sangue e oferecidas ao leitor em palavras de fogo contra a amnésia.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:24
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