Terça-feira, 07 De Dezembro,2010

A Especulação Imobiliária

Numa entrevista, em 1958, Italo Calvino afirmou que as suas melhores personagens estavam neste conto alargado, A Especulação Imobiliária: “ao empresário daria o Óscar para a melhor personagem objectiva, em termos absolutos, e a Quinto para a melhor personagem subjectiva, semiautobiográfica.” Caisotti, o empresário rústico com o talento sub-reptício para as negociatas, talvez mereça o prémio por ser uma criação tão diferente do seu autor. Mas é de Quinto, o intelectual de esquerda que quer sujar as mãos na realidade, que Calvino aproxima o olhar, levando a leitor a simpatizar com as suas hesitações e os seus falhanços. Facilmente entusiasmado por projectos vagos, deprimido às primeiras dificuldades, Quinto vagueia entre as teorias impalpáveis da sua condição de intelectual e o mundo prático dos negócios, onde vê a beleza das coisas reais. A expansão imobiliária na Riviera italiana é a oportunidade para se envolver no “momento económico”. Admira o avanço do cimento como uma coisa bela por ser nova e violenta, pondo em causa a velha ordem da burguesia da terra, com a sua tacanhez conservadora. Há nesta personagem qualquer coisa de futurista, de fascínio bárbaro pela “modernidade”.

 

Quinto quer respirar o ar do tempo, nadar com os tubarões, revelando uma vontade tão contrária às suas inclinações naturais que o desfecho não é apenas previsível, mas também justo. Os ideais políticos ficam para trás porque “lançar-se numa iniciativa económica, manejar terrenos e dinheiro era também um dever" (p. 41). O problema é que este anseio de Quinto é mais belo na teoria do que na prática. A realidade, feita de cláusulas de contratos e de construções adiadas, arrefece-lhe o ânimo. “Toda a sua paixão pela prática, pela realidade concreta” acaba num monte de “material inutilizado que não conseguia ser nada, veleidades, tentativas não levadas a cabo.”

 

O negócio, que tanto prometia, resulta numa casa inacabada que é a representação simbólica da vida de Quinto, também ele um homem inacabado, um projecto falhado que nunca encontra a realidade ideal para se concretizar. Como personagem é, pelo contrário, uma construção quase perfeita. Sem o submeter a um julgamento impiedoso, o autor expõe-lhe as fraquezas e as contradições. Não o podemos detestar porque, através do humor, do tom levemente fraternal, Calvino lembra-nos que Quinto Anfossi, consumido por sonhos e vencido pela realidade, é um dos nossos.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:41
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Segunda-feira, 27 De Setembro,2010

A Nuvem de Smog e A Formiga Argentina

Referir a nacionalidade de alguns escritores, como é o caso do italiano Italo Calvino, é um mero acto de competência geográfica ou de zelo patriótico. As obras que lhe granjearam admiração universal provêm de um outro lugar de coordenadas imprecisas, que por comodidade poderemos designar por Literatura, nomeadamente da sub-região do Fantástico. O poder criativo de Calvino, refreado pelo rigor matemático da linguagem, nunca resvala para o devaneio. As Cidades Invisíveis são o exemplo maior dessa arte em que uma imaginação prolífica se alia a uma prosa geométrica. O estilo do autor impõe-se sem esforço aos códigos dos géneros literários.

 

O mesmo acontece nos dois contos que constituem este livro: A Nuvem de Smog e A Formiga Argentina. Embora tenham sido escritos numa época (1958 e 1952, respectivamente)  em que o neo-realismo ainda era a corrente dominante e mesmo que possam ser classificados de “realistas”, afastam-se de qualquer cartilha literária. O primeiro é a história de um jornalista que decide aceitar o lugar de redactor num pequeno jornal. Obedecendo a um desejo de apagamento (“não suporto chamar a atenção”; “queria sentir-me alguém de passagem”), muda-se para um quarto acanhado na nova cidade. Nesse sentido, a perpétua nuvem de smog que envolve a cidade e os seus habitantes deveria ser uma ajuda. No entanto, a visita da namorada, uma mulher bela e optimista lembra-o da possibilidade de uma vida diferente do beco cinzento e empoeirado que escolheu. O segundo conto passa-se num ambiente rural. Um jovem casal com um filho aluga uma casa. A esperança de aí encontrarem a tranquilidade que amenize as dificuldades quotidianas rapidamente se desvanece. Os terrenos em volta da casa estão infestados de formigas nada preocupadas em proporcionar sossego aos habitantes. Quando procuram saber como é que os vizinhos evitam as formigas, percebem que, mais do que uma ameaça, os insectos são parte integrante do seu modo de vida.

 

Tal como são apresentados nesta edição, os contos foram publicados em 1965, embora já estivessem incluídos no Livro Quarto da colectânea dos Racconti, de 1958. O autor considerava que estes contos estavam ligados por uma “afinidade estrutural e moral”. As ressonâncias são óbvias e o cruzamento de ambos permite uma leitura mais rica. O retrato de ambientes distintos (uma cidade industrial e uma aldeia) e a natureza oposta das “ameaças” (o smog e as formigas) esvaziam a dimensão neo-realista. A angústia não é classista, nem é um mal exclusivo dos centros urbanos e do progresso. Porém, é selectiva: ataca aqueles que não se adaptam. O casal e o jornalista partilham as dores da inadaptação a um novo meio. Aquilo que é um incómodo para eles é, para os adaptados, um factor de coesão social e até de cumplicidade conjugal. As semelhanças entre ambos os finais, em que os protagonistas se distanciam dos problemas e contemplam paisagens despoluídas e desinfestadas, elucidam-nos quanto ao sentido metafórico que Calvino atribui ao smog e às formigas: o da rotina que nos envolve, como a nuvem de smog, e que entra pelas nossas casas sem pedir licença, como as formigas.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:11
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