Em busca da identidade

Vivemos em Democracia mas não vivemos a democracia no dia-a-dia, no exercício das nossas liberdades, na rejeição das pequenas tiranias que nos sufocam e paralisam. Aceitamos tudo porque só assim nos podemos queixar de tudo. São essas as nossas armas: a queixa, a inveja e a arte de viver nas fendas que é o chico-espertismo. “Em Busca da Identidade – o desnorte”, o filósofo José Gil atribui à doença da identidade, ao excesso de identidade, a nossa paralisia social e cívica. “Somos portugueses antes de sermos homens” (p.10) e o peso dessa identidade afecta os percursos individuais e degrada o espaço público. O excesso de identidade conforta e imobiliza, somos o que somos e isso desculpa-nos, exime-nos do debate, protege-nos do conflito e empurra-nos para o queixume. Transferindo “mecanismos psicanalíticos para o colectivo”, José Gil detecta traços neuróticos nos portugueses durante o Estado Novo como, e cita Ferenczi, “a atenuação do sentimento de responsabilidade”, “o adiamento de todas as acções” e “a crença na realização das ideias só porque são pensadas”. Estes traços permanecem no português do pós-25 de Abril como estratégia de sobrevivência, de adaptação a uma realidade que não era imediatamente dada, que tinha de ser construída. A liberdade colocou problemas de identidade, que levaram a que os portugueses se refugiassem em “antigos moldes que forneciam segurança e paz interior”. Décadas de salazarismo não só afastaram os portugueses do espaço público de debate mas também criaram uma identidade avessa ao conflito e à discussão. A identidade do português não estava preparada para a realidade democrática, para o exercício da cidadania, para a expressão livre. Para José Gil, este conflito entre a identidade e a realidade explica “a nossa dificuldade actual em nos desviarmos de uma via única”. É a nostalgia da ordem salazarista, de um sossego existencial característico dos regimes ditatoriais, de uma paz claustrofóbica que vai respirando pelo tubo do “queixume delirante”. José Gil desmonta a retórica da “via única” do primeiro-ministro José Sócrates, do discurso reformista que, quando embate com a realidade, prefere a cosmética à transformação dessa realidade. É a institucionalização do chico-espertismo. As tácticas de sobrevivência quotidiana que constam do manual do chico-esperto são, enfim, consagradas pelo próprio Estado. A vontade de mudança permanece como “aspiração flutuante”, impossível de satisfazer, enquanto que, na prática, prevalecem truques como o estudo da OCDE que não era da OCDE. A propaganda da “via única” também procura contornar o conflito ou, quando ele é inegável, desinscrevê-lo do real. A atitude do governo relativamente à contestação dos professores é disso o melhor exemplo. Reconhece-se o direito à manifestação mas retira-se-lhe qualquer significado político, como se 120.000 professores, zombies ou couves fossem a mesma não-coisa. “Assim começa a interiorização da obediência” no país do respeitinho, onde, como afirma José Gil, “estamos ainda longe de praticar a democracia”.

 

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publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:01
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