Os Comboios vão para o Purgatório

“ – Deviam ser uns três mil”, murmura José Arcadio Segundo em Cem Anos de Solidão, depois de escapar de um comboio cheio de cadáveres. “Foram mais de três mil os mortos na escola de Santa Maria”, diz uma das personagens de Os Comboios vão para o Purgatório, do chileno Hernán Rivera Letelier.


Morte, anjos e fantasmas cruzam as páginas deste romance, cuja acção decorre num comboio que atravessa o Atacama, “o deserto mais triste do mundo”, em direcção ao purgatório. Os passageiros estão vivos mas envoltos numa aura sobrenatural, num limbo de esperanças ténues e de recordações amargas: “o facto de viajar, sobretudo de comboio, levava homens e mulheres a entrarem num estado de crepúsculo” (p. 19) ou “extenuados e sujos, com cara de mortos que acabaram de sair da vala comum” (p. 139). Estamos, portanto, nos terrenos áridos de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, mas na prosa de Rivera Letelier sopra um vento da grandiloquência de García Márquez. Uberlinda Linares, a paixão do acordeonista Lorenzo Anabalón, é uma mulher de qualidades demiúrgicas que lembra Pilar Ternera, personagem de Cem Anos de Solidão. A mulher cujo “riso louco enchia o mundo de pássaros” (p. 172) tem a mesma alegria vital de Pilar Ternera, “cujo riso explosivo espantava as pombas”. Ao longo do livro, a adjectivação tem o mesmo fôlego cosmogónico e escatológico, de natureza bíblica: “lascívia de animal edénico” (p. 12), “um assombro original” (p. 43), o “incêndio bíblico de um monumental pôr-do-sol” (p. 38).


Um dos pontos fracos do romance é o abuso no recurso a fantasmas, num esforço para acentuar a carga espectral da história. Em poucas páginas, há um corrupio de fantasmas e derivados: “presença fantasma”, “luz fantasmagórica das fogueiras”, globos de brilho fantasmal”, “o fulgor das luzes reflecte-se espectral”, “destroços de povoação fantasma”, etc. O mesmo sucede com os anjos que são de areia, criaturas celestiais, perversos, obstipados, famélicos, decrépitos, festivos, perdidos e até Uberlinda é uma espécie de animal angélico.
Embora o comboio de Rivera Letelier percorra os trilhos do realismo mágico (a transmissão oral de lendas e superstições), não se limita a repetir uma fórmula. Há uma autenticidade na sua escrita, uma crença quase ingénua na força da história, que o eleva acima da cópia preguiçosa e repetitiva. Nos mesmos carris, podem fazer-se viagens muito diferentes.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:06
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