Ondina

“Parecia-lhe estranho estar a viver, ela própria, um daqueles contos de fadas que até então só ouvira contar.” Este curioso enxerto de meta-ficção, quase no final da narrativa, esclarece qualquer dúvida sobre a natureza da obra de La Motte-Fouqué, publicada em 1811. Conto sobrenatural e trágico, Ondina conjuga vários elementos dos contos populares e da mitologia centro-europeia. A casa isolada, a floresta misteriosa, a criança trazida pelas águas e a chegada de um estranho em busca de abrigo juntam-se a assombrações, sortilégios, premonições, sonhos e pressentimentos para criar um ambiente onírico e ameaçador. A mitologia pagã, centrada na Natureza, sobrepõe-se à tradição humanista do Cristianismo, sendo disso exemplo a figura do padre Heilmann e o seu reconhecimento do poder de Ondina. Da mesma forma, enquanto tragédia, Ondina alicerça-se mais no confronto entre os desejos humanos e as leis da Natureza do que no conflito entre a vontade humana e as leis divinas, comum na tragédia grega. A própria relação de Ondina – um espírito das águas que, a fim de obter uma alma, procura unir-se a um ser humano – com o cavaleiro Huldbrand cria as proibições que estão na origem da tragédia. Para evitar que a mulher seja levada definitivamente para o reino das águas, Huldbrand está proibido de manifestar descontentamento para ela sempre que estiverem perto de um curso de água. Como é característico dos contos de fadas, a verbalização do interdito serve para sublinhar a inevitabilidade da transgressão, conferindo-lhe a sua dimensão trágica. No conto de La Motte-Fouqué, porém, o castigo é severo e ninguém vive feliz para sempre. O final apaziguador aproxima a narrativa dos mitos cosmogónicos e reconcilia a pobre Ondina com o elemento ao qual nunca deixou de pertencer.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:22
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